domingo, 31 de outubro de 1999


CARTA APOSTÓLICA
Trata da condenação à escravidão e ao
 comércio dos indígenas e dos negros

1. Elevados à suprema dignidade do apostolado e representando, ainda que sem nenhum mérito, a pessoa de Jesus Cristo Filho de Deus, que por sua desmedida caridade se fez homem e se dignou morrer pela redenção do mundo, sentimos que pertence à nossa solicitude pastoral esforçar-nos para dissuadir completamente os fiéis do desumano mercado dos negros e de quaisquer outros homens.

2. Em verdade, desde quando o evangelho começou a se difundir, começou a ficar mais aliviada junto aos cristãos a condição daqueles míseros, então muito numerosos, que tinham caído em duríssima escravidão, especialmente na ocasião de guerras. Os apóstolos, inspirados pelo Espírito de Deus, ensinavam os escravos a obedecer aos patrões carnais como a Cristo, e a cumprir com satisfação a vontade de Deus, mas impunham aos senhores que agissem humanamente com os escravos para dar-lhes o que era justo e equânime, e não exercessem ameaças, sabendo que nos céus há um Senhor comum destes e daqueles, e que para Deus não há distinção de pessoas (Ef 6,5ss; Cl 3,22ss; 4,1). Como era anunciada universalmente uma sincera caridade em relação a todos como lei evangélica, uma vez que Cristo Senhor havia declarado que retinha feito ou negado a si aquilo que de bom e misericordioso houvesse sido feito ou negado aos mais pequeninos e aos indigentes (Mt 25,35ss), derivou facilmente que os cristãos não apenas considerassem como irmãos os seus escravos, especialmente se eles fossem cristãos (1), mas muitos eram também orientados a conceder a liberdade àqueles que a mereciam - o que era costume fazer-se especialmente por ocasião das solenidades pascais, como lembra Gregório Nisseno (2). Não faltaram os que, animados de caridade mais ardorosa, "entregaram-se espontaneamente à escravidão para redimir os outros". Nosso predecessor, Clemente I, homem apostólico de santíssima memória, atesta ter conhecido muitos desses (3). Portanto, com o transcorrer do tempo, tendo-se dissipado o nevoeiro das bárbaras superstições, e tendo-se mitigado os costumes também dos povos mais selvagens sob o influxo da caridade, chegou-se ao ponto que, há vários séculos, não mais existiam escravos em meio aos povos cristãos. Mas depois, e o dizemos com imensa dor, apareceram entre os cristãos alguns que, cegados de modo torpe pela cobiça do ganho sujo, em distantes e inacessíveis regiões, reduziram indígenas, negros e outros míseros à escravidão. Com comércio cada vez mais organizado, daqueles que tinham sido capturados por outros, não hesitaram em favorecer o indigno delito destes.

3. Numerosos pontífices romanos de venerando memória, nossos predecessores, como imperiosa obra de seu ministério, nunca deixaram de repreender com firmeza tal comportamento, contrário à salvação espiritual de quem o cumpre e ultrajante para o nome cristão, prevendo que os povos infiéis se tornariam sempre mais revoltados contra a nossa verdadeira religião. Confirmam-no a carta apostólica de Paulo III, datada de 29 de maio de 1537, sob o anel do pescador, endereçada ao cardeal arcebispo de Toledo, e outra mais extensa de Urbano VIII, datada de 22 de abril de 1639 ao procurador da Câmara apostólica de Portugal. Nesta carta são condenados severissimamente todos os que ousam ou intentam "reduzir à escravidão os indígenas ocidentais ou meridionais, vendê-los, comprá-los, trocá-los ou doá-los, separá-los das esposas e filhos, retirar-lhes os bens, transportá-los de um lugar para outro, privá-los por qualquer meio da liberdade, mantê-los escravos, favorecer os que praticam tudo isso através do conselho, ajuda e obra atuada sob qualquer pretexto ou nome, ou também afirmar e pregar que tudo isso é lícito, ou cooperar de qualquer outro modo no que foi dito" (4). Em seguida o Papa Bento XIV confirmou e renovou essas sanções dos mencionados pontífices com nova carta aos bispos do Brasil e de outras regiões, com a data de 20 de dezembro de 1741, pela qual estimulou a tal fim a solicitude dos mencionados prelados (5). Ainda antes outro antigo predecessor, Pio II, no tempo em que o domínio dos portugueses se estendia pela Guiné, habitada por negros, com a data de 7 de outubro de 1462, enviou uma carta ao bispo de Rubicon (Espanha) que estava se preparando para partir para lá. Naquela carta não só foram concedidas ao bispo todas as oportunas faculdades para exercitar com o maior êxito possível o seu ministério, mas naquela ocasião também condenou severamente os cristãos que reduziam a escravos os neófitos (6). Também no nosso tempo, Pio VII, movido pelo mesmo espírito de fé e de caridade, empenhou-se com muito zelo junto a homens poderosos para que o tráfico dos negros cessasse completamente entre os cristãos.

4. Essa atenção a essas sanções dos nossos predecessores contribuíram muito, com a ajuda de Deus, para que os indígenas e os outros acima mencionados fossem defendidos da crueldade dos invasores e da cupidez dos mercadores cristãos, mas não o suficiente para fazer com que esta Santa Sé pudesse alegrar-se do pleno sucesso dos seus esforços a esse respeito, dado que o tráfico dos negros, ainda que tenha diminuído notavelmente em muitas partes, todavia ainda é bastante utilizado por numerosos cristãos. Por essa razão nós, querendo fazer desaparecer o mencionado crime de todos os territórios cristãos, após madura consideração, recorrendo também a conselho de nossos veneráveis irmãos cardeais da santa Igreja de Roma, seguindo as pegadas de nossos predecessores, com a nossa apostólica autoridade, admoestamos e esconjuramos energicamente no Senhor todos os fiéis cristãos de qualquer condição que, doravante, ninguém ouse fazer violência, desapropriar de seus bens ou reduzir seja quem for à condição de escravo, ou prestar ajuda ou favorecer àqueles que cometem tal delito ou querem exercitar o indigno comércio por meio do qual os negros são reduzidos a escravos - como se não fossem seres humanos, mas pura e simplesmente animais, sem nenhuma distinção, contra todos os direitos de justiça e humanidade -, são comprados, vendidos e constrangidos a trabalhos duríssimos. Ademais, quem propõe esperança de ganho aos primeiros traficantes de negros provoca também revoltas e contínuas guerras nas suas regiões. Nós, julgando as mencionadas ações indígenas do nome cristão, condenamo-las com nossa apostólica autoridade. Proibimos e vetamos com a mesma autoridade a qualquer eclesiástico ou leigo defender como lícito o tráfico dos negros, qualquer seja o escopo ou pretexto, e de presumir ensinar outro modo, pública e privadamente, contra aquilo que com a presente carta apostólica expressamos.

5. Para que esta nossa carta chegue mais facilmente ao conhecimento de todos e ninguém possa alegar ignorância, decretamos e ordenamos que essa seja tornada pública por algum dos nossos cursores, como de costume, com a afixação nas portas da basílica do primeiro dos apóstolos e da chancelaria apostólica, como também da cúria geral de Montecitório e na praça Campo dei Fiori na Urbe, e de deixar afixadas as cópias.


Roma, dado em Santa Maria Maior, sob o anel do pescador, no dia 03 de dezembro de 1839, ano IX de nosso pontificado.


PAPA GREGÓRIO XVI



(1) Lactâncio, Divin. Institution .1.V,c.16:Bibl. veterorum patrum, editado em Veneza por Gallandio, p. 318.
(2) De Ressurrect. Domini orat.III: tom. III, p. 420, da ed. parisiense de 1638 das obras.
(3) Ad Corinthios ep. I, c. 55, t. I da bibl. de Dalland, p. 35.
(4) Commissum Nobis: Bullarium Romanum, t. 6, II, pp. 183-184.
(5) Immensa: CIC Fontes, 1 (n. 321), p. 708s.
(6) Em Rinaldo nos Annalibus ecclesiastici referentes ao ano 1462, n. 42.

