segunda-feira, 11 de outubro de 1999


CAPÍTULO XCIX

RAZÕES QUE AFIRMAM A NECESSIDADE
DE A MATÉRIA TER PRECEDIDO DESDE A
ETERNIDADE A CRIAÇÃO DO MUNDO,
E REFUTAÇÃO DAS MESMAS

Se as coisas perfeitas foram produzidas desde a eternidade, parece também ser necessário admitir que a matéria exista desde a eternidade.
1 — Tudo que recebe o ser depois de não ter existido sofre mudança do não-ser para o ser. Por conseguinte, se as coisas criadas, como sejam o céu, a terra e outros seres, não existissem desde a eternidade, mas começassem a existir após terem não-existido, é necessário afirmar que elas sofreram mudança do não-ser para o ser.
Ora, toda mudança e movimento realizam-se em algum sujeito. O movimento, com efeito, é o ato de um ser em potência; o sujeito, porém, da mudança que faz alguma coisa existir, não é a própria coisa produzida. Esta é o termo do movimento, pois não se identificam o termo do movimento e o sujeito, sendo, então, o sujeito dessa mudança aquilo de que a coisa provém. Este sujeito chama-se matéria. Vê-se, pois, que se as coisas produzidas no ser existem depois de não terem existido, é necessário ter-lhes alguma matéria preexistido, matéria esta que, se também foi feita e antes não existia, deve ter uma outra matéria que a precedeu. Ora, não se pode admitir um processo até o infinito. Logo, é necessário admitir uma matéria eterna, que não foi produzida depois de não ter existido.

2 — Ademais, se o mundo começou a existir depois de não ter existido, foi possível que o mundo viesse a existir, isto é, tivesse sido feito ou não.
Se não fora possível ele existir, ou ser feito, devemos admitir que seria de fato impossível o mundo vir a existir, ou ser feito, já que, o que é impossível ser feito, necessariamente não é feito. Logo, necessariamente, o mundo não foi feito.
3 — Como, porém, essa afirmação é manifestamente falsa, necessariamente se deve dizer que se o mundo começou a existir depois de não ter existido, o mundo fora possível existir antes de ter existido, ou de ter sido feito. Havia, portanto, algo em potência para a produção e para a existência do mundo. Ora, o que está em potência para a produção, e para a existência de alguma coisa, chama-se matéria, como a madeira é a matéria da qual se faz o banco. Logo, parece necessário que a matéria tenha sempre existido, mesmo que o mundo não tenha sempre existido.
4 — Como, porém, demonstrou-se acima que também a matéria não pode vir senão de Deus, por esse motivo a Fé Católica não confessa que a matéria é eterna, nem que o mundo é eterno. Deve estar patente nas coisas a causalidade divina, de modo que se deve afirmar que as coisas produzidas por Deus começaram a existir depois de não terem existido. Eis porque, manifesta e evidentemente, as coisas não existem de si mesmas, mas existem causadas por um autor eterno.
5 — As razões acima aduzidas, portanto, não nos obrigam a aceitar que o mundo seja eterno, pois a produção universal das coisas não pode propriamente ser chamada de mudança. Ora, em nenhum mudança o sujeito dessa mudança é por ela produzido, pois, como vimos acima, o sujeito da mudança não se identifica com ela ou com seu termo.
Como, por conseguinte, a produção universal das coisas feitas por Deus, que se chama criação, atinge tudo que existe, nessa produção não se salva propriamente a razão de mudança, mesmo que as coisas criadas existam depois de não terem existido. Ser depois de não ser não é suficiente para a essência da mudança, a não ser que se suponha que o sujeito esteja em determinado momento privado da forma, e, depois, atuado por ela. Em algumas coisas acontece também isto após aquilo, nas quais não se salva propriamente ou razão de movimento, ou de mudança, como quando se diz que do dia faz-se a noite. Assim, também, mesmo que o mundo tenha começado depois de não ter existido, não se deve dizer que isso tenha vindo de alguma mudança, mas por criação, que propriamente não é mudança, mas uma certa relação das coisas criadas com o Criador, de acordo com a sua dependência no ser em ordem ao não-ser precedente. Ora, em toda mudança deve existir algo idêntico referindo-se diversamente por dependência ora a um extremo, ora a outro. Mas tal não se dá na criação das coisas. Existe somente em nossa imaginação, enquanto imaginamos que uma e mesma coisa não tivesse existido, e, depois, venha a existir. Só por semelhança isso pode ser chamado de criação.
6 — A segunda objeção também não é convincente. Embora seja verdadeiro afirmar que antes de o mundo existir era possível tivesse existido, ou que tivesse sido feito, contudo isso não pode ser afirmado relativamente à potência. Na parte da Lógica que trata das proposições, chama-se de possível a proposição que significa um certo tipo de verdade que não é necessária nem impossível. Ensina-nos o Filósofo que esse possível não pode ser atribuído à potência (Metafísica, cap. V).
Se, porém, afirmar-se que o mundo seria possível existir, referindo-se essa possibilidade a alguma potência, não é necessário que assim o seja conforme a potência passiva, mas conforme a potência ativa. Assim é que, quando se diz que o mundo era possível existir antes de ter existido, tal expressão deve ser entendida no sentido de que Deus poderia produzir o mundo no ser, antes de o ter criado. Logo, não somos obrigados a admitir que a matéria tenha preexistido ao mundo[1].
Eis porque a Fé Católica confessa que nada existe eternamente com Deus, e que Ele é o “Criador (e o Fazedor) de todas as coisas visíveis e invisíveis”.


CAPÍTULO C

EM TODAS AS SUAS AÇÕES
DEUS VISA O FIM

1 — Acima foi demonstrado que Deus produz as coisas no ser, não por necessidade, mas pela inteligência e pela vontade. Ora, agindo em tudo assim, sempre age visando uma finalidade, porque o fim é o princípio do intelecto operativo. Logo, tudo que é feito por Deus é feito em vista de um fim.
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2 — Ademais, a produção das coisas por Deus realiza-se de modo ótimo, porque é próprio do ser ótimo fazer cada coisa otimamente. Ora, é melhor que uma coisa seja feita visando um fim que sem o visar, porque as coisas feitas recebem do fim o seu sentido de bem. Logo, as coisas feitas por Deus o são para um fim[2].
3 — Aparece um sinal disso nas coisas movidas pela natureza, porque nelas nada existe em vão, mas cada coisa dirige-se para um fim. Ora, é inconveniente dizer que as coisas feitas pela natureza são mais ordenadas que a própria instituição da natureza feita pelo primeiro agente, pois toda ordem natural deriva dessa instituição. É evidente, conseqüentemente, que as coisas feitas por Deus o são para um fim.


CAPÍTULO CI

O ÚLTIMO FIM DE TODAS AS COISAS
E A BONDADE DIVINA

1 — Convém que a bondade divina seja o último fim das coisas.
O fim último das coisas feitas por um agente voluntário é o que por ele em primeiro lugar, e por si mesmo, é querido, de modo que todo agente em todas as suas ações age em função dele. Como acima se verificou, o que por primeiro quer a bondade divina é a sua própria bondade. Por conseguinte, é necessário que o fim último de todas as coisas feitas por Deus seja a bondade divina.
2 — Ademais, o fim da geração de qualquer coisa gerada é a sua própria forma, pois esta, quando adquirida, termina a geração.
Todas as coisas geradas, quer pela arte, quer pela natureza, assemelham-se, de certo modo, pela forma, ao agente, pois todo agente faz com que a coisa assemelhe-se a si de algum modo: a casa construída é feita de acordo com a casa que existe na mente do arquiteto; na ordem natural, um homem gera outro homem semelhante a si. Se nessa ordem, porém, alguma coisa é gerada ou feita sem semelhança específica com o que gera, assemelha-se, contudo, ao agente, como o imperfeito ao perfeito. Acontece, então, que o ser gerado não se assemelhe pela espécie ao que o gerou, porque não conseguiu atingir perfeita semelhança, mas dela participa imperfeitamente de algum modo, como os animais e as plantas que são geradas pela força do sol.
O fim da geração ou da perfeição de todas as coisas feitas é a forma do que as faz, ou as gera, de modo a atingirem a sua semelhança. Ora, a forma do primeiro agente, isto é, de Deus, outra não é que a sua bondade. Por isso, todas as coisas foram feitas para semelharem-se à bondade divina.


