segunda-feira, 11 de outubro de 1999

SEGUNDA PARTE

SOBRE A ESPERANÇA


CAPÍTULO I

MOSTRA-SE QUE PARA A PERFEIÇÃO
DA VIDA CRISTÃ É NECESSÁRIA
A VIRTUDE DA ESPERANÇA

1 — Porque, devido à sentença do Príncipe dos Apóstolos, somos admoestados a não darmos apenas a razão da fé, mas também da nossa esperança (cf. II Ped 1,5), após termos explanado brevemente a doutrina da Fé Cristã, resta-nos fazer-te agora a exposição sucinta das coisas atinentes à esperança.
2 — Deve-se considerar que o desejo do homem pode satisfazer-se com algum conhecimento, pois o homem naturalmente deseja saber a verdade. Conhecida a verdade, aquieta-se o desejo. Mas só com o conhecer as verdades da fé, o desejo do homem não se satisfaz. A fé, com efeito, é conhecimento imperfeito das coisas que se crêem, que não são vistas, razão pela qual o Apóstolo a chama de “prova das coisas que não se vêem” (Heb 11,1).
3 — Possuída, pois, a fé, fica ainda na alma a inclinação para algo mais: para a perfeita visão da verdade conhecida pela fé, e para a aquisição daquilo por meio de que possa ser introduzida nesta verdade.
4 — Dissemos que, entre as demais verdades da fé, há uma que nos leva a acreditar que Deus exerce a Sua Providência sobre as coisas humanas.
Esta verdade faz nascer no espírito do crente o sentimento da esperança, para que ele venha a possuir os bens naturalmente desejados, auxiliado pela mesma fé em que foi instruído. Por conseguinte, como dissemos acima, a esperança é necessária à perfeita vida cristã.


CAPÍTULO II

MOSTRA-SE A ORAÇÃO PELA QUAL
OS HOMENS CONSEGUEM DE DEUS AQUILO
QUE PEDEM, QUE CONVENIENTEMENTE
ESPERAM, E A DIFERENÇA DE ORAÇÃO
FEITA A DEUS E AO HOMEM

1 — Porque, segundo a ordem da Divina Providência, é atribuído a cada um o modo de atingir o fim conforme a conveniência da natureza de cada coisa, é também concedido aos homens o modo adequado de obter de Deus o que esperam, conforme a disposição da condição humana. É próprio, efetivamente, da natureza humana que seja feito um pedido para que se obtenha, principalmente de um superior, aquilo que se espera conseguir dele. Por esse motivo, a oração foi indicada aos homens para que possam obter de Deus o que d’Ele esperam conseguir.
2 — Entretanto, há diferença entre a oração necessária para a obtenção de algo do homem e a feita para que se consiga algo de Deus. Exige-se do homem, em primeiro lugar, que sejam manifestados o desejo e a necessidade do orante; em segundo lugar, que o espírito de quem é solicitado incline-se para conceder o medido. Essas coisas, porém, não têm lugar na oração dirigida a Deus.
Com efeito, nessa oração não entendemos manifestar a Deus nossas necessidades e nossos desejos, pois Deus conhece todas as coisas, como se lê no Salmo: “Senhor, diante de Vós estão todos os meus desejos” (Sl 37,10), e no Evangelho: “O vosso Pai conhece tudo de que necessitais” (Mt 6,32). Nem tampouco a vontade divina é movida a fazer o que antes não queria, porque, como é dito, “Deus não é semelhante aos homens para mentir, nem ao filho do homem para mudar” (Num 23,19), nem “Deus é movido para arrepender-se” (I Reis 15,29).
A oração que se faz para se conseguir algo de Deus é necessária por causa do homem que a faz, de modo que este considere os próprios defeitos e mova o próprio espírito para desejar fervorosa e piedosamente o que espera conseguir pela oração. Faz-se, pois, por este meio, digno para conseguir o que pede.
3 — Deve-se considerar ainda outra diferença entre a oração que é feita a um homem e a que é feita a Deus. Na oração feita ao homem, supõe-se a familiaridade que abra o caminho para aquele que pede. Mas a própria oração feita a Deus nos torna familiares de Deus, enquanto nossa mente eleva-se para Ele e, por algum afeto espiritual, conversa com Deus, adorando-O em espírito e verdade, e, assim orando, o afeto espiritual lhe abre o caminho para orar, depois, sempre com mais confiança. Donde ser dito no Salmo: “Eu clamei (i. e., orando com confiança) porque, Deus, me ouvistes” (Sl 16,6), (isto é, me ouvistes, como que tenho sido recebido na familiaridade de Deus devido à primeira prece, depois, clama por Ele com mais confiança).
4 — Por esse motivo a assiduidade na oração e a repetição das súplicas feitas a Deus não são importunas, mas devem ser consideradas como agradáveis a Deus. Lê-se, por isso, no Evangelho: “Convém sempre orar, e jamais deixar de o fazer” (Lc 28,1). Donde também o Senhor convidar-nos para a oração de súplica, quando diz: “pedi, e dar-se-vos-á; batei, e abrir-se-vos-á” (Mt 7,7). Mas a oração feita aos homens para se conseguir algo por pedido, torna-a inoportuna (se muito repetida).


CAPÍTULO III

FOI CONVENIENTE PARA A
CONSUMAÇÃO DA ESPERANÇA QUE
CRISTO NOS TRANSMITISSE A
FORMA DA ORAÇÃO

1 — Porque, para nossa salvação, após a fé, é exigida a esperança, foi oportuno que também, como o nosso Salvador fez-se autor e consumador da nossa fé, revelando-nos os sacramentos celestes, Ele nos introduzisse na esperança viva, entregando-nos a forma da oração pela qual a nossa esperança do modo mais perfeito eleve-se a Deus, enquanto, pelo próprio Deus, somos ensinados sobre o que a Ele devemos pedir. Ora, Deus não nos teria induzido a pedir, se não se tivesse proposto a nos atender, pois ninguém pede de outrem senão esperando dele, e pede o que espera conseguir; por conseguinte, Deus nos ensina a pedir algo, advertindo-nos também que devemos esperar d’Ele, e mostra-nos o que devemos esperar d’Ele por meio daquilo que nos ensina que deve ser pedido.
2 — Eis porque, ao tratar, nas linhas que se seguem, dos pedidos contidos na oração dominical, demonstraremos tudo o que pertence à esperança dos cristãos, isto é, aquilo em que devemos pôr a nossa esperança, e mostraremos também a razão pela qual devemos pedir, bem como o que devemos pedir. Ora, a nossa esperança deve estar em Deus, e é a Deus que devemos orar, segundo se lê no Salmo: “Esperai n’Ele (i. é., em Deus) toda a congregação do povo, abrindo para ele (i. e., orando) os vossos corações.” (Sl 61,9).