O CONCEITO DE LIBERDADE RELIGIOSA
NA "DIGNITATIS HUMANAE"
DO CONCÍLIO VATICANO II

 Em matéria de liberdade religiosa na ordem civil, três pontos capitais, entre outros, são absolutamente claros na tradição católica:
1. Ninguém pode ser obrigado pela força a abraçar a fé;
2. O erro não tem direitos;
3. O culto público das religiões falsas pode, eventualmente, ser tolerado pelos poderes civis, em vista de um maior bem a obter, ou de um maior mal a evitar, mas de si deve ser reprimido, mesmo pela força, se necessário.
É o que se depreende, por exemplo, dos seguintes documentos:
PIO IX, Encíclica "Quanta Cura":
"E contra a doutrina da Sagrada Escritura e dos Santos Padres, (os seguidores do naturalismo) não temem afirmar que "o melhor governo é aquele no qual não se reconhece ao poder político a obrigação de reprimir com sanções penais os violadores da religião católica, a não ser quando a tranqüilidade pública o exija". Desta idéia absolutamente falsa do regime social não receiam passar a fomentar aquela opinião errônea e mortal para a Igreja Católica e a salvação das almas, chamada por nosso predecessor de feliz memória, Gregório XVI, loucura, a saber que "a liberdade de consciência e de cultos é um direito próprio de cada homem, que deve ser proclamado e garantido em toda sociedade retamente constituída (BAC, Doutrina Pontifícia, II documentos políticos, 1958, p. 8)".
"Syllabus" de PIO IX:
"77. Na nossa época não é mais necessário que a religião católica seja considerada como a única religião do Estado, excluídos os outros cultos.
"78. Por isso é de louvar que em regiões católicas, se tenha providenciado por lei, que aos imigrantes naquelas regiões se permita o culto público próprio deles." (BAC, ib. p. 37).
LEÃO XIII, Encíclica "Libertas":
"Portanto, na sociedade humana, a verdadeira liberdade não consiste nisto que faças o que te agrada, de onde surgiria uma grande confusão e perturbações que terminariam na destruição do próprio Estado; e sim nisto que, através das leis civis possas mais facilmente viver de acordo com as prescrições da lei eterna (BAC, ib. p. 234).
"Essa mesma liberdade, se considerada nos Estados, isto precisamente deseja, que o Estado não preste a Deus culto algum, ou queira que publicamente seja ele prestado; nenhum deve ao outro ser preferido, mas todos devem ser considerados em igualdade de direito, sem mesmo se tomar em conta o povo, caso se trate de povo católico (BAC. p. 244)".
"Deus é que fez os homens sociáveis e os colocou num grupo de seus semelhantes, para que o que sua natureza precisasse, e eles sozinhos não pudessem obter, encontrassem no convívio social. De onde, é preciso reconhecer a Deus como criador da sociedade civil, enquanto é sociedade, e, em conseqüência reconheça ela e lhe cultue o poder e domínio. Condena, pois, a justiça, condena a razão, que o Estado seja ateu, ou, o que termina no ateísmo, se mostre indiferente para as várias, como se diz, religiões, e a todas promiscuamente conceda os mesmos direitos.
"Como, pois, é necessário que haja na Sociedade Civil a profissão de uma religião, deve professar-se a única que é verdadeira, e que, sem dificuldade, especialmente nas sociedades católicas, se reconhece porquanto nela são visíveis os caracteres de sua verdade (BAC. ib. p. 244/5)".
"É, realmente, o direito uma faculdade moral que, como já dissemos e convém repetir com insistência, não podemos supor concedida pela natureza, de igual modo, à verdade e ao erro, à virtude e ao vício. Existe o direito de propagar na sociedade, com liberdade e prudência, tudo o que é verdadeiro e tudo o que é virtuoso, para que o maior número de cidadãos possa participar da verdade e do bem. As opiniões falsas, porém, a pior espécie de mal do entendimento, e os vícios corruptores do espírito e da moral pública devem ser reprimidos pelo poder público para impedir sua paulatina propagação, sumamente nociva para a mesma sociedade. Os extravios de um espírito silencioso que, para a multidão ignorante, se convertem facilmente em verdadeira opressão, devem ser punidos pela autoridade das leis não menos que os atentados da violência cometidos pelos fracos. tanto mais quanto é impossível, ou dificílimo, à parte, sem dúvida, mais numerosa da população, precaver-se contra os artifícios de estilo e as sutilezas da dialética, principalmente quando tudo isso lisonjeia as paixões (BAC. ib. p.246-7).
"Por estes motivos, não concedendo direito senão àquilo que é verdadeiro e honesto (a Igreja) não condena que a autoridade pública permita alguma coisa que se distancie da verdade e da justiça, em vista de um mal a evitar ou de conseguir manter um bem". (BAC. ib. p.253)
PIO XII, Alocução "Ci Riesce":
"Uma outra questão essencialmente diversa é: se numa comunidade de Estados possa, ao menos em determinadas circunstâncias, estabelecer-se como norma que o livre exercício de uma crença e de uma prática religiosa ou moral, as quais têm valor em um dos Estados-membros, não seja impedido em todo o território da comunidade por meio de leis ou providências coercitivas estatais. Em outros termos, pergunta-se se o "não impedir" ou seja, a tolerância, seja permitida nestas circunstâncias, e, portanto, a positiva repressão não seja sempre obrigatória.
"Há pouco aduzimos a autoridade de Deus. Pode Deus, se bem que lhe seria possível e fácil reprimir o erro e os desvios morais em alguns casos, escolher o "não impedir", sem entrar em contradição com sua perfeição infinita? Pode acontecer que, em determinadas circunstâncias, Ele não dê aos homens ordem nenhuma, não imponha dever nenhum, não conceda sequer direito algum de impedir e de reprimir o que é errôneo e falso? Um exame da realidade dá uma resposta afirmativa. Ela mostra que o que é errôneo e pecado se encontram no mundo em larga medida. Deus os reprova; não obstante os deixa existir. Daí a afirmação: o desvio moral e religioso deve ser sempre impedido, quando é possível, porque a tolerância é em si mesma imoral — não pode ter direito na sua totalidade incondicional. Por outro lado, Deus não deu nem sequer à autoridade humana um tal preceito absoluto e universal, nem no campo da fé nem da moral. Não conhecem tal preceito nem a convicção comum dos homens, nem a consciência cristã, nem as fontes da Revelação, nem a prática da Igreja. Para omitir aqui outros textos da Sagrada Escritura que se referem a esse assunto, Cristo na parábola da cizânia deu a seguinte advertência: Deixai que no campo do mundo a cizânia cresça junto com a boa semente por causa do bom grão. O dever de reprimir os desvios morais e religiosos não pode, portanto, ser uma última norma de ação. Ele deve estar subordinado a normas mais altas e mais gerais, as quais em algumas circunstâncias permitem, e mesmo fazem talvez aparecer como partido melhor o não impedir o erro, para promover um bem maior.
"Assim, se esclarecem os dois princípios, dos quais é preciso deduzir, nos casos concretos, a resposta à gravíssima questão do jurista, do homem político e do Estado soberano católico, com relação a uma fórmula de tolerância religiosa e moral do conteúdo supra indicado, a tomar-se em consideração para a Comunidade dos Estados.
"Primeiro: o que não corresponde à verdade e à norma moral, não tem objetivamente nenhum direito nem à existência, nem à propaganda, nem à ação. Segundo: o não impedi-lo por meio de leis estatais e de disposições coercitivas pode, não obstante, ser justificado no interesse de um bem superior e mais vasto" (AAS. 1953, p. 798-9.BAC, ib. p. 1013).
"Quanto à segunda proposição, isto é, à tolerância, em determinadas circunstâncias, a suportar mesmo nos casos em que se poderia proceder à repreensão, a Igreja já em atenção àqueles que em boa fé (embora errônea mas invencível) são de opinião diversa — viu-se induzida a agir e agiu de acordo com a tolerância, depois que, sob Constantino Magno e os outros imperadores cristãos, se tornou Igreja e Estado, sempre à vista de mais altos e superiores motivos; assim faz hoje e também no futuro encontrar-se-á diante da mesma necessidade. Nesses casos singulares a atitude da Igreja é determinada pela tutela e pela consideração do bem comum da Igreja e do Estado em cada Estado, de um lado, e, de outro, do bem comum da Igreja universal, do reino de Deus sobre o mundo todo" (AAS. ib. p. 801. BAC. ib. p. 1015) [1].

Não se coaduna com os documentos que acabamos de citar, a doutrina da "Dignitatis Humanae" sobre esta matéria. Com efeito, no no.2, lemos:
"Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste nisto que todos os homens devem estar imunes de coação, tanto da parte de pessoas particulares como de grupos sociais e de qualquer poder humano, e isto de maneira que, em matéria religiosa, nem se obrigue a ninguém a agir contra sua consciência, nem se impeça que proceda de acordo com ela em privado como em público, sozinho ou associado a outros, dentro dos limites devidos."
O texto é claro, e, a rigor, dispensa comentários. Há, segundo a declaração, um verdadeiro direito de todos em relação a todos: indivíduos, grupos e Estado.
Note-se, portanto, que a Declaração não considera situações concretas — ainda que muito freqüentes — que aconselhariam apermissão, a tolerância do culto falso. Pelo contrário, o texto prescinde de fatos concretos, e estabelece como princípio QUE TODO HOMEM TEM O DIREITO DE AGIR DE ACORDO COM A PRÓPRIA CONSCIÊNCIA, em particular ou em público, em matéria religiosa. [2]
Os limites à liberdade religiosa estabelecidos pela Declaração ("dentro dos devidos limites") não são suficientes, à luz do ensinamento tradicional dos Papas, para escoimá-la dos defeitos apontados [3].
Logo adiante, o texto continua:
"Este direito da pessoa humana à liberdade religiosa deve ser reconhecido na ordenação jurídica da sociedade, de maneira a que chegue a converter-se em direito civil (Dec. Lib. Hum., no. 2).
O texto é claro. O motivo pelo qual a Declaração almeja que a liberdade religiosa, nos termos indicados, se converta em direito civil, consiste em que já antes de qualquer disposição legal teria o homem esse direito. Tratar-se-ia, portanto, de verdadeiro direito natural [4]. Ora, esse princípio opõe-se ao ensinamento dos Papas anteriores.
O que causa perplexidade é o fato de que a "Dignitatis Humanae" não apenas defende a liberdade religiosa em termos que destoam da Tradição, mas afirma "ex professo" — embora sem aduzir provas — que sua posição não se choca com os ensinamentos tradicionais:
"Pois bem, como a liberdade religiosa, que exigem os homens para o cumprimento de sua obrigação de prestar culto a Deus, se refere à imunidade de coação na sociedade civil, deixa íntegra a tradicional doutrina católica sobre a obrigação moral dos homens e das Sociedades, quanto à verdadeira religião e a única Igreja de Cristo" (no. 1).
Ora, a tradição doutrinária católica sobre o dever moral dos homens e das sociedades em relação à Igreja Católica, sempre ensinou que a religião verdadeira deve ser favorecida e amparada pelo Estado, enquanto o culto público e o proselitismo das religiões falsas devem ser impedidos, se necessário pela força (embora possam, eventualmente, ser toleradas em atenção a determinadas circunstâncias concretas). E isso, a tradição doutrinária católica sempre ensinou que é um dever moral, no sentido exato do termo. É algo que as sociedades, como criaturas de Deus, devem, de maneira absoluta, à religião verdadeira.
No número 2 da "Dignitatis Humanae", lemos:
"De acordo com sua dignidade [5] todos os homens, porque são pessoas, a saber, dotados de razão e vontade livre, e, portanto, elevados pela responsabilidade pessoal, são impelidos por sua própria natureza e também por uma obrigação moral a buscar a verdade, em primeiro lugar, a que diz respeito à Religião. Estão igualmente obrigados a aderir à verdade conhecida e a ordenar toda sua vida de acordo com as exigências da verdade. Não podem, no entanto, satisfazer a esta obrigação, de maneira consentânea à sua própria natureza a não ser que gozem da liberdade psicológica e ao mesmo tempo da imunidade de coação externa. O direito à liberdade religiosa não se funda, pois, numa subjetiva disposição da pessoa, e sim na sua própria natureza. De onde, o direito a esta imunidade persevera mesmo naqueles que não satisfazem à obrigação de buscar a verdade e de a ela aderir; e seu exercício não pode ser impedido, desde que se ressalve a justa ordem pública".
Vê-se, pois, que a Declaração não reivindica a liberdade religiosa apenas para os adeptos de outras religiões, mas para todos os homens. Portanto, mesmo para os que não abraçam religião nenhuma e para os que negam a existência de Deus. Também estes, segundo a "Dignitatis Humanae", podem professar publicamente os seus erros e fazer propaganda de sua irreligiosidade. Não vemos como possa a Declaração achar que não se opõe à tradição católica esse estranho "direito" de proselitismo ateísta.
Em abono de seu conceito de liberdade religiosa, a Declaração conciliar alega alguns textos pontifícios. São eles: a Encíclica "Pacem in Terris" de João XXIII, AAS. 1963, p. 260-1; a Radiomensagem de Natal de 1942, de Pio XII, AAS. 1943, p. 19; a Encíclica "Mit Brennender Sorge" de Pio XI, AAS. 1937, p. 150; e a Encíclica "Libertas" de Leão XIII, 8, 1888, p. 237-8.

Analisemos brevemente esses quatro textos pontifícios.