CAPÍTULO CII

A SEMELHANÇA COM DEUS É A CAUSA
DA DIVERSIDADE DAS COISAS

Dessa consideração infere-se a razão da diversidade e distinção das coisas.
1 — Porque era impossível representar perfeitamente a bondade divina, devido à distância existente entre cada coisa criada e Deus, foi necessário ela ser representada por muitos seres, de maneira que o que em um faltasse fosse suprido em outro. Acontece o mesmo nas conclusões dos silogismos: quando a conclusão não é suficientemente demonstrada por um termo médio, devem os termos médios ser multiplicados para esclarecerem aquela, como se vê nos silogismos dialéticos. Além disso, nem toda a universalidade das criaturas representa perfeitamente e em paridade a bondade divina, mas conforme a perfeição possível à criatura.
2 — Ademais, aquilo que existe na causa universal, de modo simples e unificado, encontra-se nos efeitos de modo distinto e multiplicado. Deve-se considerar também que é mais nobre uma coisa estar na causa que no efeito. A bondade divina una e simples é o princípio e a raiz de toda bondade que se encontra nas criaturas. É, pois, necessário que as criaturas assemelhem-se à bondade divina, como o múltiplo e distinto assemelha-se ao uno e simples.
3 — Devemos, além disso, considerar que a multidão e a distinção aparecem nas coisas não casual ou fortuitamente, como, também, que a produção delas não vem do acaso ou da fortuna; mas, que elas são feitas para um fim. De um só princípio origina-se o ser, a unidade e a multidão das coisas.
Devemos também considerar que a distinção das coisas não é causada pela matéria, porque a primeira instituição delas origina-se da criação, e esta não exige a matéria. Além disso, as coisas que têm a sua origem somente na necessidade da matéria apresentam-se como casuais.
Não se pode também afirmar que a multidão das coisas deriva da ordenação dos agentes causais intermediários, isto é, como se de um ser primeiro e simples não pudesse imediatamente proceder senão um só ser, distante, contudo, em simplicidade, do primeiro, e, assim, sucessivamente. Como ensinaram alguns, quanto mais se afasta do ser primeiro e simples, tanto mais numerosa se torna a multidão.
Já foi acima demonstrado que muitas coisas não puderam aparecer existindo, senão por criação. Ora, esta pertence só a Deus, como também foi demonstrado. Por conseguinte, deve-se afirmar que as muitas coisas são imediatamente criadas por Deus.
4 — Aqueles dos quais há pouco tratamos ensinaram também que a multidão e distinção das coisas são casuais, de modo que se apresentam como se não fossem intencionadas pelo primeiro agente. Mas a multidão e a distinção das coisas foram pensadas, e instituídas no universo, pelo intelecto divino, para que a bondade divina fosse diversamente representada nas coisas criadas, e para que as coisas diversas dela participassem em graus diversos, e, assim, resultasse nas coisas alguma beleza derivada da própria ordem, nelas diversificada, que manifestasse a sabedoria de Deus.


CAPÍTULO CIII

A BONDADE DIVINA NÃO É SOMENTE
A CAUSA DAS COISAS, MAS TAMBÉM DE
TODO MOVIMENTO E OPERAÇÃO

A bondade divina não é somente o fim da instituição das coisas, mas também é necessário que ela seja o fim de toda operação e movimento de qualquer criatura.
1 — Cada coisa age tal qual é, como, por exemplo, o que é quente, aquecendo. Ora, pela sua forma, qualquer coisa criada participa de alguma semelhança da bondade divina, como vimos. Logo, toda ação e todo movimento de todas as criaturas ordenam-se para a bondade divina, como para o fim.
2 — Ademais, todo movimento e toda ação de qualquer criatura apresentam-se dirigindo-se para algo perfeito. Ora, é perfeito aquilo que tem razão de bondade, pois a perfeição de qualquer coisa é a sua bondade. Por conseguinte, todo movimento e toda operação de qualquer criatura tendem para o bem. Além disso, qualquer bem é alguma semelhança do sumo bem, como qualquer ser é semelhança do primeiro ser. Logo, o movimento e a ação de qualquer coisa tendem a semelhar-se à bondade divina.
3 — Ademais, quando há muitos agentes ordenados, é necessário que as ações e os movimentos de todos os agentes ordenem-se para o bem do primeiro agente, como para o fim último. Como os agentes inferiores são movidos pelo agente superior, e como todo movente dirige-se para o próprio fim, é necessário que as ações e os movimentos dos agentes inferiores tendam para o fim do primeiro agente: assim é que, por exemplo, no exército, as atividades de todos os escalões são ordenadas para o fim que é a vitória, e que também é o fim do comandante supremo. Já foi acima dito que o primeiro movente e agente é Deus, e que o seu fim outro não é que a sua bondade. É, por conseguinte, necessário que todas as ações e movimentos de quaisquer criaturas dirijam-se para a bondade divina, não para causá-la ou fazê-la agir, mas para adquiri-la conforme o modo das criaturas, participando assim de alguma semelhança dela.
4 — É, porém, de maneiras diversas que as coisas criadas adquirem, pelas suas operações, alguma semelhança divina, como também é de maneiras diversas que manifestam no seu ser essa semelhança, pois cada coisa opera como é. Por conseguinte, sendo comum a todas as criaturas representar, enquanto são, a bondade divina, é também comum a todas elas terem a semelhança divina, quer na conservação do próprio ser, quer na comunicação do seu ser a outra criatura.
Assim é que, em primeiro lugar, cada criatura esforça-se para conservar-se, conforme as suas possibilidades, no seu ser perfeito, e, desse modo, tende à sua maneira para a semelhança da perpetuidade divina. Em segundo lugar, cada criatura esforça-se, pela sua operação, para, a seu modo, comunicar o seu ser perfeito a outra criatura, e, assim, tende para a semelhança da causalidade divina.
5 — Mas é por um modo diferente das outras que a criatura racional tende para a semelhança divina, como também o seu ser é mais nobre que o das outras criaturas. O ser das outras criaturas, contraído que é pela matéria, é finito, de modo que não possui capacidade infinita nem pelo ato nem pela potência.
A criatura racional, porém, tem capacidade infinita, quer pelo ato, quer pela potência, enquanto a inteligência contém em si as coisas inteligíveis.
Com efeito, em nós, a natureza inteligente, considerada no seu primeiro ser, está em potência para as coisas que lhe são inteligíveis, e como estas são em número infinito, ela tem alguma capacidade infinita em potência. Por esse motivo, a inteligência é a espécie das espécies, já que a sua espécie não é determinada para representar um único ser (digamos, para uma só pedra), mas é uma espécie capaz de receber todas as espécies.
Deve-se considerar, porém, que a natureza inteligente em Deus é infinita em ato, enquanto, como foi demonstrado acima, ela antecedentemente tem em si toda a perfeição do ser. Mas as criaturas inteligentes estão em situação intermediária entre a potência e o ato.
A criatura inteligente, com efeito, pela sua operação, tende para a semelhança divina, não somente para conservar-se no ser, nem apenas para multiplicar o seu ser, comunicando-se assim de algum modo, mas também para ter em si em ato o que, por natureza, tem em potência.
O fim, portanto, da criatura intelectual, que é pela sua operação atingido, é conhecer em ato, pela sua inteligência, todas as coisas inteligíveis, para as quais está também em potência. É por essa maneira que ela se torna o mais possível semelhante a Deus.


CAPÍTULO CIV

SOBRE AS DUAS POTÊNCIAS, ÀS QUAIS,
NAS COISAS, CORRESPONDEM OS DOIS
INTELECTOS, E SOBRE O FIM DA
CRIATURA INTELIGENTE

1 — As coisas estão em potência de duas maneiras: primeiro, naturalmente, com relação aos seres que podem ser reduzidos a ato por um agente natural; segundo, de outra maneira, com relação aos seres que podem ser reduzidos a ato; não por um agente natural, mas por algum outro agente, como se verifica nas coisas corpóreas. Há potência natural quando, por exemplo, do menino sai o homem, ou, do sêmen, o animal. Mas não há potência natural quando se faz da madeira um banco, ou quando um cego começa a ver.
2 — Acontece algo semelhante em nossa inteligência. A nossa inteligência está em potência natural para algumas coisas inteligíveis, que podem ser reduzidas a ato pelo intelecto agente, que, em nós, é o princípio inato pelo qual nos tornamos inteligentes em ato.
Mas é impossível atingirmos o último fim por esse meio que reduz a ato o nosso intelecto possível, porque a função do intelecto possível consiste em fazer inteligíveis em ato os fantasmas que são inteligíveis em potência, como se viu acima. Ora, os fantasmas têm sua origem nos sentidos; por conseguinte, pelo intelecto agente o nosso intelecto possível é reduzido a ato somente com relação às coisas inteligíveis que conhecemos por meio dos sentidos. É impossível, pois, que o fim último do homem consista nesse conhecimento, já que somente quando é atingido o fim último o desejo natural aquieta-se. Até mesmo quando alguém chega ao conhecimento de grande número de coisas pela maneira acima descrita, isto é, conforme conhecemos as coisas pelos sentidos, permanece o desejo natural de conhecer outras coisas.
3 — Há, além disso, muitas coisas que não podem ser atingidas pelos sentidos, das quais, pelas coisas sensíveis, não podemos ter senão um limitado conhecimento da existência delas. Mas não podemos ter conhecimento algum a respeito do que elas sejam. Isso, porque as essências das coisas imateriais são de outro gênero que o das essências das coisas sensíveis, e transcendem a estas quase desproporcionadamente.
Até mesmo com relação às coisas que os sentidos atingem, muitas delas a razão não as pode conhecer com certeza. Outras, não as conhecemos de modo algum; de outras, finalmente, temos apenas um vago conhecimento.
Contudo, em todos esses modos de conhecer, permanece o desejo natural de um conhecimento mais perfeito das coisas.
Ora, é impossível que o desejo natural seja vão. Por conseguinte, atingimos o fim último quando a nossa inteligência é reduzida a ato por um agente mais sublime que o agente natural a nós, e que faça aquietar-se o nosso desejo natural de conhecer.
4 — É de tal força esse nosso desejo de conhecer, que tão logo conhecemos o efeito queremos conhecer a causa; e, quando, em alguma coisa conhecemos-lhe qualquer circunstância, o nosso desejo não se satisfaz senão quando lhe conhecemos a essência.
Por conseguinte, o desejo natural de conhecer não pode estar em nós satisfeito senão quando conhecermos a primeira causa, não de qualquer modo, mas na sua essência. Ora, já foi acima demonstrado que a primeira causa das coisas é Deus. Logo, o fim último da criatura racional é ver Deus na sua essência.