CAPÍTULO IV

POR QUE DEVEMOS PEDIR A
DEUS NA ORAÇÃO O QUE
DEVEMOS ESPERAR

1 — A principal causa da esperança em Deus é pertencermos a Ele, como o efeito pertence à sua causa. Ora, nenhum agente opera em vão, mas sempre visando um fim certo. Pertence, portanto, a cada agente produzir o efeito de tal modo que, a este, não lhe faltem os meios para atingir o fim. Devido a isso é que, nos agentes naturais, não se vê a natureza falhar no que é necessário, mas conceder a cada ser feito o que é necessário para a sua constituição e para a perfeição da sua atividade, a qual deve dirigir para o fim, a não ser que, por acaso, seja impedida por falha do agente, mostrando-se insuficiente para tal. Ora, o agente dotado de inteligência, na própria produção do efeito, não só confere a este o que lhe seja necessário para atingir o fim intencionado, bem como dispõe a obra já terminada para o uso que se identifica com o fim da própria obra. Assim é que, por exemplo, o cuteleiro fabrica a faca e dispõe de como deve ser a incisão que ela faz.
2 — Ora, o homem é feito por Deus, como o artista faz a sua obra de arte. Donde se ler em Isaías: “Senhor, Vós sois o nosso artista, e nós somos o barro” (Is 64,8).
E como o vaso de barro, caso tivesse compreensão, poderia esperar ser bem disposto pelo oleiro, assim também o homem deve esperar em Deus, de que seja por Ele retamente ordenado, como se lê em Jeremias: “Somos o barro nas mãos do oleiro; assim estais vós, ó casa de Israel, em Minhas mãos” (Jer 19,6). Tal confiança que o homem deposita em Deus é necessariamente certíssima. Foi dito que o agente não se desvia da reta disposição da obra a não ser por um defeito dele. Ora, em Deus defeito algum pode aparecer, nem de ignorância, porque “todas as coisas estão nuas e patentes aos Seus olhos” (Heb 4,13); nem de impotência, porque “a Sua mão não se retrai, deixando-nos de salvar” (Is 59,1); nem defeito ainda de boa vontade, porque “Deus é bom para os que n’Ele esperam, para a alma que O procura” (Lam 3,25). Por esse motivo, a esperança com que alguém confia em Deus “não confunde”, como escreve São Paulo (Rom 5,5).
3 — Deve-se, em seguida, considerar que se a Providência cuida da disposição de todas as coisas, cuida, contudo, de modo especial, das criaturas racionais, as quais, com efeito, são assinaladas com a dignidade da imagem divina, podem conhecer e amar a Deus, e têm sobre os próprios atos o domínio de modo a escolherem ou bem ou mal. Donde lhes pertencer a confiança em Deus, não só enquanto Deus as conserva no ser, de acordo com a condição de cada uma (conservação que Deus estende às demais criaturas), mas também enquanto, afastando-se do mal e fazendo o bem, elas dispõem-se a merecer algo de Deus, como retribuição. Donde ler-se no Salmo: “Salvarás os homens e os animais (a saber, Deus concede aos homens e aos animais os meios de sobrevivência). Os filhos dos homens esperarão sob a sombra de Vossas asas (como que protegidos por Ele com especial cuidado)” (Sl 35,7).
4 — Deve-se, finalmente, considerar que advinda uma perfeição ao ser, lhe é também acrescida a faculdade de fazer ou de receber, como, por exemplo, o ar, que foi iluminado pelo sol, adquire a capacidade de permitir serem as coisas vistas, e a água, que foi aquecida pelo calor, adquire a propriedade de cozer os alimentos. Além disso, se o ar e a água tivessem compreensão, poderiam até esperar receber essas qualidades.
Ao homem, foi-lhe acrescida, sobre a condição natural da sua alma, a perfeição da graça, pela qual ele se torna “consorte da natureza divina” (II Ped 1,4).
5 — Donde dizer-se que temos uma nova geração como filhos de Deus, segundo se lê: “Deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1,12). Estes, que se tornaram filhos de Deus, podem convenientemente esperar a herança, conforme se lê: “Se filhos, também herdeiros” (Rom 8,17). Devido a essa regeneração espiritual, é próprio do homem ter de Deus uma esperança mais elevada, a de receber de Deus a herança eterna, conforme se lê: “Regenerou-nos na esperança viva pela ressurreição de Cristo dentre os mortos, para a herança incorruptível, incontaminável, e que não fenece e é conservada nos céus” (I Ped 1,4).
6 — E porque, devido ao espírito de adoção que recebemos, “clamamos Abba, Pai”, como escreveu São Paulo (Rom 8,15), o Senhor, para mostrar-nos que devemos orar com essa esperança, iniciou a Sua oração com a invocação do Pai, nestes termos: “Pai nosso, que estais nos céus” (Mt 6,9). Justamente porque nos dirigimos ao Pai, o nosso afeto é preparado para que oremos com pureza, e para que obtenhamos o que esperamos.
Os filhos, com efeito, devem imitar aos pais. Quem se declara que tem a Deus como pai deve esforçar-se para imitar a Deus, e o faz naturalmente evitando tudo o que o possa tornar dessemelhante de Deus, e realizando as ações que o assemelham a Deus. Lê-se, por isso, no Livro do Profeta Jeremias: “Chamar-me-eis de Pai, e não cessareis de seguir-me os passos” (Jer 3,19). Pergunta, com relação a esse assunto, São Gregório de Nissa: “Se tens a mente voltada para as coisas mundanas, se queres a glória e se te submetes aos vis apetites, como tu, que vives em vida corrupta, podes chamar de teu pai a quem gera a incorruptibilidade?”.


CAPÍTULO V

DEUS, DE QUEM ESPERAMOS OBTER
O QUE PEDIMOS NA ORAÇÃO, DEVE
SER CHAMADO PELO ORANTE
“PAI NOSSO” E NÃO “MEU PAI”

1 — A imitação da caridade de Deus é uma das principais qualidades que fazem alguém ser reconhecido como filho de Deus, conforme se lê: “Sede imitadores de Deus como filhos caríssimos, e ambulai no amor” (Ef 5,1). O amor de Deus, com efeito, não é particular, mas comum para todos. Lê-se no Livro da Sabedoria que Deus “ama tudo o que existe” (Sab 11,25), amor que todavia é especial para com os homens, conforme se lê “Amou os povos” (Deut 33,3). Escreveu São Cipriano, a respeito disso, que “a nossa oração é pública e comum, e, quando oramos, não o fazemos para um só indivíduo, mas para toda a comunidade, porque toda a comunidade e cada um constituem uma só unidade”. Escreveu também São João Crisóstomo: “orar para si, cada um o faz por necessidade; orar pelo outro, exorta-nos a caridade fraterna”. Por isso, não dizemos na oração: Pai meu, mas Pai nosso.
2 — Deve-se também considerar que a nossa oração fundamenta-se principalmente no auxílio divino. Contudo, devemos também auxiliarmo-nos mutuamente, para que, com mais facilidade, consigamos o que pedimos, como se lê: “livrar-nos-á, se nos auxiliardes pela oração” (I Cor 1,10). Lê-se ainda sobre o mesmo assunto: “Orai uns pelos outros, para serdes salvos” (Jac 5,16). Escreveu a respeito Santo Ambrósio: “Quando muitos pequenos se congregam e fazem-se unânimes, tornam-se grandes”. Impossível é, pois, que a prece de muitos unidos pela oração não seja atendida, lendo-se no Evangelho: “Se dois dentre vós concordarem sobre a terra, tudo o que pedirdes ser-vos-á feito pelo meu Pai que está no céu” (Mt 18,19).
3 — Deve-se ainda considerar que nossa esperança é posta em Deus por meio de Cristo, conforme se lê: “Justificados pela fé, tenhamos paz com Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, por Quem temos também acesso pela fé desta graça, na qual permanecemos e nos gloriamos, na esperança dos filhos de Deus” (Rom 5,1). É por Cristo, o Filho Unigênito de Deus, que somos feitos filhos adotivos, como se lê: “Deus enviou o Seu Filho para que recebêssemos a adoção de Filhos” (Gal 4,5).
Devemos, por conseguinte, confessar a Deus como Pai em tal teor que não seja derrogado a Cristo o privilégio de ser Filho Unigênito, tendo escrito, sobre isto, Santo Agostinho: “não queiras vindicar para ti algo de especial. Deus é pai de modo especial, só de Cristo; de todos nós é pai em comum, porque somente a Cristo Ele gerou, enquanto a nós, criou-nos. Donde dizermos: Pai nosso”.