O da Encíclica "Libertas" de Leão XIII, assim reza:
"Também se inculca muito a liberdade que chamam de consciência: a qual se se entender no sentido de que a cada um seja lícito, segundo seu alvedrio cultuar a Deus ou não cultuá-lo, os argumentos arrolados acima são bastantes para convencer. — Mas, pode também entender-se neste sentido de que seja ao homem lícito na sociedade seguir e executar, sem impedimento algum, a vontade de Deus e seus mandamentos. Esta é a verdadeira, a liberdade digna dos filhos de Deus que defende honestissimamente a dignidade da pessoa e isenta de qualquer violência ou injúria: ela foi sempre desejada e muito estimada pela Igreja (o.c. p. 202)".
Pode este sentido constituir uma genuína defesa da liberdade religiosa no sentido de imunidade de coação externa para o seguidor de qualquer religião? A expressão "nulla re impediente" dá a esse texto o significado de uma liberdade religiosa no sentido indicado?
O sentido real do texto não abona semelhante interpretação. Com efeito, falando da liberdade para seguir a vontade de Deus e executar suas ordens, o texto coloca frente à frente o homem de um lado, e do outro a vontade de Deus e suas ordens. E pede para o homem a faculdade de, sem impedimentos, atender a esta vontade e a estas ordens. Entende-se desde logo que o texto está tratando da vontade de Deus e de suas ordens como oficial e objetivamente se apresentam. Aliás, a interpretação favorável ao texto da "Dignitatis Humanae" seria de tal modo oposta a todo o conjunto da Encíclica, que é difícil compreender como possa ter prevalecido no texto conciliar. Leão XIII, que acabara de defender a "repressão" contra os que oralmente ou por escrito divulgam o erro (o.c. p. 196) não poderia agora contradizer-se!
O sentido da liberdade que Leão XIII aí defende é claro: como o texto mesmo diz, trata-se do direito de "seguir a vontade de Deus e de cumprir seus preceitos", de acordo com a "consciência do dever". Essa liberdade, segundo a mesma Encíclica, tem "por objetivo um bem conforme à razão (n.6; cfr. nn. 6.9); não se opõe ao princípio de que a Igreja só concede direitos "àquilo que é verdadeiro e honesto" (n.41); e é qualificada como "legítima e honesta" (n.16), por oposição à dos liberais radicais ou moderados.
Ademais, o contexto próximo do tópico da "Libertas" que estamos analisando realça ainda mais o seu verdadeiro sentido, que não é aquele que a "Dignitatis Humanae" lhe atribui.
Com efeito, a Comissão do Secretariado para a União dos Cristãos, citando o texto em análise (ver opúsculo "Schema Declarationis de Libertate Religiosa", 1965, p. 19) transcreveu apenas o tópico que reproduzimos acima. Se essa citação se tivesse estendido por mais umas poucas linhas, logo se veria que o tópico não diz respeito à liberdade religiosa no sentido de imunidade de coação externa contra a difusão das religiões falsas. Pois, a seguir, a "Libertas" diz:
"Este gênero de liberdade os Apóstolos reivindicaram constantemente, os Apologistas sancionaram em escritos, os Mártires, em ingente número consagraram com seu sangue (o.c. p. 202)".
Ora, a liberdade religiosa, no sentido de imunidade de coação externa para as religiões falsas, a própria "Dignitatis Humanae" não a defende como ensinada expressamente pelos Apóstolos, mas declara apenas que "tem raízes na revelação divina". Como poderia, pois, Leão XIII dizer que os Apóstolos constantemente reivindicaram para si essa liberdade?
E, sobretudo, como poderia Leão XIII dizer que "uma multidão inumerável de mártires" consagraram essa liberdade com seu sangue? Não temos notícia de nenhum mártir que tenha morrido para defender o "direito" dos nicolaítas, dos gnósticos, dos arianos, dos protestantes ou dos ateus, de propagarem seus erros. E, sobretudo, seria singular falar numa "multidão de mártires" que tenham derramado o seu sangue com tal intenção. Torna-se, pois, evidente que a referida passagem da "Libertas" não diz respeito à liberdade religiosa no sentido de imunidade de coação externa para os difusores de erro.
Logo no início do parágrafo seguinte, Leão XIII declara:
"Nada tem de comum esta (liberdade cristã) com o espírito sedicioso e de desobediência: nem pretende derrogar o respeito da autoridade pública, porque o poder humano tem o poder de mandar e exigir obediência na medida em que não se aparte do poder divino e se mantenha dentro da ordem estabelecida por Deus. Porém, quando o poder humano manda algo claramente contrário à vontade divina, ultrapassa os limites fixados e entra em conflito com a autoridade divina: donde é justo não obedecer (BAC, ib. p. 252)".
Ora, seria de todo em todo absurdo dizer que os liberais são contrários à liberdade religiosa no sentido de imunidade de coação externa para a difusão das religiões falsas. Torna-se, pois, claro que Leão XIII propõe aí aquela liberdade "legítima e honesta" por ele mesmo descrita e defendida anteriormente na mesma encíclica, em nome da qual podemos e em princípio devemos opor-nos às leis injustas.
Essas considerações sobre o texto da "Libertas" alegado pela "Dignitatis Humanae" tornam fácil compreender também o verdadeiro sentido das demais passagens que a Declaração conciliar cita no mesmo lugar.
Quando a "Mit Brennender Sorge" reivindica, contra o nazismo, o direito do fiel de conhecer e praticar a religião [6] o texto de fato não afirma que o erro goza de imunidade na ordem civil. Aliás, seria inconcebível que, em quatro breve linhas, pretendesse Pio XI defender uma noção católica nova de liberdade, em oposição aos Papas anteriores. É evidente que aí se defende a liberdade "legítima e honesta" de que fala Leão XIII. E é evidente que, da mesma forma como Leão XIII proclamou, em nome dessa liberdade, o direito de resistir às leis injustas e opressoras dos governos liberais, assim também Pio XI proclamou, em nome dessa mesma liberdade, o direito de resistir ao nazismo.
E quando Pio XII, durante a Segunda Guerra, numa simples frase reivindicou, entre os direitos fundamentais da pessoa, "o direito ao culto de Deus, privado e público, compreendendo também a ação religiosa da caridade [7]", o texto de sua Radiomensagem não firmava — como já observamos a propósito da "Mit Brennender Sorge" — o direito ao culto falso prestado a Deus numa religião não verdadeira. Pelo contrário, seu sentido natural é de que ao homem se reconheça o direito de prestar a Deus o culto verdadeiro, uma vez que esse é o culto devido a Deus.
Além disso, é evidente que Pio XII não pretendia modificar a doutrina católica sobre a matéria, mas defendia apenas a liberdade "legítima e honesta" tão claramente explanada por Leão XIII. Tanto mais que o mesmo Pio XII, na alocução "Ci Riesce", onde tratou "ex professo" da questão, nega qualquer direito ao que não corresponde à verdade e à norma moral.
O mesmo se diga da passagem de João XXIII citada pela "Dignitatis Humanae". Diz ela:
"Entre os direitos do homem este também deve ser enumerado, que possa cultuar a Deus segundo a reta norma de sua consciência, e professar a religião privada e publicamente (AAS, 1963, p. 260)."
Como o texto diz "de acordo com os retos ditames da própria consciência", e não "de acordo com os ditames da própria consciência reta" (como quiseram alguns), torna-se patente que João XXIII fala aí no mesmo sentido de Leão XIII na "Libertas". Esta interpretação se impõe ainda mais claramente, se consideramos que, esclarecendo o sentido do tópico indicado, João XXIII transcreve, no próprio texto principal da "Pacem in Terris", uma página de Lactâncio e uma de Leão XIII. A de Lactâncio se refere a "prestar justas e devidas honras a Deus" [8], enquanto a de Leão XIII é exatamente a mesma que comentamos acima ("Haec quidem vera, haec digna filiis Dei libertas...")
Ao terminar este estudo, julgamos oportuno desfazer uma objeção que se poderia formular da seguinte maneira:
A Declaração "Dignitatis Humanae" foi aprovada pela maioria do Episcopado. Não estaria assim garantida pelo carisma de infalibilidade, ou ao menos, como documento do Magistério Ordinário, não obrigaria a todos os fiéis?
Respondemos com as observações seguintes:
1. Como se declarou oficialmente, o Concílio Vaticano II não teve intenção de fazer novas definições solenes. Portanto, também a Declaração "Dignitatis Humanae" não está chancelada com o carisma da infalibilidade inerente às definições solenes;
2. Não obstante, uma resolução tomada pela maioria do Episcopado reunido em Concílio e aprovada pelo Sumo Pontífice obriga a todos os fiéis, embora não venha com a chancela da infalibilidade;
3. Essa obrigação, no entanto, cessa, como acontece com a "Dignitatis Humanae", quando se verificam, no mesmo caso, as duas condições seguintes:
a) é manifesto que o Episcopado universal não teve a intenção de vincular de maneira definitiva às consciências, e, ademais,
b) é também claro que semelhante documento do Episcopado universal está em desacordo com uma doutrina já imposta como certa pelo magistério ordinário de uma longa série de Papas.
(Transcrito de "Heri et Hodie" no. 6 — Campos. Republicado em PERMANÊNCIA no. 182-183)