CAPÍTULO CV

COMO É POSSÍVEL QUE O FIM ÚLTIMO
DA CRIATURA INTELIGENTE SEJA VER
A DEUS NA SUA ESSÊNCIA

Deve-se agora considerar como seja possível que o fim último da criatura inteligente consista em ver a Deus na sua essência.
1 — Sendo evidente que a nossa inteligência não conhece as coisas senão pelas suas próprias espécies, é impossível que ela conheça pela espécie de uma coisa a essência de outra. Quanto mais a espécie, pela qual a inteligência conhece, distancia-se da coisa conhecida, tanto mais imperfeito é o seu conhecimento da essência dessa coisa; como, por exemplo, se conhecêssemos o boi pela espécie do burro, conheceríamos imperfeitamente a essência do boi, pois conhecê-la-íamos somente pelo gênero. O conhecimento seria ainda mais imperfeito, se a conhecêssemos pela espécie da pedra, porque, então, seria conhecido pelo gênero remoto. Se, porém, conhecêssemos a espécie do boi pela espécie de alguma coisa que de modo algum se comunicasse com ele em nenhum gênero, evidentemente não conheceríamos absolutamente a essência do boi.
Ora, já o vimos acima, nenhuma coisa criada comunica-se com Deus em gênero. Por conseguinte, Deus não pode ser conhecido na sua essência por meio de qualquer espécie criada, quer sensível, quer inteligível.
2 — Portanto, para que o próprio Deus seja conhecido na sua essência, é necessário que Ele se torne a forma da inteligência de quem o conhece, e a ela se una, não para tornar-se com ela uma só natureza, mas para que a ela se una como a espécie inteligível une-se à inteligência.
Deus, como é o seu ser, é também a sua verdade, e esta é a forma da inteligência.
É, além disso, necessário que tudo que adquire alguma forma deva também adquirir alguma disposição para essa forma.
A nossa inteligência, com efeito, pela sua própria natureza não está posta em última disposição para aquela forma que é a verdade, pois se o estivesse de início a possuiria. É necessário, pois, que, para adquiri-la, seja elevada por alguma disposição que lhe é de novo acrescida, e esta disposição é chamada de “Luz da Glória”. Por esta luz a nossa inteligência é aperfeiçoada por Deus, pois só Ele possui por natureza a sua própria forma. De modo semelhante, a disposição calorífica não pode preparar algo para receber a forma do fogo, senão pela ação do próprio fogo.
Fala-nos a respeito dessa luz o Salmo 35: “Na tua luz, veremos a luz.” (Sl 35,10.)


CAPÍTULO CVI

COMO O DESEJO NATURAL É SATISFEITO
NA VISÃO DA ESSÊNCIA DIVINA,
NA QUAL CONSISTE A BEATITUDE

1 — Atingido este fim, necessariamente aquieta-se o desejo natural, porque a essência divina que se une, conforme foi exposto, à inteligência de quem vê a Deus é o princípio suficiente para se conhecerem todas as coisas, é a fonte de toda bondade, de modo que nada resta para ser desejado. Este é também o modo mais perfeito para se adquirir a semelhança divina, isto é, conhecermos a Deus tal como Ele se conhece, pela sua essência.
2 — Não o compreendemos, com efeito, como Ele se compreende, não porque ignoremos alguma parte d’Ele, pois Deus não tem partes, mas porque não o conhecemos tão perfeitamente quanto é conhecível. Isto porque a capacidade do ato de nossa inteligência não pode adequar-se à verdade divina tanto quanto ela é conhecível, pois a claridade divina, ou verdade divina, é infinita, mas a nossa inteligência é finita.
3 — A inteligência de Deus, porém, é infinita, como a sua verdade. Deus, portanto, se conhece tanto quanto é conhecível, como aquele que compreende uma conclusão demonstrável, que lhe foi conhecida após a demonstração; não como aquele que a conhece imperfeitamente, isto é, por uma razão provável.
4 — Como chamamos de beatitude ao fim último do homem, a felicidade (ou beatitude) do homem consiste em ver a Deus na sua essência, embora o homem na perfeição dessa beatitude esteja muito distante de Deus. Ora, Deus a possui pela sua natureza, enquanto o homem a adquire pela participação da luz divina, como foi dito.


CAPÍTULO CVII

O MOVIMENTO PARA DEUS, NO SENTIDO
DE SE ADQUIRIR A BEATITUDE, ASSEMELHA-SE
AO MOVIMENTO NATURAL, E A BEATITUDE
CONSISTE EM ATO DA INTELIGÊNCIA

Como a passagem de potência a ato ou é movimento ou algo semelhante a movimento, devemos saber que também o processo de aquisição da beatitude, de que tratamos, realiza-se como movimento, ou mudança natural.
1 — Primeiramente, deve ser considerada no movimento natural alguma propriedade pela qual o ser móvel é proporcionado e inclinado para determinado fim, como acontece com a força da gravidade que, na terra, dirige-se para baixo. Sabemos que nada é movido naturalmente para determinado fim, se não estiver em proporção com ele. Depois, no movimento natural, considera-se o próprio movimento para o fim. Em terceiro lugar, a própria forma, ou lugar; e, finalmente, o repouso na forma, ou no lugar.
Assim, também no movimento da inteligência para o seu fim, considera-se, em primeiro lugar, o amor, que a inclina para o fim. Em segundo lugar, o desejo, que é quase um movimento para o fim; e devemos também considerar aqui as operações decorrentes deste desejo. Em terceiro lugar, a própria forma que é adquirida pela inteligência; e, finalmente, em quarto lugar, o deleite que daí vem, o qual não é senão o repouso da vontade no fim possuído.
Na geração natural, o fim é também a aquisição da forma e, no movimento local, a chegada ao lugar predeterminado.
2 — Contudo, o fim não consiste no repouso na forma, nem no repouso no lugar, pois ambos os repousos decorrem do fim. Nem, tampouco, o movimento identifica-se com o fim; nem está nele a proporção para o fim.
O fim último da criatura inteligente é ver a Deus, não deleitar-se n’Ele, porque o deleite acompanha o fim e, de certo modo, o aperfeiçoa. Não podem também nem o desejo nem o amor ser o fim último, porque ambos se manifestam antes do fim.


CAPÍTULO CVIII

O ERRO DOS QUE PÕEM A FELICIDADE
NAS CRIATURAS

Por conseguinte, torna-se evidente que é falsamente que alguns procuram a felicidade em quaisquer outras coisas que em Deus, quer a busquem nos deleites corpóreos, que são comuns aos animais e aos homens, quer nas riquezas, que propriamente são ordenadas para a conservação da vida daqueles que as possuem, e este é o fim comum a todo ser criado; quer no poder, que é ordenado para a comunicação da perfeição própria aos outros, o que também é comum a todos; quer nas honras ou na fama, que são devidas aos que já possuem o fim, ou que estão bem dispostos para ele; quer no conhecimento de quaisquer coisas existentes acima do homem, porque somente no conhecimento de Deus aquieta-se o desejo do homem.


CAPÍTULO CIX

DEUS É BOM POR ESSÊNCIA, AS CRIATURAS
O SÃO POR PARTICIPAÇÃO

1 — Conclui-se, do que foi exposto, que Deus e as criaturas referem-se, de modos diversos, à bondade, conforme o duplo modo em que a bondade pode ser considerada nas criaturas. Como o bem tem sentido de perfeição e de fim, vê-se essa sua dupla bondade de acordo com a perfeição e com o fim da criatura.
Com efeito, deve-se considerar uma perfeição da criatura enquanto ela permanece na sua natureza, pois este é o fim da geração e da sua força operativa.
Deve-se considerar uma outra perfeição da criatura: a que é conseguida pelo seu movimento ou pela sua operação, isto é, o fim do movimento ou da operação.
Mas, considerada em ambos os aspectos, a bondade da criatura não se identifica com a bondade divina. Ora, a forma e o ser de uma coisa são o seu bem e a sua perfeição, conforme a consideramos na sua natureza. Mas a substância composta não é a sua forma, nem o seu ser; a substância criada simples é a sua forma, mas não é o seu próprio ser; Deus, porém, como se viu acima, é a sua essência e o seu ser.
2 — Sabemos também que todas as criaturas atingem a perfeita bondade pelo fim extrínseco. Ora, a perfeição da bondade consiste na consecução do fim último, e o fim último de qualquer criatura lhe é extrínseco, é a própria bondade divina que não se ordena a outro fim.
Resta, pois, admitir que Deus seja, por todas as considerações, a sua bondade, e que Ele é essencialmente bom. Não o são, porém, as criaturas simples, já porque não se identificam com o próprio ser, já porque se ordenam a um fim que lhes é extrínseco. É evidente que também as substâncias compostas de modo algum não são a própria bondade. Somente Deus é a sua bondade e essencialmente bom. As outras coisas são ditas boas enquanto participam de algum modo da bondade divina.