CAPÍTULO VI

MOSTRA-SE QUE O PODER DE
DEUS COMO PAI, A QUEM ORAMOS,
CONCEDE-NOS TAMBÉM O QUE
ESPERAMOS QUANDO DIZEMOS
“QUE ESTAIS NOS CÉUS”

1 — Freqüentemente acontece que a esperança seja ineficaz, devido à impotência, para atendê-la, daquele de quem se espera o auxílio. Ora, não é suficiente, para a certeza da esperança, que aquele em quem nós confiamos tenha o desejo de nos ajudar, quando lhe falta o poder.
Exprimimos, porém, convenientemente, a prontidão da vontade divina em nos auxiliar, quando chamamos a Deus de Pai. Para que não duvidemos do Seu poder, é acrescentado na Oração Dominical: “que estais nos céus”. Não se diz que Deus está nos céus como que estivesse Ele contido pelos céus, mas como abrangendo os céus por seu poder, conforme se lê: “Eu fiz todo o giro do céu” (Ecli 24,8). Mais ainda: o poder da virtude divina foi elevado acima da imensidão dos céus, conforme se lê no Salmo: “A Vossa magnificência, ó Deus, elevou-se acima dos céus” (Sl 8,2). Donde, para que seja confirmada a certeza da nossa esperança, confessamos a força d’Aquele que sustenta os céus e os transcende.
2 — Por essa confissão é excluído também um certo impedimento à oração. Há, com efeito, alguns que consideram as coisas humanas subordinadas à necessidade fatal dos astros, erro que se opõe à afirmação de Jeremias: “Não temais os sinais dos céus que os povos temem” (Jer 10,2). Conforme esse erro, o fruto da oração fica tolhido, porque, se a nossa vida está submetida à necessidade dos astros, nada nela pode ser mudado. Sendo assim, seria em vão que pediríamos algo na oração para a concessão de algum bem, ou para sermos livres de algum mal. Para que, portanto, isso não seja impedimento para a nossa confiança na oração, dizemos na oração: “que estais nos céus”, isto é, Deus está no céu como motor e moderador. Eis porque, pelo poder dos astros, o auxílio que esperamos de Deus não pode ser impedido.
3 — Para que, além disso, a oração aja eficaz junto a Deus, convém que o homem peça aquelas coisas de que ele é digno de esperar de Deus.
Refere-se São Tiago a alguns homens, nestes termos: “Pedis e não recebeis, porque pedis mal” (Tg 4,3). Ora, são pedidas mal aquelas coisas que a sabedoria terrena, não a celeste, sugere. Escreve a respeito São João Crisóstomo “Quando dizemos: “que estais nos céus”, não estamos encerrando Deus nos céus, mas é o espírito de quem ora que é tirado da terra, e posto nas regiões celestes”.
4 — Existe outro impedimento para a oração e para a confiança do orante com relação a Deus: se ele julga que a vida humana esteja fora do cuidado da Divina Providência, conforme refere-se Jó aos ímpios que diziam: “As nuvens são seu esconderijo, Ele não considera as nossas coisas, e fica perambulando pelos limites dos céus” (Jó 22,14).
Lê-se também a respeito, no Livro de Ezequiel: “O Senhor não nos vê; o Senhor abandonou a terra” (Ez 8,12). Mas o Apóstolo Paulo, ao pregar para os atenienses, afirmava justamente o contrário: “Ele não está longe de cada um de nós, n’Ele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17,25). Quer dizer: por Deus, o nosso ser é conservado, a nossa vida é governada e os nossos movimentos dirigidos. Isso é confirmado pelo Livro da Sabedoria, onde se lê: “A tua Providência, ó Pai, desde o início governa todas as coisas” (Sab 14,3). Governa-as, com efeito, de tal modo que nem os ínfimos animais estão fora da sua Providência, conforme se lê no Evangelho: “Porventura não se vendem dois pássaros por um asse? E nem um só deles cairá sobre a terra sem a permissão de vosso Pai” (Mt 10,29).
Mas os homens são postos sob o cuidado divino de modo tão excelente que, enfatizando esse cuidado especial, em uma comparação, o Apóstolo Paulo chega a escrever que “Deus não cuida dos animais” (I Cor 9,9). Certamente o Apóstolo não quer dizer que Deus abandona totalmente os animais, mas que não cuida deles como cuida dos homens, aos quais pune pelas obras más, recompensa pelas boas, e os ordena, desde a terra, para a eternidade.
Por esse motivo, o Senhor acrescentou também estas palavras às de há pouco citadas: “Todos os cabelos das vossas cabeças estão contados” (Mt 29,30), para afirmar que tudo o que existe no homem deve ser reparado pela ressurreição, e, por isso, toda desconfiança deve ser afastada de nós. Donde ser também acrescentado: “Não temais, porque valeis mais que muitos pássaros.”
5 — Devido a isso, como acima já citamos, lê-se no Salmo: “Os filhos dos homens esperam sob a sombra das Suas asas” (Sl 35,8). Embora digamos que Deus está próximo dos homens devido ao cuidado especial que tem para com eles, de modo especialíssimo Ele deve ser considerado perto dos bons, que se esforçam para d’Ele se aproximarem pela fé e pelo amor, conforme se lê: “Aproximai-vos de Deus, e Ele se aproximará de vós” (Tg 4,8), e, também, no Salmo: “O Senhor está próximo de todos os que O invocam, de todos os que na verdade O invocam” (Sl 44,18).
O Senhor não apenas se aproxima deles, mas também neles habita pela graça, conforme se lê: “Vós em nós, Senhor” (Jer 14,9). Donde, para aumento da esperança dos santos, dizer-se na Oração Dominical: “que estais nos céus”. Santo Agostinho assim interpreta essa expressão: “que estais nos santos”. Porque, como diz o mesmo Santo, há uma distância material existente entre o céu e a terra. Para significar isso, ao orar, nos voltamos para o Oriente, onde o céu começa. Donde também ser aumentada a esperança dos Santos e a confiança na oração, não só pela proximidade de Deus, mas também pela dignidade que eles receberam de Deus, que, por Cristo, os fez céu, conforme se lê: “Para estabeleceres o céu e fundares a terra” (Is 51,16).
Aquele, pois, que os fez céu, não lhes negará os bens celestes.


CAPÍTULO VII

QUE COISAS SE PODEM ESPERAR
DE DEUS. RAZÃO DA ESPERANÇA

1 — Após termos tratado das causas que despertam nos homens a esperança em Deus, convém agora considerar as coisas que devemos esperar de Deus.
Quanto a isso, visto que a esperança pressupõe o desejo, deve-se considerar que, para uma coisa ser objeto de esperança, é exigido, em primeiro lugar, que ela seja desejada: as coisas não desejadas, não dizemos que as esperamos; dizemos, antes, que as tememos, ou, mesmo, que as desprezamos.
É exigido, em segundo lugar, que se estime o objeto da esperança como possível de ser conseguido. É justamente essa possibilidade o que a esperança acrescenta ao desejo. Pode o homem desejar também aquilo que estima não poder alcançar, mas isso não pode ser objeto da esperança.
Em terceiro lugar, o objeto da esperança deve ser de difícil consecução, pois, as coisas fáceis e sem importância, nós mais as desprezamos, do que esperamos. Além disso, quando as esperamos e as temos imediatamente, não parece que as esperamos como futuras, senão como possuindo-as já.
2 — Deve-se, em seguida, considerar que, das coisas difíceis que alguém espera alcançar, umas espera alcançar por meio de outrem; outras, por si mesmo. A diferença existente entre estas e aquelas consiste em que, para se conseguir as coisas que espera alcançar por si mesma, a pessoa aplica o seu próprio esforço, ao passo que, para obter o que espera receber de outrem, faz, em primeiro lugar, um pedido. Quando espera alcançar de criatura humana o que pede, chama-se a isso simplesmente de petição. Mas quando espera alcançá-lo de Deus, chama-se a isso de oração. Eis porque São João Damasceno definiu a oração como sendo “o pedido feito a Deus daquilo que nos convém”.
3 — Aquelas esperanças, com efeito, que o homem põe em si ou em outro homem, não pertencem à virtude da esperança, mas a esta só pertence a esperança que se tem em Deus. Lê-se, a respeito: “Maldito o homem que confia no homem, e que se apóia no seu braço carnal” (Jer 17,5). Mas logo é acrescentado a esse texto: “Bendito o homem que confia no Senhor: o Senhor será a sua esperança”.
Donde, aquilo que o Senhor ensinou, na sua oração, que deva ser pedido, ser apresentado ao homem como sendo possível, mas de difícil consecução, para que ele o consiga, não pela virtude humana, e sim pelo auxílio divino.