Notas:
[1] No mesmo sentido, veja-se ainda: Pio VI, Carta "Quod aliquantum", in "La Paix intérieure des Nations", Solesmes, p. 4-5; Enc. "Adeo Nota", ib. p. 7; Pio VII, Carta Apost. "Post tam diuturnas", ib. p. 18/9; Gregório XVI, Enc. "Mirari Vos", DS. 2731ss.; Pio IX, Enc. "Singulari Nos" in La Paix Int. des Nat. p. 29; Leão XIII, Enc. "Humanum Genus", in BAC, Doct. Pont. II, p. 168; Enc. "Immortale Dei", ib. p. 193/4, 204/5, 207/8; S. Pio X, Carta "Vehementer Nos", ib. p. 384/5; Pio XI, Enc. "Quas Primas", ib. p.504; Carta "Ci é domandato", ib. vol. V, p. 125; Enc. "Non abbiano bisogno", ib. II, p. 594; Pio XII, Carta ao Episc. Bras. AAS. 1950, p. 841.
Como se vê os Papas ensinaram taxativamente que a propaganda das religiões falsas deve ser "impedida", "reprimida" ("Ci Riesce"), se necessáio portanto com coação externa. Assim sendo, não é apenas o erro, abstratamente considerado, que carece de direitos ("Libertas", BAC, p. 196; "Ci Riesce"), mas também as pessoas concretas que propagam o erro em matéria religiosa ("Syllabus", prop. 78; Enc. "Libertas", BAC, p. 196). Por outro lado, os Papas não condenaram apenas a liberdade religiosa absoluta e ilimitada, que ofende a moralidade e a ordem pública (Enc. "Libertas"). Mas declararam expressamente que é a difusão do erro, enquanto tal, que deve ser impedida, mesmo nos casos em que não prejudique a chamada ordem pública (Enc. "Quanta Cura" e "Libertas"; e "Ci Riesce"). 
[2] Por ocasião dos debates conciliares sobre a liberdade religiosa, certos autores tradicionalistas, desejosos de dar uma explicação ortodoxa ao esquema, tentaram defender que, num sentido ou noutro, os adeptos das religiões falsas gozam de verdadeiro direito de praticar publicamente e de difundir sua religião. Registramos aqui duas dessas tentativas.
O Pe. Marcelino Zalba, S.J. defendeu que a consciência invencivelmente errônea gera direitos verdadeiros, embora secundários, isto é, que cedem ante o direito superior do católico, que possui a verdade objetiva e inteira (cfr. "Gregorianum", 1964, p. 94-102; "Periodica", 1964, p. 31-67). Essa tese não nos parece condizente com os princípios do direito natural, nem com os ensinamentos dos Papas anteriores. O erro, como tal, não pode gerar verdadeiros direitos de categoria alguma, mas apenas direitos putativos.
Mons. Temiño propôs a teoria segundo a qual quem não conhece o catolicismo ou não está persuadido de sua verdade, tem o direito de professar sua religião, na medida em que esta contém o direito natural ou a ele não se opõe. Mas tal direito cede diante da religião católica ("La Conciencia y la Libertad Religiosa", Burgos, 1965, p.72). — Uma análise aprofundada dessa posição excederia os limites que nos propusemos neste estudo. Basta aqui observar que a teoria de Mons. Temiño não justificaria, de modo algum, aquilo que é o ponto central da "Dignitatis Humanae": a afirmação de um verdadeiro direito de imunidade de coação externa para todas as religiões, em paridade de condições com a religião católica. 
[3] — Quais são os "devidos limites" dentro dos quais há o "direito" de imunidade de coação externa em matéria religiosa?
O assunto é tratado "ex professo" no no. 7 da "Dignitatis Humanae"; o exercício da liberdade religiosa não pode prejudicar a composição pacífica dos direitos de todos os cidadãos, nem a honesta paz pública baseada na verdadeira justiça, nem a moralidade pública.
De acordo com documentos de uma série de Papas, vê-se que as religiões falsas não têm direito à existência nem à propaganda. Não se pode, pois, falar de um direito verdadeiro à imunidade de coação na ordem civil. Sendo assim, o problema dos limites de semelhante direito é ocioso. Onde não há direito, não se põe a questão de seus limites.
Seja-nos lícito, no entanto, observar que a "Dignitatis Humanae" propõe para a liberdade em matéria religiosa os mesmos limites que a Declaração dos Direitos do Homem na ONU estabelece para o exercício da liberdade de consciência e de religião, e que se notam, mais ou menos, nas Constituições liberais das nações modernas, inspiradas nos postulados da Revolução Francesa.
Ademais, merece aqui uma referência especial a impostação pluralista da "Dignitatis Humanae", que por sua natureza não se dirige apenas a católicos, mas orientará também não católicos (governantes ou particulares) em matéria de liberdade religiosa. — Assim sendo, quando ela fala em "composição pacífica de direitos", a que direitos se refere? Pretende a "Dignitatis Humanae" pressupor admitidos por todos, como norma do convívio, os postulados do direito natural? A Declaração conciliar ganharia muito em dizê-lo claramente. Com efeito, dada a amplidão com que a "Dignitatis Humanae" define a liberdade civil em matéria religiosa, porque excluiria ela, por exemplo, a concepção que têm os marxistas da religião?  Em sentido contrário, porque excluiria a concepção de "honesta paz pública", "verdadeira justiça", que pregam por exemplo os governos liberais ou os governos totalitários?
A indefinição da "Dignitatis Humanae" quanto aos limites do "direito" de imunidade de coação externa em matéria religiosa (direito esse que, ademais, não existe), é um elemento que, na prática, vem favorecer certos movimentos heterodoxos em sua luta contra a Santa Igreja. 
[4] — Em aula conciliar, falando em nome da Comissão do Secretariado para a União dos Cristão, Mons. de Smedt declarou: "Libertas seu immunitas a coercitione, de qua agitur in Declarationne non (...) agit de relationibus inter fideles et auctoritates in Ecclesia" — A liberdade ou imunidade de coação, de que trata a Declaração, não (...) trata das relação entre os fiéis e as autoridades na Igreja — ("Schema Declarationis de Libertate Religiosa", 1965, p. 25). Bem sabemos a grande importância que têm essas palavras para a interpretação do documento conciliar. No entanto, não podemos deixar de lamentar aqui a grande confusão que certas expressões da "Dignitate Humanae" introduzem na doutrina referente ao poder coercitivo da Igreja sobre seus súditos.
Por que o pensamento de Mons. de Smedt não foi incluído no texto conciliar? Essa omissão, só de si, num texto que visa tratar "ex professo" da imunidade de coação externa em matéria religiosa e que analisa pormenorizadamente as conseqüências de tal imunidade, leva o leitor naturalmente a pensar que também a Igreja não pode exercer coação externa sobre seus súditos.
Ademais, a Declaração defende a "liberdade social e civil" em matéria religiosa (subtítulo e passim). Ora, a palavra "social", no seu sentido comum e mesmo técnico, compreende a Igreja.
O texto conciliar propõe em termos taxativos e universais o chamado "direito" à imunidade de coação externa em matéria religiosa, que em sã lógica não se vê como coaduná-los com o direito da Igreja de exercer coação sobre seus súditos (impor penas, etc.). Pois, como poderia a Igreja contrariar um direito que é apresentado com todas as características de um direito natural.
No número 1 de "Dignitatis Humanae" lemos:
"Pariter vero profitetur Sacra Synodus officia haec (religiosa) hominum conscientiam tangere ac vincire, nec aliter veritatem sese imponere nisi vi ipsius veritatis, quae suaviter simul ac fortiter mentivus illabitur" — "Professa igualmente o Sagrado Sínodo que estes deveres (religiosos) tocam e ligam a consciência dos homens, e que a verdade não se impõe de outra maneira que não por força da mesma verdade, que penetra suave e fortemente nas almas".
No contexto, torna-se claro o sentido: esses deveres tocam e vinculam apenas a consciência. Como pode, pois, a Igreja, logicamente impor penas? E, se tomarmos as palavras em seu sentido natural, como conciliar, por exemplo, as penas medicinais impostas pela Igreja, com o princípio de que "a verdade não se impõe senão por força da própria verdade"?  
Como essa questão vai além dos objetivos que nos propusemos no presente estudo, queremos aqui apenas indicá-la brevemente, ressaltando o perigo que haveria em extenuar a doutrina sobre o poder coercitivo da Igreja. A esse respeito, escreveu Leão XIII na Encíclica "Libertas": 
"Outros, como a Igreja existe, não a negam, aliás não o poderiam, negam-lhe a natureza e os direitos próprios de uma sociedade perfeita e afirmam que a Igreja não tem o poder legislativo, judicial e coativo e que somente lhe compete uma função exortativa, persuasiva, regendo os súditos levando-os a agir por persuasão espontaneamente. Por esta opinião, esses tais falseiam a natureza desta sociedade divina, extenuam e restringem sua autoridade, magistério e eficácia" (BAC. ib. 256/7). 
[5] — Sem dúvida, vários Papas relacionaram a liberdade religiosa legítima e honesta com a dignidade humana (cfr. Leão XIII, Enc. "Libertas"; Carta Apost. "Praeclara Gratulationis", in "La Paix Int. des Nat." Solesmes, p. 215/216; S. Pio X, Carta Apost. "Notre charge" contra Le Sillon. Pio XI, Enc. "Quas Primas"; Pio XII, Radiomensagem do Natal de 1944, item de 1949, aloc. ao "Katholikentag" de Viena ("Catolicismo", no. 24, dez. 1952).
No entanto, esses Papas nunca deduziram da dignidade humana qualquer direito para o mal ou para o erro; pelo contrário, sempre ensinaram que a dignidade humana não é negada nem violentada quando, nos casos devidos, se reprime o mal. Mais ainda: ensinaram que tal repressão ao mal só contribui para o aperfeiçoamento dos indivíduos e das sociedades — e, portanto, é até um postulado da dignidade humana entendida no seu sentido autêntico.
Ao deduzir da dignidade humana um verdadeiro direito de professar publicamente o erro em matéria religiosa, a Declaração do Vaticano II situa-se em posição diversa da dos Papas anteriores. E, doutrinariamente, situa-se em posição insustentável em sã lógica, pois, só se conceberia que a dignidade humana fundamentasse um direito para o mal caso esta de algum modo se encontrasse fora ou acima da própria ordem moral. 
[6] — É o seguinte o texto da Encíclica:
"Der glaubige Mensch hat ein unverlierbares Recht, seinem Glauben zu bekennen und in den ihm gemussen Formen zu betatigen. Gesetze, die das Bekenntnis un die Betagigund dieses Glaubens unterdruken oder erschwerenn stehen in Widerspru mit einem Naturgesetz" (AAS. 1937, p. 160) — "O crente tem um direito inalienável de professar a sua fé e de praticá-la na forma que lhe convém. Estas leis, que suprimem ou tornam difícil a profissão e a prática desta fé, estão em oposição ao direito natural (em ital. AAS. 1937, p. 182). 
[7] — São estas as palavras da Radiomensagem de Pio XII que figuram na documentação apresentada ao Concílio: ver opúsculo "Schema Declarationis de Libertate Religiosa", 1965, p. 19. 
[8] — "Haec condicione gignimur, ut generanti nos Deo justa et debita obsequia praebeamus, hunc solum noverimus, hunc sequamur. Hoc vinculo pietatis obstriciti Deo et religati sumus, unde ipsa religio nomen accepit". "Somos criados nesta condição de prestar a Deus que nos cria justos e devidos obséquios, só a Ele reconheçamos e o sigamos. Presos por este vínculo de piedade a Deus estamos ligados, de onde a própria religião toma o nome". (AAS. 1963 p. 260/1).