CAPÍTULO CX
DEUS NÃO PODE PERDER A SUA BONDADE

Fica também claro que Deus de nenhuma maneira pode ser deficiente na sua bondade.
O que inere essencialmente a alguma coisa não lhe pode faltar, como também não se pode tirar o gênero animal da espécie humana. Por isso, nem é possível Deus não ser bom. Tomemos um exemplo mais adequado: assim como não é possível que o homem não seja homem, também não é possível que Deus não seja perfeitamente bom.


CAPÍTULO CXI

A CRIATURA PODE SER DEFICIENTE
NA SUA BONDADE

Consideremos, agora, os possíveis defeitos da bondade nas criaturas.
Sabemos que de duas maneiras uma bondade pode inerir inseparavelmente à criatura: de uma, enquanto a própria bondade lhe está na essência; de outra, enquanto a bondade dirige-se para um fim determinado.
Considerando-se a primeira maneira nas substâncias simples, a bondade, como forma, pertence-lhes inseparavelmente, pois as substâncias simples são essencialmente formas.
Considerando-se a segunda maneira, não podem perder o bem, que é o ser.
Ora, a forma não é como a matéria que pode ser referida tanto ao ser, como ao não ser; mas ela segue o ser, mesmo quando ela não é o ser. Infere-se claramente daí que as substâncias simples não podem perder o bem da natureza na qual subsistem, mas relacionam-se com ele imutavelmente. As substâncias corpóreas, porém, porque não são suas formas, nem o seu ser, possuem o bem da natureza com possibilidade de perdê-lo, a não ser naquelas em que a potência da matéria não se refira a diversas formas, nem ao ser e ao não ser, como acontece nos corpos celestes[3].


CAPÍTULO CXII

COMO AS CRIATURAS, CONSIDERADAS
NAS OPERAÇÕES, PODEM SER
DEFEITUOSAS NA BONDADE

E porque considera-se a bondade das criaturas não somente enquanto elas subsistem na sua natureza, mas também enquanto a perfeição dessa bondade consiste na ordenação delas para o fim, pela sua operação, resta agora considerar os defeitos da bondade das criaturas nas operações, pelas quais são dirigidas para o fim.
Deve-se primeiramente notar que para as operações naturais salva-se o mesmo juízo que se fez para a natureza, pois esta é o princípio das operações.
Assim é que aquelas coisas que não podem ter a natureza defeituosa não podem ter também operações naturais com defeito. Mas aquelas que podem ter a natureza defeituosa podem também ter operações naturais defeituosas. Por isso, nas operações naturais das substâncias incorruptíveis, quer sejam elas incorpóreas, quer corpóreas, nenhum defeito pode aparecer: nos Anjos, a virtude natural é sempre capaz de exercer as próprias operações; nos corpos celestes, o movimento jamais se desvia da própria órbita. Mas nos corpos inferiores aparecem muitos defeitos nas ações naturais, devido às corrupções e deficiências que aparecem em suas naturezas. É devido a defeito de algum princípio natural que plantas manifestam-se estéreis, que animais geram monstros e que muitas outras desordens semelhantes aparecem.


CAPÍTULO CXII

COMO E EM QUAL DOS PRINCÍPIOS
DE AÇÃO HÁ DEFEITOS

Há, porém, algumas ações, cujo princípio não é a natureza, mas a vontade.
1 — O objeto da vontade é o bem, que é também o seu fim principal; o seu fim secundário são as coisas que a dirigem para o fim.
A operação da vontade dirige-se para o bem, como a operação natural refere-se à forma, pela qual a coisa age. Assim, pois, como não pode haver defeito nas coisas naturais cujas formas são sem defeito, mas somente naquelas coisas corruptíveis cujas formas são defeituosas, assim também as ações da vontade podem ser defeituosas, isto é, aquelas pelas quais a vontade não pode atingir o fim.
É claro, pois, que quando a vontade não pode deixar de atingir o fim não há também aí defeito na sua ação.
Ora, a vontade não pode falhar com relação ao bem, porque é da natureza do ser que quer, querer o bem. Além disso, cada coisa deseja a seu modo a perfeição do próprio ser, que é o bem de cada uma delas.
Com relação, porém, ao bem exterior, pode haver deficiência na coisa, contentando-se ela somente com o bem que lhe é natural.
2 — Um ser dotado de vontade, que tem como fim último dessa vontade a própria natureza, nele não pode haver defeito na ação da vontade: mas isso pertence só a Deus. A bondade divina, que é o fim último das coisas, identifica-se com a natureza divina.
A natureza dos outros seres dotados de vontade não é o fim último dessas vontades. Logo, pode haver neles ações voluntárias defeituosas, enquanto a vontade fixa-se definitivamente no bem da própria natureza, e não se dirige posteriormente para o sumo bem, que é o seu fim último. Conseqüentemente, em todas as substâncias inteligentes criadas pode haver defeito de ação voluntária.


CAPÍTULO CXIV

EM QUE CONSISTE O BEM E
O MAL NAS COISAS

Deve-se aqui considerar que pelo nome de bem entende-se o ser perfeito e, pelo de mal, a privação da perfeição do ser. Porque a privação, em seu significado próprio, é carência daquilo que deve ser possuído em algum tempo e de algum modo, evidentemente chama-se de má a coisa que carece da perfeição devida. Eis porque se o homem é privado da visão, isso lhe é mau; não o é, porém, à pedra, porque a pedra não foi feita para ter visão.


CAPÍTULO CXV

É IMPOSSÍVEL QUE O MAL
SEJA UMA NATUREZA

1 — É impossível que o mal seja uma natureza, porque toda natureza ou é ato, ou potência, ou um composto de ambos. O que é ato está perfeito, e tem a razão de bem, pois o que está em potência deseja naturalmente reduzir-se a ato, e o bem é aquilo que todas as coisas desejam. Por isso, o composto de ato e potência, enquanto participa do ato, participa também da bondade.
A potência, porém, é boa enquanto está ordenada para o ato, e isso é verificado pelo fato de que uma potência tanto mais é valiosa quanto mais é capaz de ser atualizada e de ser aperfeiçoada. Conclui-se daí que nenhuma natureza é em si o mal.
2 — Ademais, cada coisa torna-se completa na medida em que se reduz a ato, pois o ato é a perfeição das coisas. Ora, nas coisas opostas, nenhuma delas pode ser completada pelo acréscimo da outra, mas, por esse acréscimo, ela é ainda mais destruída ou diminuída. Por isso, nem o mal é completado pela participação do bem.
Toda natureza está completa enquanto o seu ser está em ato; e, como o ser é o bem desejado por todas as coisas, toda natureza é completada pela participação do bem. Logo, nenhuma natureza é o mal.
3 — Ademais, toda natureza deseja a conservação do próprio ser e, enquanto pode, evita a destruição dele. Ora, como o bem é o que todas as coisas desejam e o mal, pelo contrário, é o de que todas as coisas fogem, é necessário afirmar que ser uma natureza é um bem em si. Não ser, porém, uma natureza, é um mal. Ser, portanto, um mal, não é ser um bem; já não ser um mal, porém, pertence à noção do bem. Logo, nenhuma natureza é o mal.


CAPÍTULO CXVI

COMO O BEM E O MAL SÃO DIFERENÇAS
DO SER, CONTRÁRIOS E GÊNEROS
DE CONTRÁRIOS

Devemos, ainda, considerar porque o bem e o mal são chamados de contrários, gêneros de contrários e diferenças constitutivas de algumas espécies, isto é, de hábitos morais. 1 — Ora, em coisas contrárias, ambas devem possuir certa natureza. O não-ser não pode ser gênero, nem diferença, porque o gênero é predicado de um ser enquanto ele é uma coisa (“quid”), e a diferença, enquanto ela é uma determinada coisa (“quale quid”).
Deve-se saber também que, assim como as coisas naturais recebem a espécie da forma, do mesmo modo as coisas morais a recebem do fim, que é o objeto da vontade, e dele todos os atos morais dependem. Além disso, nas coisas naturais, uma forma está unida à privação de outra, como, por exemplo, a forma do fogo à privação da forma do ar. Nas coisas morais, um fim também está unido à privação de outro fim.
Como a privação da perfeição devida é um mal nas coisas naturais, assim também é um mal receber uma forma à qual esteja unida a privação da forma devida. É um mal, não por causa da forma que é recebida, mas por causa da privação que ela traz consigo, como por exemplo, ser queimada é um mal para a madeira.
2 — Nas coisas morais acontece coisa semelhante: aderir a um fim ao qual está anexa a privação do fim devido é um mal. É um mal, não por causa desse fim, mas devido à privação que lhe está unida. Eis porque duas ações morais ordenadas a fins contrários diferenciam-se entre si como bem e como mal, e, conseqüentemente, os hábitos contrários, gerados por essas ações, diferenciam-se também entre si no bem e no mal, como se neles existissem diferenças específicas contrárias entre si. Diferenciam-se, portanto, não devido à privação pela qual o ato é chamado de mau, mas devido ao fim ao qual a privação acompanha.
3 — Alguns entenderam a afirmação de Aristóteles como se o bem e o mal fossem gêneros de coisas contrárias, isto é, de coisas contrárias no plano moral. Mas se essa afirmação for retamente entendida, verifica-se que o bem e o mal, no gênero das coisas morais, são mais bem colocados nas diferenças específicas que nas espécies. Por isso, parece melhor dizer que o bem e o mal são ditos gêneros conforme a doutrina de Pitágoras, que reduziu todas as coisas ao bem e ao mal como a primeiros gêneros. Essa posição possui algo de verdadeiro enquanto afirma que, nos contrários, um deles é perfeito e outro, porém, menos perfeito, como acontece com o preto e o branco, o doce e o amargo, e assim nos outros contrários. Logo, aquilo que é perfeito pertence à noção do bem; o que é menos perfeito, à noção do mal.