CAPÍTULO VIII

SOBRE A PETIÇÃO QUE NOS ENSINA
A DESEJAR QUE SE COMPLETE O
CONHECIMENTO DE DEUS EM
NÓS COMEÇADO, E COMO ISSO
SEJA POSSÍVEL

1 — Convém agora tratar da ordem do desejo que emana da caridade, para que o esperado e pedido possa também ser visto segundo essa ordem. Pertence, com efeito, à ordem da caridade, que Deus seja amado sobre todas as coisas. Por essa razão, a caridade move o nosso desejo, em primeiro lugar, para as coisas de Deus. Mas como o desejo dirige-se para um benefício futuro, e como a Deus considerado em Si mesmo nada Lhe advém em futuro, pois permanece eternamente imutável, o nosso desejo não pode dirigir-se para as coisas de Deus, enquanto são consideradas em si mesmas, como se Deus adquirisse algum bem que não possui. Eis porque o nosso amor dirige-se para essas coisas: para que as amemos como já existentes.
2 — Pode-se, todavia, desejar que Deus seja magnificado na opinião e no respeito dos outros, Deus que já em Si mesmo é sempre grandioso. Tal desejo não deve ser rejeitado. Ora, sendo o homem criado para conhecer a grandeza de Deus, se nem pudesse chegar a percebê-la, pareceria ter sido criado em vão. Mas essa conclusão é contraditada pelo Salmo: “Porventura fizestes o homem em vão?” (Sl 88,48). Portanto não há quem seja assim totalmente destituído do conhecimento de Deus, lendo-se, a respeito, no Livro de Jó: “Todos os homens O vêem” (Jó 56,25).
3 — Tal conhecimento, contudo, é difícil, pois excede toda capacidade humana de conhecer, conforme se lê no mesmo Livro: “Eis o Deus grandioso, que está acima do nosso conhecimento” (Jó 36,26). Portanto, o conhecimento da grandeza e da bondade de Deus não pode chegar aos homens, senão pela graça da revelação divina, conforme é dito no Evangelho: “Ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai senão o Filho e àquele a quem o Filho quiser revelar” (Mt 11,27).
Comenta, Santo Agostinho, esse texto, com estas palavras: “Ninguém pode conhecer Deus a não ser que Ele mesmo se tenha revelado a quem O conhece” (Comentário ao Evangelho de São João).
4 — Deus, com efeito, revela-se de certo modo aos homens para ser conhecido pelo conhecimento natural, tendo, para isso, lhes dado a luz da razão, e tendo criado os seres visíveis, nos quais brilham alguns vestígios de Sua bondade e de Sua sabedoria, como escreveu São Paulo: “O que se pode conhecer de Deus (isto é, pela razão natural) tornou-se-lhes manifesto (aos gentios). Deus, pois, revelou-lhes (pela luz da razão e pelas criaturas)” (Rom 1,20). Acrescenta, logo a seguir, o Apóstolo: “As Suas perfeições invisíveis, tanto o Seu eterno poder, quanto a Sua divindade, tornam-se visíveis, quando a inteligência vê as Suas obras” (ibidem).
5 — Esse conhecimento é, entretanto, imperfeito, porque nem mesmo a própria criatura pode ser perfeitamente conhecida pelo homem, e nem ela é capaz de representar perfeitamente a Deus, pois, no caso, a causa excede infinitamente o efeito. Lê-se, a respeito, no Livro de Jó: “Porventura compreendes os vestígios de Deus, e conheces a perfeição do Todo-Poderoso?” (Jó 11,7). Em seguida ao que está escrito no mesmo livro — Todos os homens O vêem —, lê-se também: “Cada homem O vê de longe” (Jó 36,25).
Decorre da imperfeição desse conhecimento, que os homens tenham errado fugindo de muitos modos da verdade relativa ao conhecimento de Deus, conforme escreveu o Apóstolo: “Desvaneceram-se alguns nos seus pensamentos, ficando com os insensatos corações obscurecidos. Considerando-se sábios, fizeram-se néscios, trocando a glória de Deus incorruptível por imagens do homem corruptível, de aves, de quadrúpedes e de serpentes” (Rom 1,4).
6 — Em seguida, para afastar os homens desse erro, Deus, na Velha Lei, lhes deu conhecimento mais claro de Si mesmo, pelo qual eles foram levados a prestar culto ao único Deus, conforme se lê: “Ouve, ó Israel, é um só o Senhor teu Deus” (Deut 6,4).
Mas esse conhecimento estava oculto na penumbra das figuras, e não atingido para quem estivesse fora do povo judeu, conforme se lê: “Deus é conhecido na Judéia, e o Seu nome grandioso em Israel” (Sl 75,1).
7 — Mas para que todo o gênero humano chegasse ao verdadeiro conhecimento de Deus, em seguida, Deus Pai enviou ao mundo o Verbo Unigênito do Seu poder, para que, por meio d’Ele, todo o mundo viesse a ter o verdadeiro conhecimento do nome divino.
Começou, com efeito, o próprio Senhor, a transmitir esse conhecimento a Seus discípulos, conforme nos atestam os Evangelhos: “Manifestei o Teu nome aos que me deste do mundo” (Jo 17,6). Não era, porém, sua intenção transmitir só a eles tal conhecimento de Deus, mas desejava também que, por meio deles, o fosse divulgado em todo o universo, pois se lê logo a seguir àquele texto, no Evangelho de São João: “Para que o mundo creia que Tu Me enviaste” (Jo 17,6). Essa obra, Cristo continuou a realizar por meio dos Apóstolos, e dos sucessores destes, enquanto, por eles, os homens foram levados ao conhecimento de Deus, até que o nome santo de Deus fosse celebrado em todo o mundo, como profetizou Malaquias: “Do nascer ao por do sol, o Meu nome será engrandecido nos povos, e, em todos os lugares, será oferecida em sacrifício, em Meu nome, uma oblação pura” (Mal 1,11).
8 — Para que o que foi iniciado venha a ser também consumado, pedimos na oração: “Que o vosso nome seja santificado” Explica-no-la Santo Agostinho: “Não pedimos como se o nome de Deus já não fosse Santo. Pedimos para que ele seja santificado por todos, isto é, que Deus seja de tal modo conhecido, que nada seja tido por mais santo do que Ele”. , Entre outros indícios pelos quais a santidade de Deus é revelada aos homens, sinal evidentíssimo é a santidade dos próprios homens, que decorre da inabitação de Deus neles. A respeito disso, escreve São Gregório de Nissa: “Quem será tão estúpido que vendo a vida pura dos crentes, não glorifique o nome invocado por essas vidas?”
Tais palavras escreveu-as esse Doutor, comentando estas de São Paulo: “Se, porém, todos profetizarem, e entrar aí um infiel, ou um ignorante, por todos é convencido, por todos é julgado, e prostrado com a face por terra adora a Deus, proclamando que Deus está realmente entre vós” (I Cor 14,25).
Donde São João Crisóstomo, ao comentar a oração do Senhor, ter escrito: “Pelas palavras — santificado seja o Vosso nome —, ordena o Senhor ao que ora, que também peça que Ele seja glorificado pela nossa vida, como se dissesse: Faz-nos viver de tal modo que por nossa causa todos Te glorifiquem”. É, pois, Deus santificado nos corações dos homens, enquanto nós mesmos somos santificados por Ele.
Escreve, também comentando essa petição do Pai Nosso, São Cipriano: “Ao dizermos — santificado seja o Vosso nome —, desejamos que o nome do Senhor seja santificado também em nós, porque Cristo disse — sede santos porque Eu sou Santo.” Pedimos que nós, que fomos santificados no batismo, perseveremos na santidade em que fomos iniciados”.
Rogamos também, todos os dias, para sermos santificados, porque, já que diariamente caímos em pecado, devemos purgar a nossa falta por uma assídua santificação. Por esse motivo, essa petição vem em primeiro lugar na Oração Dominical, conforme escreve São João Crisóstomo: “É digna a oração de quem roga a Deus, se nada pede antes de pedir a glória do Pai, tudo pondo depois do seu louvor.”