Anti-Igreja
Quando foram distribuídos, entre os Padres Conciliares, os primeiros esquemas do 2º Concílio do Vaticano interpelaram-me: - V. acha que, para isso, seria preciso reunir um Concílio? A razão da pergunta é que os esquemas não apresentavam nenhuma novidade.
De fato, a realidade do 2º Concílio do Vaticano não era o que aparecia. E sim, seus subterrâneos.
Sob uma aparência tradicional, assegurada pela presença dos Srs. Cardeais Ottaviani, Bacci, Ruffini, Braum e outros, operava o Cardeal Bea, porta-voz das Bnai-Brith judias e demais maçônicos, convencidos de que era o momento de ultimar a obra de destruição da Igreja Católica, implodindo-a sobre si mesma.
Estruturou-se, assim, um Concílio "sui-generis": sem discussão: os oradores sucediam-se ininterruptamente, uns aos outros, vazando na assembléia o de que nutriam seus espíritos. Não havia nexo entre as várias intervenções. Quem as quisesse contestar, deveria inscrever-se na lista dos postulantes da palavra, e aguardar a sua vez, que poderia ocorrer vários dias depois.
De maneira que, no 2º Concílio do Vaticano, quem fazia tudo eram as comissões. E com tal sobranceria que, logo de início, a mesa de presidência jogou fora os esquemas propostos pela comissão preparatória, autorizada pela Santa Sé, ou seja, pelo Papa, a quem, aliás, como chefe supremo da Igreja e Vigário de Jesus Cristo, assiste o direito de propor a matéria a ser tratada nos concílios e a maneira como fazê-lo.
Eis que o 2º Concílio do Vaticano constitui-se numa anti-Igreja.
Dogma fundamental da Igreja Católica é sua necessidade para a salvação. Não têm os homens liberdade de escolher sua religião, sua igreja, conforme seu agrado, ou persuasão. Sob pena de condenação eterna, devem ingressar na Igreja Católica Romana. - Ora, o Vaticano II, neste ponto, fixa, como doutrina inconteste, precisamente o contrário: todo homem tem liberdade visceral de aderir à Religião de sua preferência.
Posta esta antítese, neste ponto básico, necessariamente, sobre ele vão se construir edifícios antitéticos. - Por isso, dizemos que o Vaticano II firmou-se como a anti-Igreja. Conseqüência: quem adere ao Vaticano II, sem restrição, só por esse fato, desliga-se da verdadeira Igreja de Cristo. Ninguém pode, ao mesmo tempo ser católico e subscrever tudo quanto estabeleceu o Concílio Vaticano II. Diríamos que a melhor maneira de abandonar a Igreja de Cristo, Católica Apostólica Romana, é aceitar, sem reservas o que ensinou e propôs o Concílio Vaticano II. Ele é a anti-Igreja.

Jornal Heri et Hodie (de Campos), nº 33 - setembro de 1986.
Cfr. Monitor Campista, 17/08/86)

Pela Fé
Começo de Ano é tempo de bons propósitos. Olha-se para trás, e percebem-se salientes os defeitos e más ações, avolumadas no decurso do ano anterior. Sobretudo os maus hábitos, adquiridos ou consolidados.
Sob o ponto de vista da Fé - o mais importante, porque nos relaciona com Deus e condiciona nosso destino eterno - o ano findo registrou um profundo abalo: - Dogmas, fixados já em definições conciliares, foram simplesmente afastados, ou melhor, negados, na orientação oficial, dada aos fiéis. - "Fora da Igreja não há salvação", afirmou o IV Concílio de Latrão, o de Florença e vários Papas; - "O Espírito Santo serve-se também de outras crenças para encaminhar as almas ao Céu" - ensina, em sentido contrário, o Concílio Vaticano II. - E o grande mestre, como tal considerado na Igreja instalada, é o Vaticano II. Não se enganaria quem disse que, na igreja nova, com o Vaticano II começou ou recomeçou a Igreja de Cristo.
Em tais condições, que antídoto proporcionar aos fiéis contra a heresia continuamente destilada pelo concílio joaneo-pauliano? - É preciso verificar qual a alavanca de que se servem os fautores do Vaticano II, para incessantemente manter presente, atuando sobre os fiéis o espírito novo do Concílio. - Conhecida a alavanca, opõe-se-lhe energia neutralizante.
Ora, a alavanca do Concílio é o "Novus Ordo Missae" de Bugnini-Paulo VI. A base, com efeito, dessa nova Missa solapa a estrutura da própria Igreja. Pois, desconhece a distinção ontológica entre clérigos e leigos. Na nova Missa, todos, padres e leigos, são igualmente sacerdotes, operando conjuntamente o Sacrifício da Missa. É, aliás para isso que se congregam. Leia-se o nº 7 da "Institutio" que precede e explica o Novus Ordo, e se encontra no Missal de Paulo VI. Por isso mesmo, a missa de Paulo VI serve também para os Protestantes. Não é uma missa especificamente católica.
E chegamos ao antídoto contra a heresia que deturpa e elimina a Fé Católica - manter estrita fidelidade à Missa chamada de S. Pio V, e fazer dela a característica do verdadeiro católico.

(Cf. Monitor Campista - 13.01.85)

Carta Pastoral "Aggiornamento" e Tradição

Confronto entre os conceitos de “aggiornamento” e de Tradição
  
EM 21 DE NOVEMBRO do ano passado, em Circular dirigida aos Nossos caríssimos Sacerdotes, procuramos, uma vez mais, avivar neles e nos fiéis a vigilância contra os perigos, a que um falso “aggiornamento” expõe a integridade da Fé e a pureza dos costumes cristãos. Já em documentos anteriores Nos ocupamos das tentações a que está exposta a vossa fé, amados filhos, e vos exortamos à vigilância e à oração. Na Circular de 21 de novembro, referíamo-Nos, especialmente, à reverência devida aos Santos Sacramentos, com que damos público testemunho de nossa fé nos mistérios que adoramos. Salientávamos, então, a importância da advertência, à vista de ser a fé indispensável para a salvação, pois, sem ela é impossível agradar a Deus – “sine fide impossibile est placere Deo” (Heb. 11, 6).
Em 8 de dezembro do mesmo ano passado, na ocorrência do quinto aniversário do encerramento do II Concílio do Vaticano, o Santo Padre, Paulo VI, em memorável Exortação, encarecia aos Bispos católicos do mundo inteiro a obrigação de cuidar da ortodoxia no ensino da doutrina católica.
Eis, pois, amados filhos, que não eram vãos os Nossos temores. Os males que receamos em Nossa diocese, de fato, ameaçam os fiéis do mundo todo. Aliás, não teria sentido a Exortação pontifícia, dirigida a todos os Bispos católicos da terra.

I

 Dever do Bispo: velar pela ortodoxia.

Dada a importância capital da matéria – a pureza da Fé – e a obrigação que Nos incumbe de bem apascentar as ovelhas de Cristo que Nos foram confiadas, julgamos de Nosso dever voltar ao assunto, comunicando ao Nosso rebanho as apreensões e admoestações do Papa. A tanto Nos convida o mesmo Pontífice, pois recorda que, a todos aqueles que receberam “pela imposição das mãos; a responsabilidade de guardar puro e intacto o depósito da Fé e a missão de anunciar o Evangelho sem desleixo” (A.A.S., 63, p. 99), impõe-se dar testemunho de sua fidelidade ao Senhor, na pregação, no ensino, no teor de vida.
De outro lado, ao direito imprescritível que tem o fiel de receber o ensinamento sagrado, corresponde aos Bispos “o dever grave e urgente de anunciar infatigavelmente a Palavra de Deus, para que o povo cresça na fé a na inteligência da Mensagem cristã” (p. 100).

Profunda crise da fé no seio da Igreja

Semelhante ofício do múnus episcopal é, hoje, mais imperioso, porque lavra no seio da Igreja uma crise generalizada e sem precedentes, como atesta a presente Exortação Apostólica, crise de autodemolição como a denomina o Papa, porque, conduzida por membros da Igreja, abala profundamente a consciência na Religião.
Afirma, com efeito, Paulo VI, no Documento que estamos a apresentar, que hoje “muitos fiéis se sentem perturbados na sua fé por um acumular-se de ambigüidades, de incertezas e de dúvidas, que atingem essa mesma fé no que ela tem de essencial. Estão neste caso os dogmas trinitário e cristológico, o mistério da Eucaristia e da Presença Real, a Igreja como instituição de salvação, o ministério sacerdotal no seio do Povo de Deus, o valor da oração e dos Sacramentos, as exigências morais que dimanam, por exemplo, da indissolubilidade do matrimônio ou do respeito pela vida. Mais: até a própria autoridade divina da Escritura chega a ser posta em dúvida, em nome de uma “desmitização radical” (p.99).
Como vedes, amados filhos, a crise na Igreja não poderia ser mais profunda. Lendo as palavras do papa, nós nos perguntamos: que ficou de intacto no Cristianismo? pois, se não há certeza sobre o dogma trinitário, mistério fundamental da Revelação cristã, se pairam ambigüidades sobre a Pessoa adorável do Homem-Deus, Jesus Cristo, titubeia-se diante da Santíssima Eucaristia, se não se entende a Igreja como instituição de salvação, se não se sabe a que o Sacerdote entre os fiéis, nem há segurança das obrigações morais, se a oração não tem valor, nem a Sagrada Escritura, que há de Cristianismo, de Revelação cristã? Compreendemos que o Papa se sinta impelido a excitar o zelo dos Bispos, apascentem com carinho, desvelo e firmeza, as ovelhas do Divino Pastor das almas.
  
Empenho por construir uma nova Igreja psicológica e sociológica.

 Tanto mais, quanto a Exortação do Santo Padre deixa entrever que há uma verdadeira conspiração para demolir a Igreja. É o que se deduz do trecho seguinte ao acima citado, no qual o Pontífice observa que as dúvidas, ambigüidades e incertezas na exposição positiva do dogma, somam-se o silêncio “sobre certos mistérios fundamentais do Cristianismo” e a “tendência para construir um novo cristianismo a partir de dados psicológicos e sociológicos” no qual “a vida cristã esteja destituída de elementos religiosos” (p. 99).
Há, pois, entre os fiéis, um movimento de ação dupla convergente para a formação de uma nova Igreja, que só pode ser uma nova falsa religião: de um lado, criam-se incertezas sobre os mistérios revelados; de outro, estrutura-se uma vida cristã ao sabor do espírito do século.

II

Ocasião e causas da atual crise religiosa.