CAPÍTULO CXVII

NENHUMA COISA PODE SER ESSENCIALMENTE
MÁ, NEM SER O SUMO MAL, MAS O MAL
É SEMPRE A CORRUPÇÃO DE ALGUM BEM

1 — Sendo o mal a privação da perfeição devida, é evidente que o mal corrompe o bem, enquanto é privação do bem, como a cegueira corrompe a vista, porque ela é a própria privação da vista. Não obstante, o mal não corrompe totalmente o bem, porque, como acima foi dito, não só a forma é um bem, mas também a potência para a forma, potência essa que é sujeito da privação e da forma. Donde conclui-se que é conveniente ser o bem o sujeito do mal, não enquanto ele se opõe ao mal, mas enquanto é potência para ele. Donde também conclui-se que nem todo bem pode ser sujeito de mal, mas somente o bem que está em potência para alguma perfeição da qual pode ser privado. Logo, nas coisas que são somente ato, ou nas quais o ato não pode ser separado da potência, nelas não pode haver mal. Fica, por isso, também claro que não pode haver uma coisa que seja essencialmente o mal, já que convém que o mal tenha como fundamento um sujeito bom. Pela mesma razão, nenhuma coisa pode ser o sumo mal — como existe o sumo bem, que é essencialmente bom.
2 — Conclui-se, seguindo ainda esse raciocínio, que o mal não pode ser desejado, e que uma coisa não pode agir senão visando o bem adjunto, porque o que é desejável é a perfeição e o fim. Sabemos que o princípio de ação é a forma; contudo, porque a perfeição, ou forma, acrescenta-se à privação de outra perfeição, ou forma, acontece que acidentalmente a privação (isto é, o mal) seja desejada, e, assim, ela se torne princípio de ação. Não, porém, enquanto é mal, mas devido ao bem anexo, como um músico que construísse uma casa: construí-la-ia não enquanto músico, mas enquanto construtor.
3 — Torna-se também claro, por esse raciocínio, que é impossível ser o mal primeiro princípio, porque aquilo que é princípio por acidente é posterior ao princípio que é princípio por si mesmo.


CAPÍTULO CXVIII

O MAL FUNDAMENTA-SE NO BEM
COMO EM SEU SUJEITO

Se alguém quiser objetar, contra as razões acima expostas, dizendo que o bem não pode ser sujeito do mal, porque, nas oposições, uma das coisas opostas não pode ser sujeito da outra, e porque em todas as oposições as coisas opostas não podem coexistir, deve-se responder a essa objeção dizendo que nas outras oposições as coisas contrárias estão sempre em um gênero determinado, ao passo que o bem e o mal são comuns ao ser em geral. Ora, todo ser, enquanto ser, é bom; toda privação, porém, enquanto tal, é má. Portanto, assim como o sujeito da privação deve ser o próprio ser, deve ser também o bem. Mas o sujeito da privação não deve ser a coisa enquanto branca, doce ou vidente, porque esses atributos não se referem ao ser enquanto ser. Conseqüentemente, o preto não está na coisa branca, nem a cegueira no ser que vê. Mas o mal está no bem, como a cegueira está no sujeito da visão somente enquanto o sujeito da visão não é chamado de vidente, porque a ação de ver não é comum ao ser como tal.

CAPÍTULO CXIX

OS DOIS GÊNEROS DO MAL

1 — Já que o mal é privação e defeito, e o defeito, como se pode deduzir do acima exposto, pode aparecer em uma coisa não apenas enquanto ela é considerada na sua natureza, mas também enquanto considerada na sua ação, conclui-se daí que o mal também pode ser considerado conforme ambos os aspectos: conforme o defeito na própria coisa, enquanto, por exemplo, a cegueira é um mal para o animal; e conforme o defeito na ação, enquanto, por exemplo, andar coxeando significa defeito na ação.
2 — O mal na ação ordenada para um fim, mas que não é dirigida para esse fim de modo devido, é chamado de pecado, quer nas ações voluntárias, quer nas ações naturais. Assim é que o médico peca na sua ação, se não age convenientemente para curar o doente; a natureza também peca na sua operação, quando, por exemplo, não gera um ser com a devida disposição e forma, aparecendo, assim, os monstros na natureza.

CAPÍTULO CXX

DOS TRÊS GÊNEROS DE AÇÃO,
E DO MAL DE CULPA

1 — Sabe-se que algumas vezes a ação está sob o poder do agente e isso acontece em todas as ações voluntárias. A ação voluntária, com efeito, é aquela cujo princípio está no agente que conhece a natureza da sua ação.
Algumas ações, contudo, não são voluntárias, são violentas, sendo o seu princípio extrínseco ao agente, como vemos nas ações naturais, ou nas que se realizam ignorando-se-lhes a natureza, porque não procedem de princípio cognoscitivo.
Se nas ações voluntárias ordenadas a um fim aparece algum defeito, esse defeito não recebe apenas o nome de pecado, mas também de culpa, porque sendo esse agente voluntário senhor da própria ação, merece ele vitupério e castigo.
Quando as ações são mistas, isto é, quando possuem algo de voluntárias e algo de involuntárias, a culpa é diminuída proporcionalmente ao que há de mais involuntário.
2 — Porque a ação natural conforma-se à natureza da coisa, é evidente que nas coisas incorruptíveis, cuja natureza é imutável, não pode haver pecado nas suas ações naturais. Mas, como se viu acima, a vontade da criatura intelectual pode ter defeito na ação natural. Conseqüentemente, apesar de ser comum a todas as criaturas incorruptíveis carência do mal de natureza, contudo, a carência do mal de culpa, mal que aparece apenas nas criaturas inteligentes, é própria somente de Deus, por necessidade da sua natureza.


CAPÍTULO CXXI

HÁ UM MAL QUE É CHAMADO DE MAL
DE PENA, NÃO DE MAL DE CULPA

Como o defeito da ação voluntária especifica a natureza do que seja pecado ou culpa, assim também a falta de um bem, imposta contra a vontade de uma pessoa, tem o sentido depena. A pena é imposta como remédio da culpa e para pôr em ordem uma ação desordenada. É imposta como remédio, porque o homem, devido à pena, retrai-se da culpa, pois, para não sofrer o que seria contra a sua vontade, deixa de agir desordenadamente conforme quis a sua vontade. A pena põe também ordem na vontade, porque, pela culpa, o homem exorbita os limites da ordem natural, concedendo à sua vontade mais do que convém. Pela pena, portanto, que lhe subtrai algo do desejo, volta-se ele para a ordem da justiça. É evidente que a pena não é proporcional à culpa senão quando ela mais contrarie a vontade, do que quando a culpa lhe agrade.


CAPÍTULO CXXII

NEM TODAS AS PENAS CONTRARIAM
IGUALMENTE A VONTADE

As penas não contrariam a vontade, todas, do mesmo modo.
1 — Há penas que são contra o que o homem atualmente deseja, e essas são as que ele mais sente. Algumas, porém, não contrariam o que a vontade deseja atualmente, mas o que ela deseja habitualmente, como quando alguém é privado de um bem, sem o saber; por exemplo: de um filho, ou da propriedade. Nesse caso, não se contraria o ato da vontade de alguém; contrariar-se-ia se a pessoa o soubesse.
2 — Há penas, porém, que vão contra a própria natureza da vontade, enquanto ela é naturalmente ordenada para o bem. Por isso, quando alguém não é virtuoso, algumas vezes isso pode não ir contra o ato da vontade, porque ela pode desprezar a virtude; nem ir contra o hábito da vontade, porque ela pode estar informada por um hábito que lhe faz querer o contrário da virtude. Mas, em ambos os casos, contraria-se a retidão natural da vontade, porque o homem deseja naturalmente a virtude.
3 — Vê-se daí que o grau das penas pode ser medido de duas maneiras: primeiro, de acordo com a quantidade do bem do qual, pela pena, o homem é privado; segundo, conforme a pena contrarie mais ou menos à vontade, pois é mais contrário à vontade ser privado de um bem maior, que o ser de um bem menor.