CAPÍTULO IX

SEGUNDA PETIÇÃO: QUE DEUS
NOS FAÇA PARTICIPANTES
DE SUA GLÓRIA

1 — Depois do desejo e do pedido da glória de Deus, deve o homem desejar e solicitar fazer-se participante dessa glória. Donde vir, após, na Oração Dominical, o segundo pedido: “Venha a nós o Vosso Reino”.
Como fizemos na primeira petição, devemos também nesta considerar primeiro: que o reino de Deus seja convenientemente desejado; segundo: que seja possível ao homem possuí-lo; terceiro: que o homem não o pode conseguir por virtude própria, mas só por graça de Deus; e, quarto: como devemos pedir que o reino de Deus venha a nós.

(I — O HOMEM DESEJA O BEM PRÓPRIO)

1 — No tocante à primeira consideração, é sabido que a cada coisa lhe é apetecível o bem que lhe é próprio, donde ser o bem definido como “aquilo que todas as coisas apetecem.” Ora, o bem próprio de cada coisa é aquilo por meio de que ela torna-se perfeita.
Assim, dizemos que uma coisa é perfeita, porque atingiu a sua perfeição. Donde, tanto faltar de bondade a uma coisa, quanto lhe falte de sua perfeição. Deduz-se, pois, daí, que cada coisa deseja a perfeição que lhe é devida.
3 - Por essa razão, deseja também o homem aperfeiçoar-se. Ora, sendo muitos os graus da perfeição do homem, naturalmente ele deseja, antes de tudo e de modo principal, aquilo que pertence à sua última perfeição. É indício, que a isso confirma, o fato de que o desejo natural do homem aquieta-se na última perfeição.
Como, pois, o seu desejo natural não se dirige senão para o bem próprio, que consiste em alguma perfeição, é conseqüente que, enquanto o homem deseje alguma coisa, não atingiu ainda a sua última perfeição.
4 — Ora, de duas maneiras uma coisa pode ser desejada. Primeiro, quando o que é desejado o é por causa de outra coisa. Assim sendo, após se ter conseguido o desejado, o desejo não repousa, mas dirige-se para essa outra coisa. Segundo, quando o que é desejado não é capaz de plenamente satisfazer o desejo, como, por exemplo, uma porção insuficiente de alimento não sustenta o que o come, e, por isso, não satisfaz ao desejo natural da fome.

(II — AS CRIATURAS NÃO SATISFAZEM
O DESEJO NATURAL DO HOMEM)