Como foi possível chegar-se a esse estado de coisas?
Paulo VI faz, a este propósito, duas considerações.
A primeira, sobre a finalidade especial que o Papa João XXIII propôs ao II Concílio do Vaticano, como aparece claramente na Alocução com que ele abriu a primeira Sessão do grande Sínodo: “Impõe-se que, correspondendo ao vivo anseio daqueles que se acham em atitude de sincera adesão a tudo o que é cristão, católico e apostólico, esta doutrina (cristã) seja mais ampla e profundamente conhecida e que as almas sejam por ela impregnadas e transformadas. É necessário que esta doutrina, certa e imutável e que tem de ser respeitada fielmente, seja aprofundada e apresentada de maneira a satisfazer as exigências da nossa época”. E explicitando melhor o seu pensamento, prossegue o Papa Roncalli: “Uma coisa é, efetivamente, o depósito da Fé em si mesmo, quer dizer, o conjunto das verdades contidas na nossa venerável doutrina, outra coisa é o modo como tais verdades são enunciadas, conservando sempre o mesmo sentido e o mesmo alcance” (p. 101).
Deveria o Concílio, e, em conseqüência, o Magistério Eclesiástico, com o concurso dos teólogos, procurar aliar duas coisas, transmitir, sem engano ou diminuição, a doutrina revelada; e fazer um esforço por apresentá-la de modo a ser recebida íntegra e pura pelos homens de nosso tempo. Entende-se pelos homens de espírito reto, “aqueles que se acham em atitude de sincera adesão a tudo o que é cristão, católico e apostólico”, como diz João XXIII. Portanto pelos homens realmente desejosos de chegar à verdade; pois, aos que preferem as máximas deste mundo, e, por isso, rejeitam a cruz de Cristo, aplicam-se as palavras de São Paulo: é impossível uma união entre a luz e as trevas, entre a justiça e a iniqüidade, entre Cristo e Belial (cf. 2 Cor. 6, 14 s.).
Eis em que consistia o “aggiornamento” do Papa Roncalli, na sua melhor interpretação: uma adaptação, na maneira de expor a doutrina católica, de sorte que possa atrair o homem moderno de espírito reto.
Tal empenho, nota Paulo VI, e é a sua segunda observação, não é fácil. Diz ele: “O magistério episcopal estava relativamente facilitado, numa época em que a Igreja vivia em estreita simbiose com a sociedade do seu tempo, inspirava a sua cultura e adotava os seus modos de exprimir-se; hoje, ao invés, é-nos exigido um esforço sério para que a doutrina da Fé conserve a plenitude do seu sentido e do seu alcance, ao expressar-se sob uma forma capaz de atingir o espírito e o coração dos homens aos quais ela se dirige” (PP. 101-102).

Característica da nova Igreja: a religião do homem.

Ou pela dificuldade do empreendimento, ou por uma concessão ao espírito do tempo, o fato é que, na execução do plano traçado pelo Concílio, em largos meios eclesiásticos, o esforço na adaptação foi além da simples expressão mais ajustada à mentalidade contemporânea. Atingiu a própria substância da Revelação. Não se cuida de uma exposição da verdade revelada, em termos em que os homens facilmente a entendam; procura-se, por meio de uma linguagem ambígua e rebuscada, mais propriamente, propor uma nova Igreja, ao sabor do homem formado segundo as máximas do mundo de hoje. Com isso, difunde-se, mais ou menos por toda parte, a idéia de que a Igreja deve passar por uma mudança radical, na sua Moral, na sua Liturgia, e mesmo na sua Doutrina. Nos escritos, como no procedimento, aparecidos em meios católicos após o Concílio, inculca-se a tese de que a Igreja tradicional, como existira até o Vaticano II, já não está à altura dos tempos modernos. De maneira que Ela deve transformar-Se totalmente.
E uma observação rápida, sobre o que se passa em meios católicos, leva à persuasão de que, realmente, após o Concílio, existe uma nova Igreja, essencialmente distinta daquela conhecida, antes do grande Sínodo, como única Igreja de Cristo. Com efeito, exalta-se, como princípio absoluto, intangível, a dignidade humana, a cujos direitos submetem-se a Verdade e o Bem. Semelhante concepção inaugura a religião do homem. Faz esquecer a austeridade cristã e a bem-aventurança do Céu. Nos costumes, o mesmo princípio olvida a ascética cristã, e tem toda a indulgência para o prazer mesmo sensual, uma vez que, na terra, é que o homem há de buscar a sua plenitude. Na vida conjugal e familiar, a religião do homem enaltece o amor e sobrepõe o prazer ao dever, justificando, a esse título, os métodos anticoncepcionais, diminuindo a oposição ao divórcio, e sendo favorável à homossexualidade e à co-educação, sem temer a seqüela de desordens morais, a ela inerentes, como conseqüência do pecado original. Na vida pública, a religião do homem não compreende a hierarquia, e propugna o igualitarismo próprio da ideologia marxista e contrário ao ensinamento natural e revelado, que atesta a existência de uma ordem social exigida pela própria natureza. Na vida religiosa, o mesmo princípio preconiza um ecumenismo que, em benefício do homem, congrace todas as religiões, preconiza uma Igreja sociedade de assistência social e torna ininteligível o sagrado, só compreensível em uma sociedade hierárquica. Daí, igualmente a secularização do Clero, cujo celibato se considera algo de absurdo, bem como o teor de vida sacerdotal singular, intimamente ligado ao seu caráter de pessoa consagrada, exclusivamente, ao serviço do altar. Em liturgia, rebaixa-se o Sacerdote a simples representante do povo, e as mudanças são tantas e tais que ela deixa de representar adequadamente, aos olhos do fiel, a imagem da Esposa do Cordeiro, una, santa, imaculada. É evidente que o relaxamento moral e a dissolução litúrgica não poderiam coexistir com a imutabilidade do dogma. Aliás, aquelas transformações já indicavam mudanças nos conceitos das verdades reveladas. Uma leitura dos novos teólogos, tidos como porta-vozes do Concílio, evidencia como, de fato, em certos meios católicos, as palavras, com que se enunciam os mistérios da Fé, envolvem conceitos totalmente diversos dos que constam da teologia tradicional.

Importância da filosofia escolástica

A exortação de Paulo VI fala na dificuldade de obter a renovação da roupagem, em que se transmitem aos homens de hoje os mistérios de Deus. E reconhece que foram as novas expressões para as verdades de Fé que trouxeram a angústia das incertezas, ambigüidades e dúvidas. Como foram os novos termos que facultaram, aos fautores de uma nova Igreja, a difusão de uma concepção nova e estranha da Religião cristã.
É de São Pio X a afirmação de que o abandono da escolástica, especialmente do tomismo, foi uma das causas da apostasia dos modernistas (Encíclica “Pascendi”). Após o Concílio Vaticano II, retorna a meios católicos o mesmo erro, a mesma ojeriza contra a filosofia que Leão XIII apelidou “singular presídio e honra da Igreja” (Encíclica “Aeterni Patris”).
De fato, um dos sofismas dos teólogos do novo cristianismo é acusar de aristotelismo a formulação dogmática tradicional, quando a Igreja não deve estar enfeudada a nenhum sistema filosófico. Acrescentam que semelhante formulação foi útil e válida ao seu tempo, ou seja, dentro do ambiente cultural da Idade Média. Hoje, porém, em meio cultural totalmente outro, ela já não tem valor. É antes nociva. Emperra o progresso dos fiéis, e é responsável pela descristianização do mundo atual. A Igreja, se quiser reviver, se quiser conservar sua perenidade, deve abandonar as fórmulas antigas e adotar outras, de acordo com a filosofia de hoje, o pensamento e a mentalidade contemporâneos. Só assim realizará Ela o ideal proposto por João XXIII e o Concílio Vaticano II. E, para não serem tidos como negligentes no seu papel de teólogos, passam à aplicação do princípio por eles mesmos estabelecido, e, às verdades reveladas vão dando formulações, dentro da concepção da filosofia contemporânea.
A falácia não é nova. Na antiguidade, outra coisa não fizeram os gnósticos que deturparam a Revelação, para enquadrá-la dentro da filosofia neoplatônica; no século passado, foi o hegelianismo que desvairou certos teólogos católicos. Os da nova Igreja desejam servir aos marxismo, existencialismo e às demais filosofias antropocêntricas, que pululam na angústia intelectual, característica de nossa época.

O vigor do tomismo

O engano, amados filhos, dos mentores do novo cristianismo está no esquecimento a que votam uma verdade de senso comum, sem a qual é inexplicável o conhecimento, impossível a ciência e a própria vida humana. Semelhante verdade de senso comum está na base de toda filosofia, que não seja mera construção arbitrária do espírito. Consiste na persuasão de que o conhecimento é determinado pelo objeto externo. Ele é verdadeiro, quando apreende a coisa como ela é; e é falso, quando destoa da realidade. Podem variar os sistemas filosóficos. Eles serão mais ou menos verdadeiros, na medida em que suas conclusões atendam ao princípio de senso comum acima enunciado.
No acatamento a semelhante princípio, encontra o tomismo todo o seu vigor. Salienta-o Leão XIII, quando diz que o tomismo é uma filosofia “solidamente firmada nos princípios das coisas” (Encíclica “Aeterni Patris”). Ou seja, não é sistema arbitrário, fruto da imaginação ou criação subjetiva do filósofo. Muito ao contrário, a filosofia tomista, curva-se sobre a realidade, para apreendê-la como ela é.
Quando enuncia seus dogmas, servindo-se dos termos usuais na escolástica, a Igreja não o faz porque tais expressões sejam de um sistema filosófico particular, e sim, porque pertencem à filosofia de todos os tempos.

Relativismo religioso e modernismo nos teólogos da nova Igreja

Já não procedem do mesmo modo os teólogos da nova Igreja. Não estão eles atentos à realidade, cuja expressão pode variar desde que, porém, a apresente como ela é. O que eles desejam é satisfazer à mentalidade moderna. Para eles, a atualização da Igreja está na adaptação de sua doutrina a essa mentalidade. E como o homem moderno formou seu pensamento num ambiente cultural todo voltado às aparências, aos fenômenos, e, além disso, avesso à metafísica, a Igreja para não soçobrar, dizem os novos teólogos, precisa acomodar sua doutrina a semelhante maneira de pensar. Não se percebe como tal atitude possa fugir ao erro modernista, segundo o qual, o dogma evolui de um para outro sentido, de acordo com as necessidades culturais da época em que é enunciado.

Imutabilidade e desenvolvimento da verdade revelada

Lembremos que a verdade revelada se comunica ao mundo em linguagem humana. Tal linguagem, embora inadequada, não é mero simbolismo; ela deve dizer, objetivamente, o que é o mistério de Deus, ainda que o não manifeste na sua riqueza inesgotável. Eis a razão por que as fórmulas dogmáticas não podem evoluir mudando de significado. A fé, uma vez transmitida, diz São Judas Tadeu, o é “uma vez por todas” (vers. 3). Ela é imutável e invariável. Não padece adições, subtrações, ou alterações. Pode esclarecer-se, não pode transformar-se. É como um ser vivo que se desenvolve e aperfeiçoa, porém, na mesma natureza, que faz com que o indivíduo seja sempre o mesmo.