CAPÍTULO CXXIII

TODAS AS COISAS SÃO DIRIGIDAS
PELA PROVIDÊNCIA DIVINA

Pode-se concluir, da exposição acima, que todas as coisas são governadas pela Providência Divina.
1 — Tudo o que é ordenado ao fim de um agente, por este é dirigido para o fim, assim como aqueles que estão no exército são dirigidos para a vitória. Esta é, com efeito, o que pretendem o chefe e todos os que são para ela, por ele, ordenados.
Anteriormente foi demonstrado que todas as coisas, pelos seus atos, tendem para o fim desejado pela bondade divina. Por conseguinte, todas as coisas são por Deus, a Quem pertence esse fim, ordenadas, para a sua finalidade. Ora, isso é justamente ser regido ou governado pela providência de alguém. Logo, todas as coisas são regidas pela providência divina.
2 — Ademais, as coisas sujeitas a deficiências, e que nem sempre comportam-se do mesmo modo, manifestam-se como ordenadas pelas coisas que se completam do mesmo modo, como os movimentos dos corpos inferiores, que são defectíveis, subordinam-se aos movimentos invariáveis dos corpos celestes. Ora, todas as criaturas são mutáveis e defectíveis. As criaturas intelectuais, conforme a sua própria natureza, podem ser sujeitas a defeitos na ação voluntária. As outras criaturas são mutáveis ou pela geração e corrupção, ou pelo movimento local. Somente em Deus não se pode encontrar defeito algum. Conclui-se daí que tudo o mais é por Ele dirigido.
3 — Ademais, aquilo que existe por participação, reduz-se àquilo que existe por essência, como à sua causa. Assim é que as coisas que são queimadas têm, no fogo, de certo modo, a causa da combustão que sofrem. Como só Deus é bom por essência e as outras coisas alcançam a perfeição da bondade por certa participação, torna-se necessário que tudo aquilo que lhes aperfeiçoa a bondade seja também produzido por Deus. Ora, isso é justamente ser regido e governado. Vê-se daí que algumas coisas, isto é, as que não são por essência o próprio bem, são governadas (ou dirigidas) enquanto são ordenadas para o bem. Logo, todas as coisas são governadas ou dirigidas por Deus.


CAPÍTULO CXXIV

DEUS DIRIGE AS CRIATURAS INFERIORES
MEDIANTE AS SUPERIORES

Esse raciocínio leva-nos a concluir que as criaturas inferiores são dirigidas por Deus, mediante as criaturas superiores.
1 — Algumas criaturas são chamadas de superiores porque são mais perfeitas na bondade. As criaturas são ordenadas por Deus para o bem, enquanto são por Ele dirigidas. Assim, as criaturas superiores participam mais da ordenação do governo divino que as inferiores. Ora, aquilo que participa mais de uma perfeição, compara-se àquilo que menos dela participa, como o ato à potência e o agente ao paciente. Logo, as criaturas inferiores são governadas pelas superiores.
2 — Ademais, é próprio da bondade divina comunicar a sua semelhança às criaturas. É assim que, devido à sua bondade, Deus fez todas as coisas. Pertence à perfeição da bondade divina que Deus seja bom em si e que faça boas as outras coisas.
Essas duas propriedade divinas, Deus as comunica às criaturas, isto é, que sejam boas em si e que uma conduza a outra ao bem. Desse modo, por umas criaturas Deus conduz outras ao bem.
As que conduzem outras ao bem são criaturas superiores, pois das coisas que participam da semelhança da forma e da ação de um agente, é mais perfeita aquela que participa da semelhança só da forma, e não da ação; assim a lua, que recebe mais perfeitamente a luz do sol, pois não só é iluminada como também ilumina, o é mais que os corpos opacos, que são apenas iluminados, mas não iluminam.
3 — Ademais, o bem de muitos é melhor que o bem de um só. Conseqüentemente ele representa melhor a bondade divina, que é o bem de todo o Universo. Se a criatura superior, que participa mais abundantemente da bondade divina, não cooperasse com o bem das criaturas inferiores, aquela superabundância de bondade seria de uma só. Torna-se, com efeito, comum a muitos, enquanto ela coopera para o bem de muitos. Eis porque é próprio da bondade divina governar as criaturas inferiores por intermédio das superiores.


CAPÍTULO CXXV

AS SUBSTÂNCIAS INTELIGENTES
INFERIORES  SÃO DIRIGIDAS
PELAS SUPERIORES

1 — Porque as criaturas inteligentes são superiores às demais criaturas, como se pode concluir do que já foi dito, é evidente que todas as outras criaturas são governadas por Deus, mas por intermédio das criaturas inteligentes.
2 — Ademais, havendo entre as criaturas inteligentes umas superiores às outras, as inferiores são dirigidas por Deus também por intermédio das superiores. Donde, os homens, que ocupam a ínfima posição na ordem das substâncias inteligentes, serem governados pelos espíritos superiores, os quais, porque anunciam as ordens divinas aos homens, são chamados de Anjos, isto é, mensageiros. Dentre os Anjos, os inferiores são também dirigidos pelos superiores, distinguindo-se entre eles diversas hierarquias, ou seja, governo sagrado, e, em cada hierarquia, diversas ordens.


CAPÍTULO CXXVI

DOS GRAUS E DAS ORDENS DOS ANJOS

Porque toda operação da substância inteligente, enquanto tal, procede da inteligência, convém que, de acordo com os diversos modos de inteligência, se encontre nas substâncias inteligentes, diversidade de operação, de superioridade e de ordem.
Quanto mais sublime e mais digna a inteligência, tanto mais se pode considerar em causa mais alta e universal as razões do efeito. Foi, com propriedade, dito acima que a inteligência superior possui espécies inteligíveis mais universais.
1 — O primeiro modo de conhecimento conveniente às criaturas inteligentes consiste em participar na primeira causa, quer dizer, em Deus, das razões dos efeitos, e, conseqüentemente, das suas operações, já que por elas Deus produz os efeitos inferiores.
Pertence esse modo à primeira hierarquia, que se divide em três ordens, de acordo com os três elementos que se consideram em qualquer arte operativa: a primeira, é o fim, do qual se tiram as razões das obras; a segunda, é a razão das obras existente na mente do artista; a terceira, são as aplicações das obras aos efeitos.
É próprio da primeira ordem conhecer os efeitos no próprio sumo bem, enquanto este é o fim último das coisas. Donde, devido ao ardor do amor, os espíritos que a constituem serem chamados de serafins, pois estão como que ardentes e incandescentes de amor, cujo objeto é o bem.
É próprio dos espíritos da segunda ordem contemplarem os efeitos divinos nas próprias razões inteligíveis enquanto estão em Deus. Devido à plenitude de ciência que possuem, são chamados de querubins.
É próprio dos espíritos da terceira ordem considerarem, em Deus mesmo, como as criaturas participam das razões inteligíveis enquanto aplicadas aos efeitos: são chamados detronos, pois têm a Deus como que neles sentado.
2 — O segundo modo de conhecimento intelectual consiste em considerar as razões dos efeitos enquanto contidos nas causas universais. É o modo próprio dos espíritos da segunda hierarquia. Esta divide-se em três ordens, de acordo com as três coisas que se encontram nas causas universais e que agem máxime pela inteligência. Primeiro, pre-ordenar as ações, razão pela qual nas coisas artificiais as artes supremas são preceptivas, isto é, as artes chamadas de arquitetônicas. Por isso também os espíritos da primeira ordem desta hierarquia são chamados de dominações: com efeito, pertence ao senhor (Dominus) mandar e pré-ordenar. Segundo, o que se encontra a seguir, nas causas universais, como próprio, é movimentar uma coisa imediatamente, como que tendo um principado sobre a execução desse movimento. Por isso, a segunda ordem desta hierarquia é chamada de principado,conforme S. Gregório, ou de virtude, conforme Dionísio, considerando os seus espíritos como virtudes, porque é próprio do virtuoso operar em primeiro lugar. Terceiro, é próprio das causas universais remover aquilo que impede a execução das obras. Por isso os espíritos da terceira ordem desta hierarquia chamam-se potestades, pois têm como função afastar tudo o que possa impedir a execução do império divino.
Diz-se, pois, que as Potestades afastam os demônios.
3 — O terceiro modo de conhecimento intelectual consiste em considerar as razões dos efeitos nos próprios efeitos. Pertence isso à terceira hierarquia. Essa liga-se imediatamente a nós, que chegamos a conhecer os efeitos neles mesmos. Possui ela, outrossim, três ordens, das quais a ínfima é chamada de Anjos, porque anunciam aos homens coisas sobre o governo deles, e, por isso, são também chamados de guardas dos homens.
Acima desta está a ordem dos arcanjos, pelos quais comunicam-se aos homens as coisas que estão acima da razão, quais sejam os mistérios da fé.
A suprema ordem, conforme Gregório, é chamada de Virtudes, porque operam nas coisas sobrenaturais para confirmar as verdades sobrenaturais que nos foram transmitidas. Cabe aos espíritos desta ordem fazer os milagres. Conforme Dionísio, porém, a ordem suprema desta hierarquia é chamada de Principado, para que saibamos que, como os príncipes, os espíritos desta ordem presidem cada povo.
Os Anjos são que dirigem cada pessoa; os Arcanjos, os que anunciam as coisas que pertencem à salvação de todos.
4 — Como a potência inferior age em virtude da superior, também a ordem inferior realiza o que pertence à superior enquanto age em virtude dela, pois o que é superior possui de modo mais excelente o que pertence ao inferior. Eis porque, de certo modo, tudo é comum a todas as ordens, mas elas recebem nomes apropriados conforme o que por natureza convém a cada uma. A ordem ínfima conserva para si o nome comum, pois como que age em virtude de todos.
Sendo próprio do superior atuar no inferior, e, por isso, pertence à ação intelectual a instrução e o ensino, os Anjos superiores, enquanto instruem os inferiores, os purgam, iluminam, e aperfeiçoam.
Purgam-nos, com efeito, enquanto removem-lhes a neciência; iluminam-nos, enquanto, pela sua luz, confortam a inteligência dos inferiores para que atinjam conhecimentos mais altos; aperfeiçoam-nos, enquanto os levam à perfeição da ciência superior. Conforme Dionísio, são essas as três coisas necessárias para aquisição de ciência.
5 — Tal atuação, porém, dos Anjos superiores, não impede que os inferiores tenham a visão de Deus, pois têm-na todos os Anjos. Apesar de que todos os espíritos beatificados vejam Deus em essência, um O vê mais perfeitamente que outro, como se pode concluir do que foi dito acima. Quando mais uma causa é melhor conhecida, tanto maior número de seus efeitos são em si conhecidos. Por conseguinte, os Anjos superiores instruem os inferiores sobre os efeitos divinos que aqueles conhecem mais em Deus que estes, mas não nos instruem sobre a essência divina, que é vista imediatamente por todos.