5 — O bem que o homem primeira e principalmente deseja deve ser de tal modo constituído que lhe satisfaça, de modo suficiente, ao desejo, e que não seja desejado por causa de outra coisa. Tal satisfação é comumente chamada de felicidade, e nela se realiza o bem principal do homem. Dizemos, com efeito, que os outros são felizes, enquanto estão bem.
A felicidade é também chamada de beatitude, enquanto designa uma certa excelência. Chamam-na também de paz, enquanto, por meio dela, o apetite se aquieta, pois a quietude do apetite manifesta-se como paz interior, donde ler-se no Salmo: “Aquele que constituiu a paz para os seus fins” (Sl 147,143.
6 — Que a felicidade, ou beatitude, do homem não se realize pela posse dos bens corpóreos, fica isso evidenciado pelas razões seguintes:
Primeira, porque eles não são desejados por si mesmos, mas naturalmente o são para que, por meio deles, se possuam outras coisas. Tais bens convém ao homem segundo o seu corpo. Ora, o corpo humano é dirigido para a alma como para o fim, já porque ele é instrumento da alma enquanto o move; já porque ele se refere à alma, como a matéria, à forma. É sabido que a forma é o fim da matéria, como o ato o é da potência. Donde concluir-se que nem as riquezas, nem as honras, nem a saúde, nem a beleza, nem outras coisas semelhantes realizam a finalidade última do homem.
Segunda, é impossível que os bens corpóreos sejam suficientes para encontrar neles, o homem, a felicidade, o que se demonstra de muitos modos.
Primeiro, porque havendo, no homem, duas potências apetitivas, a saber, a intelectiva e a sensitiva, há, conseqüentemente, também, dois desejos. Ora, o desejo do apetite intelectivo inclina-se principalmente para os bens inteligíveis que são atingidos pelos bens corpóreos.
Segundo, porque os bens corpóreos, sendo os ínfimos na ordem natural, não recebem toda a bondade de maneira unificada, mas dispersivamente, isto é, este bem tem uma razão de bondade, o deleite; aquele bem, tem outra, a saúde do corpo; e assim por diante. Donde não poder o apetite encontrar em nenhum desses bens a sua satisfação, porque ele tende para o bem universal. Não a encontra nem mesmo se esses muitos bens forem multiplicados, porque, mesmo assim, eles não perfazem o bem universal, o qual é infinito. Donde lermos: “O avaro não se satisfaz com muitas moedas” (Ecle 5,9).
Terceiro, porque apreendendo o homem, pela inteligência, o bem universal, que não está circunscrito ao tempo nem ao lugar, conseqüentemente o seu apetite deseja o bem enquanto objeto que convenha à inteligência, que também não está circunscrita ao tempo, nem ao lugar. É, por conseguinte, natural, ao homem, desejar a perfeita estabilidade, a qual não pode ser encontrada nas coisas corpóreas corruptíveis e variáveis de muitos modos.
Por todos esses motivos, é conveniente que o apetite humano não encontre a sua justa satisfação na posse dos bens corpóreos. Por isso, também, neles não pode estar a última felicidade do homem.
7 — Mas porque as potências sensitivas têm operações corpóreas, devido a operarem pelos órgãos do corpo humano, deduz-se daí que nem nas operações da sua parte sensitiva consiste a felicidade última do homem, isto é, em desejos carnais.
A inteligência tem também certa operação relativa às coisas corpóreas, enquanto o homem conhece pelo intelecto especulativo as coisas corpóreas, e enquanto as ordena, pelo intelecto prático. Portanto, nem na própria operação, quer do intelecto especulativo, quer do prático, enquanto se referem às coisas corpóreas, pode o homem pôr a sua última felicidade e a sua perfeição. Não pode também encontrar a sua última felicidade na intelecção reflexiva sobre a própria alma, por dois motivos. Primeiro, porque a alma, considerada na sua essência, não é beatificada, pois, se o fosse, não teria mais necessidade de agir para alcançar a beatitude. Logo, enquanto se conhece a si mesma, não atinge a beatitude. Segundo, porque, como foi dito acima, a felicidade é a última perfeição do homem. Ora, como a perfeição da alma consiste na sua operação, a sua última perfeição deve corresponder à sua melhor operação, que deve também corresponder ao seu melhor objeto, porque as operações especificam-se pelos objetos. Ora, a própria alma não é o melhor bem a que a sua operação se possa dirigir. Ela sabe, com efeito, que ainda há algo de melhor. Logo, é impossível que o homem tenha, como sua última beatitude, as suas operações, quer aquela que se dirige para si mesmo, quer na que tem por objeto quaisquer outros seres superiores, desde que haja bem melhor para o qual tenda a operação da alma.
8 — A operação do homem tende para qualquer bem, porque ele deseja o bem universal, pois este é apreendido pela sua inteligência. Donde a operação humana da inteligência estender-se para qualquer grau de bem que se apresente, bem como, a operação da vontade. Ora, o bem encontra-se em máximo grau em Deus, que é bom pela própria essência e princípio de toda bondade. Deduz-se daí que a última perfeição do homem, e o seu último bem, realizam-se na união com Deus, conforme se lê no Salmo: “É bom para mim unir-me a Deus” (Sl 72,28).
9 — Isso torna-se também evidente ao se observar a participação das outras criaturas. Cada homem recebe individualmente a plenitude da natureza humana, porque participa da essência da espécie. Nenhum homem, com efeito, é dito homem só porque participe da semelhança de outro homem, mas unicamente porque participa da essência da espécie humana, a cuja participação um leva o outro por via de geração, isto é, o pai, ao filho. Ora, a beatitude ou felicidade nada mais é que o bem perfeito. Convém, pois, que pela só participação da beatitude divina, que é a bondade essencial do homem, todos os participantes da beatitude sejam beatificados, embora, na ordenação para a beatitude, um seja auxiliado pelo outro. Santo Agostinho, no seu livro Sobre a Verdadeira Religião, escreve que “nem ao ver os Anjos tornamo-nos beatificados, mas o somos, vendo a verdade, pela qual os amamos e com eles nos congratulamos”.
10 — Acontece que a inteligência humana dirige-se para Deus de dois modos: primeiro, por causa d’Ele mesmo; segundo, por causa de outra coisa. Por causa d’Ele mesmo, enquanto é visto em Si mesmo e por Si mesmo é por nós amado. Por causa de outra coisa, quando, pelas criaturas, o nosso espírito é elevado a Deus, conforme está escrito: “As coisas invisíveis de Deus são conhecidas por meio das coisas criadas, quando a estas conhecemos” (Rom 1,20).
11 — Não pode, porém, consistir a beatitude perfeita em que alguém se dirija para Deus por meio de outra coisa, por três motivos.
Primeiro: porque como a beatitude significa o termo de todos os atos humanos, a verdadeira e perpétua beatitude não pode coexistir naquilo que não tem razão de termo, mas que tem, mais de movimento para o termo. Com efeito, que Deus seja conhecido e amado por meio de outra coisa, tal se dá por meio de certo movimento da inteligência humana, enquanto vai discorrendo de uma coisa à outra. A verdadeira beatitude, pois, não consiste nisso.
Segundo: porque se a beatitude perfeita do homem consiste na união da inteligência com Deus, seguir-se-á que a perfeita beatitude requer a perfeita união com Deus. Mas não é possível que a inteligência humana una-se perfeitamente a Deus por meio de alguma criatura, nem pela própria intelecção, nem pelo amor, pois qualquer forma criada é infinitamente deficiente para representar a essência divina. Como não é possível que pela forma de uma ordem inferior se conheça a forma de uma ordem superior, como, pelos corpos, não se pode conhecer a substância espiritual, nem, pelos elementos, os corpos celestes, muito menos é possível que a essência de Deus seja conhecida por meio de alguma forma criada. Mas como pela consideração dos corpos inferiores negativamente percebemos as naturezas dos corpos superiores, isto é, dos corpos que não são pesados, nem leves; e como pela consideração negativa dos corpos podemos conhecer os Anjos, isto é, que são imateriais e incorpóreos, assim também, não conhecemos, pelas criaturas, o que Deus seja, mas com mais propriedade o que Ele não seja. De modo semelhante, também qualquer bondade da criatura é de certo modo mínima com relação à bondade divina, que é bondade infinita. Donde a bondade das coisas que vêm de Deus, que são benefícios de Deus, não elevarem a inteligência até à perfeição do amor de Deus.
Terceiro: porque, conforme a reta ordem, as coisas menos claras são conhecidas pelas mais claras, e, semelhantemente, as menos boas são amadas pelas mais amáveis. Como, porém, Deus é a verdade primeira e a suma bondade, enquanto em Si é sumamente conhecível e amável, a ordem natural exige que todas essas coisas sejam conhecidas e amadas devido a Ele. Se, portanto, o espírito de alguém deva ser levado ao conhecimento e ao amor de Deus por meio das criaturas, isso acontece por causa da sua imperfeição.
Portanto, ainda não adquiriu a perfeita beatitude que exclui toda imperfeição.

(III — O HOMEM ENCONTRA A
SATISFAÇÃO PLENA DOS SEUS
DESEJOS SÓ NA VISÃO INTUITIVA
DA ESSÊNCIA DIVINA)

12 — Deve, por conseguinte, a perfeita beatitude consistir na união da alma com Deus pelo conhecimento e pelo amor. E como é próprio do rei dispor dos súditos e governá-los, no homem, também, se diz que reina aquilo que dispõe das suas ações, como se lê, em São Paulo: “Não reine o pecado em vosso corpo mortal” (Rom 6,12). Porque, com efeito, é necessário, para a perfeita beatitude, que Deus seja conhecido e amado por Si mesmo, para que também por Ele o espírito seja elevado, deve Deus reinar verdadeira e perfeitamente nos homens justos. Donde estar escrito: “Quem tem misericórdia deles os rege, e os levará às fontes das águas (Is 49,10). Quer dizer: serão por Deus reconfortados em todos os bens.
13 — Devemos considerar que a inteligência tem intelecção de tudo que conhece por meio de alguma espécie ou forma, como também a visão vê a pedra por meio da forma da pedra. Mas não é possível que a inteligência veja a Deus por meio de alguma espécie ou forma criada, como se esta pudesse representar Deus. Ora, é sabido que a essência das coisas de ordem inferior não pode representar a essência das coisas de ordem superior.
Donde não ser possível conhecer a substância espiritual por meio de espécie corpórea. Ora, como Deus transcende toda ordem da criatura corpórea, em muito mais do que a substância espiritual excede a esta, é impossível que, mediante alguma espécie corpórea, seja Deus visto em sua essência.
14 — Isso torna-se ainda mais patente, se considerarmos o que seja ver uma coisa em sua essência. Quem, com efeito, tenha conhecimento de alguma coisa que pertence essencialmente ao homem, vê-lhe a essência; por outro lado, não conhece a essência do homem, quem conhece o gênero animal sem conhecer a espécie racional. Ora, tudo o que é dito de Deus, Lhe convém essencialmente. Não é, pois, possível que uma espécie criada represente Deus segundo tudo que Lhe possa ser atribuído. É, pois, deficiente a espécie pela qual a inteligência criada conhece a vida, a sabedoria, a justiça e tudo mais que se possa atribuir a Deus. Não é, conseqüentemente, possível que a inteligência criada receba uma espécie que represente Deus de tal modo que, por ela, Ele seja visto em Sua essência. Nem isso é possível por meio de muitas espécies, porque então não haveria unidade, e, em Deus, a unidade identifica-se com a essência. Resta, portanto, ser necessário, para que a inteligência criada veja a Deus em essência, que O veja diretamente em Sua essência, não por intermédio de alguma espécie.
15 — Realiza-se, com efeito, essa visão, por uma certa adesão da inteligência criada a Deus. Donde ter escrito Dionísio Areopagita, no seu Livro Sobre os Nomes Divinos, que “quando atingirmos o nosso fim beatíssimo pela presença de Deus, então seremos repletos de um certo conhecimento superinteligente de Deus”. É particularmente próprio da essência divina possibilitar à inteligência criada unir-se a si, sem intermédio de semelhança alguma, porque a essência divina identifica-se com o próprio ser de Deus, identidade essa que não se encontra em nenhuma outra forma. Donde, toda forma por si mesma existente, como a substância do Anjo, e que deva ser conhecida por outro ser inteligente, não poder ser informativa da inteligência deste. Quando é conhecida assim, é por intermédio de algo semelhante à ela mesma. Isso não pode acontecer com a essência divina, porque ela identifica-se com o ser de Deus. Eis porque a própria visão de Deus faz a alma unida com Ele.
É necessário, com efeito, que a intelecção e o seu objeto sejam, de certo modo, unificados.