Importância das fórmulas dogmáticas tradicionais

Por isso, é de suma importância manter as fórmulas que, constituídas na Igreja, sob a assistência do Espírito Santo, a Tradição, e os Concílios fixaram, para exprimir com exatidão o conceito revelado. Semelhante linguagem dogmática pode sofrer alterações acidentais, não pode ser modificada de todo em todo.
Ora, o que, sob o signo do “aggiornamento”, assistimos após o Concílio, em vários meios católicos, é o menosprezo tanto dos costumes como das fórmulas tradicionais. Demos um ou outro exemplo.
O Concílio de Nicéia, depois de anos de lutas contra os arianos, fixou, na palavra consubstancial, o conceito da unidade de essência das Três Pessoas Divinas. Hoje, em certos meios católicos, aquele termo é conscientemente abandonado. Daí, a incerteza, a dúvida que o Papa lamenta sobre os dogmas da Santíssima Trindade e do Divino Salvador. O Concílio de Trento, contra o simbolismo protestante, consagrou o vocábulo transubstanciação, para indicar a mudança total da substância do pão e da substância do vinho no Corpo e no Sangue de Jesus Cristo. Semelhante palavra nos dá a idéia do que ocorre, objetivamente, sobre o altar, no momento da consagração da Santa Missa, e nos assegura a presença real e substancial de Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento, mesmo depois de terminado o Santo Sacrifício. Como termo aristotélico, que não condiz com as correntes filosóficas atuais, a palavra transubstanciação é rejeitada pelos teólogos da nova Igreja. Substituem-na por outra – “transignificação”, “transfinalização” – dando razão à afirmação do Papa de que se põe em dúvida o “mistério da Santíssima Eucaristia e da Presença Real”(p. 99). Na ordem prática, eliminam-se os sinais de adoração, de respeito ao Santíssimo Sacramento, como a comunhão de joelhos, com véu, a bênção do Santíssimo, a visita ao Sacrário etc.

Subversão doutrinária

Se a palavra muda, e não é sinônima, naturalmente também o conceito se modifica. Estão no caso os novos termos dos teólogos “aggiornati”, cuja conseqüência é um abalo na própria Fé. Eis que a nova terminologia, de fato, introduz uma nova religião. Não estamos mais no Cristianismo autêntico. Aliás, as inovações não ficam apenas em troca de palavras. Vão mais longe. Na realidade, excitam uma subversão total na Igreja. Como a filosofia moderna sobreestima o homem, a quem faz juiz de todas as coisas, a nova Igreja estabelece, como dissemos, a religião do homem. Elimina tudo quanto possa significar uma imposição à liberdade ou uma repressão à espontaneidade humanas. Desconhece, assim, a queda original e extenua a noção do pecado. Não compreende “o sentido da renúncia evangélica” (p. 105), e propugna uma religião natural de base nas experiências “psicológicas e sociológicas” (p. 99).

III


Remédio para o mal: fidelidade à tradição

a. INDICAÇÃO DE PAULO VI

Como causa do aturdimento que sofrem os fiéis, angustiados porque já não têm mais certeza sobre o que devem crer e sobre como hão de agir, Paulo VI aponta o abandono da Tradição. De onde, o antídoto a tão profunda crise de linguagem, pensamento e ação, só encontramos na fidelidade à tradição.
O Documento de Paulo VI insiste sobre este ponto. As atuais circunstâncias, assim o Papa, exigem de nós maior esforço, para que “a palavra de Deus chegue aos nossos contemporâneos, na sua PLENITUDE, e para que as obras realizadas por Deus lhes sejam apresentadas SEM ADULTERAÇÃO, e com a intensidade do amor à verdade que os salve” (p. 98 – grifos nossos). Tão nobre incumbência só é exeqüível mediante a fidelidade à “Tradição ininterrupta que liga(nosso cristianismo) a Fé dos Apóstolos” (p. 99). Deve, pois, cada Bispo, na sua Diocese, estar atento por que os novos estudos “não venham a atraiçoar nunca a verdade e a CONTINUIDADE da doutrina da Fé”(p. 101 – grifo nosso). Aliás, todo o trabalho dos teólogos deve ser no sentido da “fidelidade à grande corrente da Tradição cristã” (p. 102), porquanto “a verdadeira Teologia se apóia sobre a palavra de Deus inseparável da Sagrada Tradição como sobre um fundamento perene” (p. 103).
Em resumo, Paulo VI sintetiza (p. 18) a norma do Magistério Eclesiástico na palavra de São Paulo: “ainda que alguém – nós ou um Anjo baixado do Céu – vos anunciasse um evangelho diferente do que temos anunciado, que ele seja anátema (Gal. 1, 8), e prossegue o Papa:“Não somos nós, com efeito, que julgamos a palavra de Deus: é ela que nos julga e que põe em evidência os nossos conformismos mundanos. A fraqueza dos cristãos, mesmo a daqueles que têm a função de pregar, não será jamais, na Igreja, motivo de edulcorar o caráter absoluto da palavra. Nunca será lícito cegar o gume de sua espada (cf. Heb. 4, 12; Apoc. 1, 16; 2, 16). À Igreja nunca será permitido falar de modo diverso do de Cristo, da santidade, da virgindade, da pobreza e da obediência” (p. 101).

b. EXEMPLO HISTÓRICO: NESTÓRIO E A SANTA MÃE DE DEUS

As palavras do Papa não poderiam ser mais claras, nem mais incisivas, como taxativas são as palavras do Apóstolo por ele citadas, aliás, elas não passam de um eco da maneira de agir da Igreja, sob o impulso vivificante do Espírito Santo. É fato largamente comentado em toda formação religiosa, o ocorrido com Nestório, Patriarca de Constantinopla. Transcrevemo-lo, aqui, segundo o narra D. Prosper Guéranger, na sua conhecida obra “L’Année Liturgique”, ao comentar a festa de São Cirilo de Alexandria, em 9 de fevereiro: “No próprio ano da sua eleição ao trono episcopal, no dia de Natal de 428, aproveitando a grande multidão que se aglomerava na Basílica Catedral, do alto do púlpito, Nestório pronunciou esta blasfêmia: Maria não deu a luz a Deus; seu filho não era senão um homem, instrumento da Divindade. Um frêmito de horror percorreu a multidão, e um leigo, Eusébio, levantou-se do meio do povo e protestou contra a impiedade. Toda a História, até hoje, se regozija com essa atitude. Ela salvou a fé de Bizâncio”.

c. NORMA GERAL

D. Guéranger, dá, então, o princípio geral: “Quando o Pastor muda-se em lobo, pertence, em primeiro lugar, ao rebanho defender-se. Normalmente, sem dúvida, a doutrina desce dos Bispos ao povo fiel, e os súditos, nas coisas da Fé, não devem julgar seus Chefes. Há, porém, no tesouro da Revelação, pontos essenciais, cujo conhecimento necessário e guarda vigilante todo cristão deve possuir, em virtude de seu título de cristão. O princípio não muda, quer se trate de crença ou procedimento, de moral ou de dogma. Traições como a de Nestório são raras na Igreja; não assim o silêncio de certos Pastores que por uma ou outra causa, não ousam falar, quando a Religião está engajada. Os verdadeiros fiéis são os homens que extraem de seu Batismo, em tais circunstâncias, a inspiração de uma linha de conduta; não os pusilânimes que, sob pretexto especioso de submissão aos poderes estabelecidos, esperam, para afugentar o inimigo, ou para se opor a suas empresas, um programa que não é necessário, que não lhes deve ser dado”.

d. A IMPORTÂNCIA DA TRADIÇÃO

Quisemos ilustrar o critério lembrado por Paulo VI, devido à importância especial que ele assume nos dias que correm, como é notório a quem observa o que se passa em certos meios católicos. Aliás, tal é o valor da Tradição, que mesmo as Encíclicas e outros Documentos do Magistério ordinário do Sumo Pontífice, só são infalíveis nos ensinamentos corroborados pela Tradição, ou seja, por uma doutrinação contínua, através de vários Papas e por largo espaço de tempo. De maneira que, o ato do Magistério ordinário de um Papa que colida com o ensinamento caucionado pela Tradição magisterial de vários Papas e por espaço notável de tempo, não deveria ser aceito.
Entre os exemplos que a História aponta de fatos semelhantes, avulta o de Honório I. Viveu este Papa, ao tempo em que a heresia monotelita fazia estragos na Igreja do Oriente. Negando a existência de duas vontades em Jesus Cristo, renovam os monotelitas o absurdo que Êutiques introduziu no dogma, quando pretendeu que em Jesus Cristo havia uma só natureza, composta da natureza divina e da natureza humana. Habilmente, o Patriarca Sérgio de Constantinopla insinuou no espírito de Honório I que a pregação das duas vontades no Salvador só causava divisões no povo fiel. Acendendo aos desejos do Patriarca, que eram também os do Imperador, o Papa Honório proibiu que se falasse nas duas vontades do Filho de Deus feito homem. Não advertiu o Pontífice que seu ato deixava o campo aberto à difusão da heresia. Por isso mesmo não se lhe devia dar atenção. Entre os que lamentaram o ato de Honório I estão o VI Concílio Ecumênico, que foi o terceiro reunido em Constantinopla, e São Leão II, Papa, ao confirmar aquele Concílio. Entre os que continuaram a ensinar as duas vontades em Jesus Cristo, está o grande São Máximo, chamado de Confessor porque selou com o martírio sua fidelidade à doutrina católica tradicional.

e. NORMA DE JULGAMENTO PARA AS NOVIDADES

Guardemos, pois, com o máximo respeito e atenção, o critério de aferimento para as novidades que surgem na Igreja:
- Ajustam-se elas à Tradição? – São de boa lei.
- Não se ajustam, opõem-se à Tradição, ou a diluem? – Não devem ser aceitas.
Tradição, é certo, não é imobilismo. É crescimento, porém, na mesma linha, na mesma direção, no mesmo sentido, crescimento dos seres vivos que se conservam sempre os mesmos. Por isso mesmo, não se podem considerar tradicionais, formas e costumes que a Igreja não incorporou na exposição de sua doutrina, ou na sua disciplina. A tendência, nesse sentido, foi chamada por Pio XII “reprovável arqueologismo” (Encíclica “Mediator Dei”). Isto posto, tomemos como norma o seguinte princípio: quando é visível que a novidade se afasta da doutrina tradicional, é certo que ela não deve ser admitida.