CAPÍTULO CXXVII

OS CORPOS INFERIORES SÃO REGIDOS
PELOS SUPERIORES, MAS NÃO A
INTELIGÊNCIA HUMANA

Assim como entre as criaturas inteligentes, por disposição divina, uma é por outra governada, a saber, a inferior pela
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superior, também os corpos inferiores são, por disposição divina, ordenados pelos superiores.
1 — Por isso, todo movimento dos corpos inferiores é causado pelos movimentos dos corpos celestes. Estes corpos inferiores adquirem também as formas e as espécies pela atuação dos corpos celestes, como também as razões das coisas inteligíveis chegam aos espíritos inferiores por meio dos superiores.
Já que a substância inteligente antepõe-se, na ordem das coisas, a todos os corpos, não é conveniente, conforme a ordem da providência de que acima falamos, que, por meio de uma substância corpórea, seja dirigida uma substância intelectual por Deus. Ora, a alma humana sendo substância inteligente, fica impossibilitada de ser ordenada na inteligência e na vontade conforme o movimento dos corpos celestes. Por conseguinte, os corpos celestes não podem agir diretamente (ou influir) na inteligência, nem na vontade humana.
2 — Ademais, nenhum corpo age a não ser por intermédio de movimento. Por conseguinte, tudo que sofre atuação de um corpo é movido por ele. Ora, a alma humana, na sua parte intelectiva, na qual está também a vontade, está impossibilitada de ser movida por movimento corpóreo, porque a inteligência não é ato de órgão corpóreo. Logo, é impossível que a alma humana, quer no intelecto, quer na vontade, receba influxo dos corpos celestes.
3 — Ademais, o que provém do impulso dos corpos celestes nos corpos inferiores lhes é natural.
Se, por conseguinte, as operações da inteligência e da vontade fossem causadas pelos impulsos dos corpos celestes, elas partiriam de instinto natural, e, assim, o homem, nas suas ações, não se diferenciaria dos outros animais, os quais são movidos, nas ações, por impulso natural. Desapareceria, então, o livre arbítrio, o conselho, a capacidade de escolha e tudo o mais que o homem possui como ser superior aos animais.


CAPÍTULO CXXVIII

COMO A INTELIGÊNCIA HUMANA É
APERFEIÇOADA PELAS POTÊNCIAS SENSITIVAS
E, ASSIM, SUBMETIDA INDIRETAMENTE
AOS CORPOS CELESTES

1 — Deve-se, porém, considerar que a inteligência humana recebe originariamente o seu conhecimento das potências sensitivas. Eis porque, quando é perturbada a parte da alma onde estão a fantasia, a imaginação e a memória sensitiva, é também perturbada a inteligência.
Operando, porém, normalmente, essas potências, recebe de modo melhor, a inteligência, o conhecimento das coisas. Coisa semelhante acontece com a vontade: mudança no apetite sensitivo provoca também mudança na vontade, que é o apetite da razão, enquanto o bem apreendido pela inteligência é o seu objeto. Por isso, na medida em que somos diversamente dispostos pela concupiscência, pela ira, pelo temor e pelas paixões, mostram-se-nos diversamente o bem e o mal.
2 — Todas as potências da nossa parte sensitiva, a saber, apreensiva ou apetitiva, são atos de partes corpóreas, de modo que sofrendo essas partes alguma mudança, necessariamente, mas por acidente, modificam-se também as potências correspondentes. Como a mudança dos corpos inferiores subordina-se aos movimentos dos corpos celestes, subordinam-se aos mesmos movimentos, embora acidentalmente, as operações das potências sensitivas. É por esse processo que o movimento dos corpos celestes atua indiretamente de algum modo na inteligência e na vontade do homem, isto é, enquanto a vontade é inclinada, pelas paixões, para algum atrativo.
3 — Como, porém, a vontade não se submete às paixões para seguir-lhes necessariamente as atrações, pois a ela mais compete dominar as paixões pelo juízo da razão, conseqüentemente ela também não se subordina às impressões dos corpos celestes. Ao contrário, possui pelo seu livre julgamento, o poder de segui-las ou resistir-lhes, enquanto julga isso conveniente, embora isso seja próprio dos sábios.
É próprio, porém, de muitos deixarem-se levar pelas paixões e inclinações corporais, porque eles não têm sabedoria, nem virtude.


CAPÍTULO CXXIX

SÓ DEUS PODE MOVER A VONTADE
DO HOMEM, NÃO A CRIATURA

1 — Como tudo que é mutável e multiforme deve ser referido a um primeiro imóvel como à sua causa, apresentando-se a inteligência e a vontade do homem mutáveis e multiformes, os atos dessas potências devem ser também referidos a alguma causa superior imutável e uniforme. Já vimos, além disso, que tais atos não podem ser referidos aos corpos celestes como às suas causas. Devem, por conseguinte, ser referidos a causas mais elevadas.
Não se pode considerar identicamente a inteligência e a vontade, pois o ato da inteligência perfaz-se enquanto a coisa conhecida está na inteligência; o ato da vontade, porém, enquanto há inclinação da vontade para as coisas que ela deseja. É próprio da natureza da inteligência ser aperfeiçoada por algo exterior a si, que a ela se refere como o ato à potência. Por isso, o homem pode ser auxiliado no seu ato de inteligência por qualquer princípio exterior que lhe seja mais perfeito quanto ao ser inteligível, isto é, não apenas por Deus, mas também por um Anjo, e até por um homem mais instruído, mas agindo cada um a seu modo.
2 — Um homem é por outro auxiliado na aquisição de conhecimentos, enquanto um propõe ao outro coisas inteligíveis que este desconhecia. Não pode, porém, a luz inteligível, de um, ser aperfeiçoada pela do outro, porque ambas as luzes naturais são de uma só espécie.
3 — Como, porém, a luz natural do Anjo é por natureza mais sublime que a luz natural da inteligência humana, o homem pode ser auxiliado no seu conhecimento intelectual por um Anjo, não apenas com relação ao objeto do conhecimento, mas também com relação à luz inteligível, enquanto esta pode ser confortada pela luz dos Anjos. No entanto, a luz natural inteligível não é causada pelos Anjos, pois a natureza da alma racional, recebida por criação, não é dada senão por Deus.
4 — Deus, porém, auxilia o homem no seu conhecimento intelectual não apenas no que toca ao objeto, que é proposto ao homem por Deus, nem apenas ao que toca a aumento da luz inteligível, mas na própria luz inteligível natural, que faz o homem inteligente. Ora, esta vem de Deus. Auxilia-o, ainda, porque sendo Deus a verdade primeira, da qual qualquer outra verdade recebe a certeza (como as segundas proposições recebem da primeira as verdades, nas ciências demonstrativas), sem Ele nada pode haver de certo para a inteligência humana (como também as conclusões não podem ser certas, nas ciências, senão em virtude dos primeiros princípios).
5 — O ato da vontade sendo alguma inclinação que procede do interior para o exterior, assemelha-se, por isso, às inclinações naturais: assim como estas mostram-se no interior das coisas naturais, provocadas que são pela causa da sua natureza, também o ato da vontade vem só de Deus, pois Ele é a única causa da natureza racional dotado de vontade. É claro que para Deus mover a vontade humana não fere a liberdade de arbítrio, como também não é contra a natureza Deus operar nas coisas naturais. A inclinação natural e a inclinação voluntária, ambas têm a Deus por causa, mas cada uma procede conforme a sua condição. Deus, portanto, move as coisas, de acordo com a natureza de cada uma delas.
6 — Tudo isso aqui exposto explica porque os corpos celestes podem ter influência no corpo humano e nas suas operações corpóreas, e, também, nos outros corpos. Não podem, porém, exercer influxo na inteligência humana. Nesta, só pode a criatura inteligente.
Mas na vontade humana somente Deus pode exercer alguma influência.