(IV — A FELICIDADE PERFEITA DA
VISÃO REALIZA-SE NO REINO DOS
CÉUS, CUJA VINDA PEDIMOS
NO “PAI NOSSO”)

16 — Por isso, ao reinar Deus nos seus santos, estes também reinam com Deus. Donde São João se referir aos santos, nestes termos: “Fizestes deles reis e sacerdotes para nosso Deus, e eles reinarão sobre a terra” (Apoc 5,10). Este reino em que Deus reina nos santos, e eles com Deus, é chamado de reino dos céus, conforme se lê no Evangelho: “Fazei penitência, porque se aproxima o reino dos céus” (Mt 4,17). Esse modo de falar dá a entender que Deus esteja nos céus. Mas não se deve interpretar como se Deus estivesse contido localmente nos céus corpóreos. É expressão que designa a eminência de Deus sobre toda criatura corpórea, conforme se lê no Salmo: “Excelso o Senhor sobre todos os povos; a Sua glória está acima dos céus” (Sl 112,4). Quando, pois, se chama à beatitude dos santos de reino dos céus, não se entenda que a remuneração deles seja nos céus corpóreos, mas na contemplação das coisas que estão acima da natureza dos céus. Por esse motivo, disse Cristo dos Anjos: “Os Anjos deles vêem sempre, nos céus, a face de Meu Pai que está nos céus”‘ (Mt 18,10). Santo Agostinho, no seu Livro O Sermão do Senhor na Montanha, escreveu, ao comentar o texto — “a vossa recompensa será abundante nos céus” (Mt 5,12) —, o seguinte: “Não penso que céus,aqui neste texto, refira-se às partes superiores do mundo visível. A nossa recompensa não deve ser identificada com as coisas que voam. Mas céus, penso que se refira aos firmamentos espirituais, onde habita a justiça sempiterna”.

a) O Reino dos Céus Chama-se
Também “Vida Eterna”

17 — Esse bem final, que consiste na união com Deus, é também chamado de vida eterna, por analogia com a ação vivificante da alma, enquanto esta é também chamada de vida. Por isso, distinguem-se tantos modos de vida, quantos os gêneros das ações da alma. Entre estas, a suprema é a ação da inteligência. Por isso o Filósofo disse que “a ação da inteligência é vida”. E como o ato recebe a sua especificação do objeto, também o ato de ver a Deus chama-se vida eterna, conforme se lê no Evangelho: “A vida eterna consiste em que Te conheçam como único Deus verdadeiro” (Jo 17,3).

b) O Reino dos Céus Chama-se
Também “Compreensão”

18 — O bem final é também chamado de compreensão, conforme se lê em São Paulo: “Prossigo, para ver se compreendo a meta” (Fil 3,12). Aqui, São Paulo não se refere à compreensão no sentido em que se toma comumente o termo, isto é, importante conclusão. Ora, o que é incluído em alguma coisa é totalmente contido por ela. Não é, porém, possível que a inteligência criada veja totalmente a essência divina, como atinge-se o total e completo modo segundo o qual Deus se vê, isto é, vendo a Deus tanto quanto Ele é visível. Sem dúvida, Deus é visível conforme a claridade da sua verdade, que é infinita. Donde ser Ele também infinitamente visível. Mas tal visão não pode convir à inteligência criada, porque a sua capacidade de conhecer é finita, limitada. Somente Deus, devido à capacidade infinita da Sua inteligência, tem infinitamente intelecção de Si, e se totalmente alguém está assim se compreendendo, compreende a si mesmo.
A compreensão é prometida aos santos, enquanto esse termo significa uma certa inclinação. Quando alguém está em busca de outrem, diz-se que compreendeu a este, quando o tem em suas mãos. Escreve, a respeito, São Paulo: “Quando estamos no corpo, estamos peregrinando longe do Senhor. Andamos segundo a fé; não segundo a visão” (II Cor 5,6).
Por isso, tendemos para o Senhor como para algo distante. Mas quando pela visão Ocontemplarmos presente, tê-lO emos em nós mesmos. Donde ler-se no Cântico dos Cânticos: “Alcancei-a e não mais a deixarei” (Can 3,4). Essas palavras são ditas pelo amante que procurava a amada, e que, finalmente, a encontrou.

c) o Reino dos Céus é
Perfeito e Interminável

23 — A perfeição da posse do bem final durará para sempre. Não será imperfeita essa posse por deficiência dos bens que o homem aí gozará, porque esses bens são eternos e incorruptíveis. Donde se ler em Isaías: “Os seus olhos verão Jerusalém, a cidade rica, tabernáculo que jamais será transferido” (Is 39,9). A razão disso o próprio profeta apresenta, logo a seguir: “Porque estará aí somente o magnífico Senhor, o nosso Deus”. Toda perfeição daquele estado estará, portanto, na fruição da eternidade divina.
Não poderá, igualmente, ser aquele estado imperfeito por causa da corrupção dos que estão nele. Ora, estes, ou são incorruptíveis por natureza, como os Anjos, ou receberão a incorruptibilidade, como os homens. Lê-se a respeito: “É necessário que este ser corruptível seja revestido de incorruptibilidade” (I Cor 15,53). Lê-se também no Apocalipse: “Farei do que vencer coluna do meu templo, e dele jamais sairá” (Apoc 3,12).
Não poderá também haver imperfeição, naquele estado, porque a vontade do homem, enfastiada, dele se afaste. Ora, quanto mais Deus, que é a essência da bondade, é visto, tanto mais é necessariamente amado. Por essa razão, o gozo da posse de Deus será ainda mais desejado, conforme se lê: “Os que de mira se alimentam, sentem mais fome ainda; os que a mim bebem, ficam ainda mais sedentos” (Ecli 24,29). Por isso, referindo-se também aos Anjos que vêem a Deus, escreveu São Pedro: “A Quem os Anjos desejam também contemplar” (I Ped 1,12).
Não haverá imperfeição, naquele estado, por causa dos inimigos. Ora, nele, ninguém será molestado pelo mal, conforme se lê: “Não estará aí o leão (i. e., o diabo atacando), nem a fera má (quer dizer, os homens maus) subirá aí, nem será encontrada” (Is 35,9). Donde o Senhor referir-se às Suas ovelhas dizendo que elas jamais perecerão e que ninguém as arrebatará das Suas mãos (Cf Jo 10,28).
24 — A posse do bem final não poderá extinguir-se porque alguns sejam ainda dela excluídos por Deus. Ora, ninguém será excluído deste estado, a não ser por causa de culpabilidade.
Aí não haverá absolutamente culpa, porque também não há nenhum mal. Lê-se em Isaías: “No meu povo todos são santos” (Is 60,21).
Também não será alguém excluído porque foi elevado para um bem superior, como acontece neste mundo, quando Deus tira até dos justos as consolações espirituais ou outros benefícios, para que eles procurem mais avidamente esses bens, e também reconheçam a própria deficiência. Não será alguém excluído, justamente por ser um estado de perfeição final, e nele não podem haver correções ou aperfeiçoamentos. Donde dizer o Senhor “Aquele que a Mim vier, não o repelirei” (Jo 6,37).
25 — Haverá, conseqüentemente, naquele estado, a perpetuidade de todos esses bens supracitados, conforme se lê no Salmo: “Exultarão para sempre, e habitareis neles” (Sl 5,12).
O reino de que falamos é de beatitude perfeita e nele está a perfeição imutável de todo bem. Como a beatitude é naturalmente desejada pelos homens, deve também o reino de Deus ser desejado por todos.