Vários modos de corromper a Tradição

Pode-se concorrer para destruir a Tradição de vários modos. Há, mesmo, entre eles uma escala que vai da oposição aberta ao desvio quase imperceptível. Exemplo de oposição clara, temos nas várias atitudes tomadas por teólogos, e até Autoridades Eclesiásticas, rejeitando a decisão da Encíclica “Humanae Vitae”. De fato, o ato de Paulo VI, declarando ilícito o uso dos anticoncepcionais, insere-se numa Tradição ininterrupta do Magistério Eclesiástico. Não aceitá-lo, ensinando o oposto do que ele prescreve, ou aconselhando práticas por ele condenadas, constitui exemplo típico de negação de um ensinamento tradicional.
Mais sinuosa é a falácia, quando se fere a Tradição, através de elucidações dogmáticas que, sem negarem os termos tradicionais, de fato, são incompatíveis com os dados revelados; por exemplo, continuar a fazer profissão de fé no mistério da Santíssima Trindade, mas substituir sistematicamente o termo consubstancial por outro que não tem o mesmo significado, como a palavra natureza.
Há igualmente descaminhos para a heresia, nas deduções que ampliam o conteúdo das premissas. Assim, declarar que, em virtude da colegialidade, o Papa pode resolver sem ouvir o Colégio Episcopal, é incidir no conciliarismo que subverte a Igreja de Cristo.
Mais subtis, são os novos usos, especialmente em liturgia, que subrogam aos antigos, e que não só não são dotados da mesma riqueza, senão que insinuam outros conceitos religiosos. Em Nossa Pastoral de 19 de março de 1966, sublinhamos a importância que têm os usos e costumes, tanto no afervoramento da fé, como, em sentido contrário, no solapamento desta mesma fé, sempre que o procedimento pressupõe, e portanto, difunde conceitos errôneos sobre as verdades reveladas.
Evidentemente, não é a mesma a responsabilidade pessoal que há nessas várias maneiras de contestar a Tradição. Nas circunstâncias atuais, no entanto, todas elas oferecem perigo à fé, e talvez mais aquelas que menos aparecem como opostas à Igreja tradicional. Segue-se que de nós se pede cuidadosa vigilância, não venhamos a assimilar o veneno meio inconscientemente. Se há gente de boa fé que, por ignorância ou ingenuidade, nas novidades que vai aceitando, tenciona apenas obter uma nova expressão da verdadeira Igreja: há também e sobretudo a astúcia do demônio que se serve dessas mesmas intenções para desgarrar os fiéis da ortodoxia católica.

Os falsos profetas e os novos Catecismos

Na Exortação Apostólica, que sugere estas considerações, insiste o Papa, sobre a ação dos falsos doutores, que, vivendo no meio do povo de Deus, corrompem a Fé e a Religião. Assim, diz que é “para nós, Bispos”, aquela advertência que se encontra em São Paulo: “virá tempo em que os homens já não suportarão a sã doutrina da salvação. Levados pelas próprias paixões e pelo prurido de escutar novidades, ajuntarão mestres para si. Apartarão os ouvidos da verdade e se atirarão às fábulas” (2 Tim. 4, 3-4), e mais adiante, torna Paulo VI ao mesmo toque de alerta, ainda com palavras do Apóstolo: “do meio de nós mesmos, como já sucedia nos tempos de São Paulo, surgirão homens a ensinar coisas perversas para arrebatarem discípulos atrás de si (Atos 20, 30)” (p. 105).
Quando os inimigos estão dentro de casa, como denuncia aqui o Papa, é sumamente néscio quem não redobra a vigilância. Na atual crise da Igreja, podemos dizer que nossa salvação está condicionada ao emprego de todos os meios que preservem a integridade da nossa Fé. Portanto, é necessária, hoje, maior atenção para evitar as ciladas armadas contra a autenticidade de nosso Cristianismo.
Em Nossa Instrução Pastoral sobre a Igreja, de 2 de março de 1965, fundamentamos semelhante advertência, mostrando como o espírito modernista, infiltrado nos meios católicos, introduz entre os fiéis, o relativismo e o naturalismo religiosos, subvertendo o dogma e a moral revelados. Da difusão de semelhante espírito incumbem-se, atualmente, os novos Catecismos. Eis que nos toca o dever de chamar vossa atenção, amados filhos, sobre essas novas obras de ensino e formação religiosa que, a título de fé para adultos ou para o homem moderno, destroem a doutrina tradicional, ora pelo silêncio, ora por omissões, ora de maneira positiva, por concepções contrárias à verdade sempre ensinada pela Igreja. São os novos Catecismos o meio de inocular na mente dos fiéis a nova religião, em consonância com as correntes evolucionista e racionalista do pensamento moderno.
Não levantamos nenhum julgamento sobre as intenções dos autores dos novos Catecismos. Não Nos esquecemos, no entanto, de que o“homem inimigo”, ou seja, o demônio, que tudo faz para perder as almas, se aproveita das perturbações causadas na Igreja pelos pruridos de novidade, e nelas mesmas insinua os sofismas com que corrompe a Fé e perverte os costumes. Sendo, como são, os novos Catecismos instrumentos para formar, na Religião, as novas gerações, seria ingênuo pensar que o anjo das trevas não procurasse servir-se deles, para a realização de sua obra sinistra. De fato, pois, objetivamente, os novos Catecismos devem ser colocados, entre os fautores da autodemolição da Igreja, de que fala o Papa.
Nunca é demais salientar a importância do Catecismo. E, em conseqüência, nunca será excessivo alertar os fiéis contra os textos de Catecismo que subvertem a Religião de Nosso Senhor Jesus Cristo.

IV

A profissão de fé nas práticas litúrgicas e religiosas

Na sua Exortação Apostólica, Paulo VI onera a consciência dos Bispos, cuidem que a doutrina seja transmitida pura não só no ensino, como no exemplo que há de vivificar as palavras.
Refere-se o Papa aos auxiliares dos Bispos na difusão da sã doutrina. Sua afirmação, no entanto, comporta interpretação mais ampla, uma vez que, nos atos piedosos, fazemos viva profissão de nossa fé. Em outras palavras: o que cremos com a inteligência, isso realizamos na nossa vida católica, especialmente nas práticas religiosas. Em sentido inverso, é pelos atos cotidianos que, ou alimentamos a nossa fé, ou a entibiamos, segundo nosso procedimento se conforme com o que cremos, ou dele se afaste.
E aí tendes, amados filhos, toda a importância das práticas piedosas tradicionais. Nutriu-se com elas a fé das gerações passadas, que, com seu exemplo, nos transmitiram o amor a Jesus Cristo, à sua doutrina e aos seus preceitos. Elas fortificarão, hoje também, a nossa fé, e nos darão as energias de seguir o exemplo dos nossos irmãos, que nos precederam no santo temor de Deus. Nesta mesma ordem de idéias, devemos precaver Nossos amados filhos, contra as práticas religiosas, nas quais ou se incarna o espírito da nova Igreja, ou extenua-se a adesão aos mistérios revelados. Tratando-se de questão capital, que interessa à salvação eterna, recomendamos vivamente aos Nossos caríssimos filhos, que se mantenham fiéis aos exercícios ascéticos encarecidos pela Igreja: meditação, exame de consciência, atos de mortificação, visitas ao Santíssimo, confissão e comunhão freqüente, oração contínua, e, de modo especial, a reza cotidiana do terço de Nossa Senhora.

O culto à Santíssima Eucaristia

De modo particular, novamente, lembramos aos Nossos amados filhos a reverência que tradicionalmente se deve à Santíssima Eucaristia, reverência com que fazemos profissão de fé na presença real e substancial do Deus humanado no Sacramento do Altar. De acordo com o costume tradicional, que, segundo a Sagrada Congregação do Culto Divino, onde existe, deve ser conservado, recebam os fiéis, a Sagrada Comunhão sempre de joelhos, e as senhoras e moças com a cabeça coberta, e jamais se aproximem dos Santos Sacramentos em veste que desdizem do respeito e reverência para com as coisas sagradas.

Dessacralização

Tenhamos sempre todo respeito pelo lugar sagrado. Uma das características da Igreja nova é a dessacralização. Condena ela os edifícios próprios para o culto, e deseja que a Religião se dissolva na vida comum do indivíduo. Sob a alegação de que tudo é sagrado, na realidade, tudo reduz ao profano. Jesus Cristo atendia muito à distinção entre o sagrado e o profano. Comentando o trecho de São João, em que o Divino Mestre expulsou os vendilhões, declara Santo Agostinho que o mal não consistia em que se vendiam animais, porquanto licitamente se vende o que licitamente se oferece no Templo. O mal estava em que a venda se fazia, por mero interesse, num lugar sagrado, de si destinado a oração e ao culto divino (cf. in Jo. tr. X).

Proteção e mediação de Maria Santíssima

Acenamos, amados filhos, a algumas práticas, através das quais, procura-se instaurar na Igreja um cristianismo novo, destoante daquele que Jesus Cristo veio trazer à terra. Em Nossa Pastoral de 19 de março de 1966, sobre a aplicação dos Documentos conciliares, salientamos o grande perigo que de tais práticas se origina para a fé, intoxicadas, como estão, pela heresia difusa que encontra conivência na mentalidade relativista do mundo moderno. A situação é tão grave, o mal tão profundo, que hoje, mais do que em tempos passados, é necessário o apelo aos meios sobrenaturais da graça. Entregues a nós mesmos, somos incapazes de resistir à onda elevada pelos falsos profetas, e menos ainda de fazê-la amainar, de modo que possam as almas continuar serenamente nas vias da imitação do Divino Salvador.
Recorramos, pois à oração, e especialmente à devoção a Maria Santíssima, Senhora nossa. A Tradição é unânime em apresentá-La como Medianeira de todas as graças, como Mãe terníssima dos cristãos, empenhada na salvação de seus filhos, como interessada na integridade da obra de seu Divino Filho. Nas situações difíceis, em que Se tem encontrado, a Igreja habituou-nos a suplicar o valioso e eficaz auxílio da Santa Mãe de Deus, seja para profligar heresias, seja para impedir que o jugo dos infiéis pesasse sobre os cristãos. Podemos dizer que a Igreja jamais Se achou em crise tão grave e tão radical, como a que hoje alui seus fundamentos desde os seus primeiros alicerces. É sinal de que a proteção de Maria Santíssima se torna mais necessária. A nós compete fazê-la real mediante nossas súplicas à Santa Mãe de Deus. Nesse sentido, renovamos a exortação que fizemos à reza cotidiana do terço do santo Rosário, cuja valia aumentaremos com a imitação das virtudes de que a Virgem Mãe nos dá particular exemplo: a modéstia, o recato, a pureza, a humildade, o espírito de mortificação na renúncia de nós mesmos, e a caridade com que, pelo bom exemplo, como discípulos de Cristo “impregnamos de seu espírito a mentalidade, os costumes, e a vida da cidade terrena” (p.105). Confiamos que a proteção da Santa Mãe de Deus nos conservará a fidelidade à Tradição na nossa profissão de fé e nas nossas práticas religiosas, como nos hábitos de nossa vida católica.
Certo de que tão excelsa proteção jamais nos faltará, enviamos aos Nossos zelosos Cooperadores e amados filhos, Nossa cordial bênção pastoral, em nome do Padre, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

Dada e passada na Nossa Episcopal Cidade de Campos, sob Nosso sinal e selo de Nossas armas, aos onze dias do mês de abril do ano de mil novecentos e setenta e um, na Santa Páscoa do Senhor.