CAPÍTULO X

É POSSÍVEL A OBTENÇÃO
DO REINO DOS CÉUS

26 — Devemos, agora, mostrar que ao homem é possível obter aquele reino, pois, se não o fosse, em vão o esperaria. Que isso seja possível, torna-se evidente, em primeiro lugar, por causa da promessa divina. Prometeu o Senhor: “Não temais, ó pequena grei, porque foi do agrado do vosso Pai dar-vos o reino” (Lc 12,32).
O beneplácito divino é, com efeito, eficaz no cumprimento do que foi disposto, conforme se lê: “O meu conselho permanecerá e a minha vontade será feita” (Is 46,16). Lê-se, também: “Quem poderá resistir à sua vontade?” (Rom 9,19).
Que é possível a obtenção do reino de Deus, demonstra-se em segundo lugar, por meio de um exemplo evidente...

(Falecendo em 7 de março de 1274, Santo Tomás de Aquino deixou o seu Compêndio de Teologia inacabado.
Nos primitivos manuscritos da obra, os copistas acrescentaram as seguintes palavras: “Até aqui Santo Tomás de Aquino escreveu o seu breve resumo da Teologia. Mas — ó como isso é doloroso! — antecipando-se-lhe a morte, deixou-o assim incompleto.”)



o� >% 0 �L1 � ound-repeat: repeat repeat; ">18 — O bem final é também chamado de compreensão, conforme se lê em São Paulo: “Prossigo, para ver se compreendo a meta” (Fil 3,12). Aqui, São Paulo não se refere à compreensão no sentido em que se toma comumente o termo, isto é, importante conclusão. Ora, o que é incluído em alguma coisa é totalmente contido por ela. Não é, porém, possível que a inteligência criada veja totalmente a essência divina, como atinge-se o total e completo modo segundo o qual Deus se vê, isto é, vendo a Deus tanto quanto Ele é visível. Sem dúvida, Deus é visível conforme a claridade da sua verdade, que é infinita. Donde ser Ele também infinitamente visível. Mas tal visão não pode convir à inteligência criada, porque a sua capacidade de conhecer é finita, limitada. Somente Deus, devido à capacidade infinita da Sua inteligência, tem infinitamente intelecção de Si, e se totalmente alguém está assim se compreendendo, compreende a si mesmo.
A compreensão é prometida aos santos, enquanto esse termo significa uma certa inclinação. Quando alguém está em busca de outrem, diz-se que compreendeu a este, quando o tem em suas mãos. Escreve, a respeito, São Paulo: “Quando estamos no corpo, estamos peregrinando longe do Senhor. Andamos segundo a fé; não segundo a visão” (II Cor 5,6).
Por isso, tendemos para o Senhor como para algo distante. Mas quando pela visão Ocontemplarmos presente, tê-lO emos em nós mesmos. Donde ler-se no Cântico dos Cânticos: “Alcancei-a e não mais a deixarei” (Can 3,4). Essas palavras são ditas pelo amante que procurava a amada, e que, finalmente, a encontrou.

c) o Reino dos Céus é
Perfeito e Interminável

23 — A perfeição da posse do bem final durará para sempre. Não será imperfeita essa posse por deficiência dos bens que o homem aí gozará, porque esses bens são eternos e incorruptíveis. Donde se ler em Isaías: “Os seus olhos verão Jerusalém, a cidade rica, tabernáculo que jamais será transferido” (Is 39,9). A razão disso o próprio profeta apresenta, logo a seguir: “Porque estará aí somente o magnífico Senhor, o nosso Deus”. Toda perfeição daquele estado estará, portanto, na fruição da eternidade divina.
Não poderá, igualmente, ser aquele estado imperfeito por causa da corrupção dos que estão nele. Ora, estes, ou são incorruptíveis por natureza, como os Anjos, ou receberão a incorruptibilidade, como os homens. Lê-se a respeito: “É necessário que este ser corruptível seja revestido de incorruptibilidade” (I Cor 15,53). Lê-se também no Apocalipse: “Farei do que vencer coluna do meu templo, e dele jamais sairá” (Apoc 3,12).
Não poderá também haver imperfeição, naquele estado, porque a vontade do homem, enfastiada, dele se afaste. Ora, quanto mais Deus, que é a essência da bondade, é visto, tanto mais é necessariamente amado. Por essa razão, o gozo da posse de Deus será ainda mais desejado, conforme se lê: “Os que de mira se alimentam, sentem mais fome ainda; os que a mim bebem, ficam ainda mais sedentos” (Ecli 24,29). Por isso, referindo-se também aos Anjos que vêem a Deus, escreveu São Pedro: “A Quem os Anjos desejam também contemplar” (I Ped 1,12).
Não haverá imperfeição, naquele estado, por causa dos inimigos. Ora, nele, ninguém será molestado pelo mal, conforme se lê: “Não estará aí o leão (i. e., o diabo atacando), nem a fera má (quer dizer, os homens maus) subirá aí, nem será encontrada” (Is 35,9). Donde o Senhor referir-se às Suas ovelhas dizendo que elas jamais perecerão e que ninguém as arrebatará das Suas mãos (Cf Jo 10,28).
24 — A posse do bem final não poderá extinguir-se porque alguns sejam ainda dela excluídos por Deus. Ora, ninguém será excluído deste estado, a não ser por causa de culpabilidade.
Aí não haverá absolutamente culpa, porque também não há nenhum mal. Lê-se em Isaías: “No meu povo todos são santos” (Is 60,21).
Também não será alguém excluído porque foi elevado para um bem superior, como acontece neste mundo, quando Deus tira até dos justos as consolações espirituais ou outros benefícios, para que eles procurem mais avidamente esses bens, e também reconheçam a própria deficiência. Não será alguém excluído, justamente por ser um estado de perfeição final, e nele não podem haver correções ou aperfeiçoamentos. Donde dizer o Senhor “Aquele que a Mim vier, não o repelirei” (Jo 6,37).
25 — Haverá, conseqüentemente, naquele estado, a perpetuidade de todos esses bens supracitados, conforme se lê no Salmo: “Exultarão para sempre, e habitareis neles” (Sl 5,12).
O reino de que falamos é de beatitude perfeita e nele está a perfeição imutável de todo bem. Como a beatitude é naturalmente desejada pelos homens, deve também o reino de Deus ser desejado por todos.


CAPÍTULO X

É POSSÍVEL A OBTENÇÃO
DO REINO DOS CÉUS

26 — Devemos, agora, mostrar que ao homem é possível obter aquele reino, pois, se não o fosse, em vão o esperaria. Que isso seja possível, torna-se evidente, em primeiro lugar, por causa da promessa divina. Prometeu o Senhor: “Não temais, ó pequena grei, porque foi do agrado do vosso Pai dar-vos o reino” (Lc 12,32).
O beneplácito divino é, com efeito, eficaz no cumprimento do que foi disposto, conforme se lê: “O meu conselho permanecerá e a minha vontade será feita” (Is 46,16). Lê-se, também: “Quem poderá resistir à sua vontade?” (Rom 9,19).
Que é possível a obtenção do reino de Deus, demonstra-se em segundo lugar, por meio de um exemplo evidente...

(Falecendo em 7 de março de 1274, Santo Tomás de Aquino deixou o seu Compêndio de Teologia inacabado.
Nos primitivos manuscritos da obra, os copistas acrescentaram as seguintes palavras: “Até aqui Santo Tomás de Aquino escreveu o seu breve resumo da Teologia. Mas — ó como isso é doloroso! — antecipando-se-lhe a morte, deixou-o assim incompleto.”)

Nenhum comentário:

Postar um comentário