CAPÍTULO CXXX

DEUS GOVERNA TODAS AS COISAS, E
ALGUMAS DELAS MOVE POR MEIO
DE CAUSAS SEGUNDAS

1 — Porque as causas segundas não agem senão em virtude da causa primeira, e porque os instrumentos agem não de outro modo que não seja dirigido pelo artista, é necessário que todos os outros agentes, pelos quais Deus realiza a ordenação do seu governo, ajam em virtude do próprio Deus. Qualquer ação desses agentes causados por Deus é causada por Deus, como também o movimento das coisas imóveis é causado pelo impulso de um motor. Devem também o motor e a coisa movida existirem simultaneamente. É necessário, pois, que Deus esteja presente no interior de cada agente, como que nele agindo, quando o impulsiona para a ação.
2 — Ademais, não apenas a ação dos segundos agentes é causada por Deus, mas também o próprio ser deles, como acima foi provado. Não se deve, porém, entender que o ser das coisas seja causado por Deus como o ser da casa é causado pelo construtor, pois este, afastando-se da construção, ela, contudo, continua existindo. O construtor, com efeito, não causa o ser da casa, senão enquanto provoca movimentos para que a casa exista, e esses movimentos constituem justamente a construção da casa. Por isso, ele é diretamente causa da ação construtiva da casa, ação que cessa quando ele afasta-se da construção. Deus, pelo contrário, é por si mesmo diretamente causa do próprio ser, enquanto comunica o ser a todas as coisas, assim como o sol comunica luz à atmosfera e a tudo que por ele é iluminado. E como para a continuação da luz na atmosfera é necessária a permanência da iluminação do sol, assim também para que as coisas permaneçam no ser, é necessário que Deus lhes transmita continuamente o ser. Por esse modo, as coisas não só enquanto começam a existir, mas também enquanto são conservadas no ser, se referem a Deus, como uma obra feita ao seu produtor. O produtor e a obra devem existir simultaneamente, como o motor e o ser movido. Logo, é necessário que Deus esteja presente em todas as coisas enquanto elas têm ser. O ser, na verdade, é aquilo que de mais íntimo existe nas coisas. Logo, é necessário que Deus esteja em todas as coisas.
3 — Ademais, aquilo que realiza por meio de causas intermediárias a ordenação das coisas deve também conhecer e ordenar os efeitos dessas causas intermediárias, pois, se assim não fosse, elas estariam fora da ordenação da sua providência. Além disso, quanto mais perfeita é a providência do governante, tanto mais o seu conhecimento e a sua ordenação descem às coisas particulares, porque, se alguma dessas for subtraída do seu conhecimento, a ordenação dela será também subtraída da ordenação da providência do governante. Já foi comprovado, acima, que é necessário estarem todas as coisas submetidas à providência divina. É também evidente que a providência divina é perfeitíssima, porque toda perfeição atribuída a Deus convém-Lhe ao máximo. Por conseguinte, é necessário que a ordenação da sua providência estenda-se até aos mínimos efeitos.


CAPÍTULO CXXXI

DEUS DISPÕE DE TUDO IMEDIATAMENTE,
SEM DIMINUIR SUA LIBERDADE

Conclui-se do exposto que, embora Deus governe as coisas mediante causas segundas, com relação à execução de sua providência, de fato a própria disposição ou a ordenação da providência divina estende-se imediatamente a todas as coisas.
Deus não ordena a primeira e a última coisa entregando a outros seres à disposição da última coisa, nem a disposição das coisas particulares. Isso, devido à limitação do seu conhecimento, acontece com os homens, pois não podem eles abranger simultaneamente muitas coisas. Eis porque, entre eles, os superiores, mais elevados, dispõem das grandes coisas, e as coisas menos importantes são entregues aos outros. Mas Deus pode conhecer simultaneamente muitas coisas, como anteriormente foi provado. Por isso, porque Ele cuida das coisas menos importantes, não deixa de cuidar também das grandes.


CAPÍTULO CXXXII

ARGUMENTOS QUE PARECEM DEMONSTRAR
QUE DEUS, POR SUA PROVIDÊNCIA,
NÃO ATINGE AS COISAS PARTICULARES

Pode, porém, a alguém parecer que Deus não dispõe nem ordena as coisas particulares.
1 — Ninguém ordena por sua providência a não ser aquilo que conhece. Pode-se pensar que o conhecimento das coisas singulares falte a Deus, porque estas são conhecidas não pela inteligência, mas pelos sentidos. Ora, sendo Deus absolutamente incorpóreo, n’Ele não há possibilidade de conhecimento sensitivo, mas só há n’Ele conhecimento intelectivo. Por esse motivo, pode alguém supor que as coisas particulares não estão submetidas à providência divina.
2 — Ademais, as coisas singulares são em número infinito. Ora, como não se pode ter conhecimento dessa infinidade de coisas singulares (o infinito, como tal, é desconhecido), parece que também as coisas singulares fogem do conhecimento e da providência divinos.
3 — Ademais, muitas das coisas singulares são seres contingentes, e sabemos que destes não se pode ter ciência certa. Como a ciência de Deus é necessariamente certíssima, conclui-se que as coisas singulares não são conhecidas nem dispostas por Deus.
4 — Finalmente, as coisas singulares, na sua totalidade, não são simultâneas, porque umas se corrompem, e outras as substituem. Ora, não pode haver ciência daquilo que não existe.
Se, portanto, Deus tem conhecimento das coisas singulares, segue-se daí que Ele começa a conhecer uma coisa e deixa de conhecer outras, e isso nos leva a afirmar que Ele é mutável.
Por todas essas razões, parece que Ele não conhece nem ordena as coisas singulares.


CAPÍTULO CXXXIII

SOLUÇÃO DAS OBJEÇÕES
PRECEDENTES

Pela consideração da realidade das coisas, facilmente são desfeitas as objeções precedentes.
1 — Deus, conhecendo-se perfeitamente, deve também conhecer tudo que em Si de algum modo existe. Ora, sabemos que d’Ele procede toda essência e toda virtude do ser criado. Sabemos também que o que procede de alguma coisa, nela está virtualmente. Logo, é necessário que Deus, conhecendo-se a Si mesmo, conheça a essência do ser criado e tudo que neste está contido virtualmente; é também necessário que Deus conheça as coisas singulares que em Si mesmo estão contidas, e as que estão contidas em suas outras causas.
2 — Além disso, não há semelhança entre a inteligência divina e a nossa, como supunha a primeira objeção. A nossa inteligência recebe o conhecimento das coisas por meio de espécies abstratas, que são semelhanças das formas das coisas, mas não conhece a matéria, nem as disposições materiais, que são os princípios da individuação. Por isso, a nossa inteligência não pode conhecer as coisas singulares, mas só as universais. A inteligência divina, porém, conhece as coisas por meio da Sua própria essência, na qual, como em primeiro princípio, está virtualmente contida não só a forma, mas também a matéria.
Por isso, ela conhece não só os universais, mas também as coisas singulares.
3 — Nem tampouco é inconveniente que Deus conheça as coisas infinitas, embora a nossa inteligência não as possa conhecer. A nossa inteligência não pode simultaneamente e em ato conhecer ou contemplar muitas coisas. Ora, se conhecesse as coisas infinitas contemplando-as como infinitas, deveria enumerá-las uma após outra, mas isso vai contra a própria noção de infinito. Contudo, virtualmente e em potência a nossa inteligência pode conhecer as coisas infinitas, isto é, todas as espécies de números e de proporções, enquanto possui o princípio suficiente de conhecer todas as coisas. Deus, porém, pode conhecer muitas coisas simultaneamente, como acima foi demonstrado, pois o meio pelo qual conhece todas as coisas, isto é, a Sua essência, é princípio suficiente do conhecimento delas todas, não só das que são, mas também das que podem vir a ser.
4 — É também evidente que, embora as coisas singulares, corporais e temporais não existam todas simultaneamente, Deus simultaneamente as conhece. Conhece-as, de acordo com a natureza do seu ser, que é eterno e sem sucessão.
Como conhece imaterialmente as coisas materiais e a multiplicidade pela unidade, assim também conhece por uma só intuição as coisas que não estão existindo ao mesmo tempo. Donde, conhecendo Deus assim as coisas singulares, não é necessário que se acrescente algo ao seu conhecimento, ou que dele algo se tire.
5 — Pela mesma argumentação, fica evidenciado que Deus tem conhecimento certo das coisas contingentes, porque, antes mesmo que elas sejam feitas, conhece-as intuitivamente existindo em ato, e não somente enquanto são futuras e virtualmente em suas causas, como nós as conhecemos. As coisas contingentes, embora estejam existindo virtualmente em suas causas, como futuras, não estão ainda individualmente determinadas para que as possamos conhecer em ato. Desde que, porém, estejam em ato no próprio ser, já estão individualmente determinadas, e, desse modo, podemos ter delas o conhecimento certo. É assim que, por certeza de visão, sabemos que Sócrates está sentado, quando, de fato, está sentado.
6 — Deus, permanecendo na Sua eternidade, também conhece com certeza todas as coisas que se realizam no decurso de todo o tempo, pois, pela Sua eternidade, abrange de modo presente todo o decurso do tempo, e transcende a tudo mais.
Pode-se, pois, dizer que Deus, enquanto conhece na sua eternidade o fluxo do tempo, é como um homem que, colocado no cume de um monte, com um só olhar vê simultaneamente o percurso dos que caminham lá em baixo.


CAPÍTULO CXXXIV

SÓ DEUS CONHECE AS COISAS FUTURAS
CONTINGENTES E SINGULARES

1 — É também claro que só a Deus é próprio conhecer as coisas futuras contingentes no seu ser, e por isso, com certeza, porque também só a Ele convém própria e verdadeiramente a eternidade. Eis também porque se considera o prenúncio certo das coisas futuras como um sinal da divindade, conforme se lê em Isaías: “Anunciando-nos o que acontecerá no futuro, saberemos que sois deuses” (Is 41,23).
2 — Conhecer, porém, as coisas futuras, em suas causas, pode pertencer, também, a outros seres. Contudo, este conhecimento não é certo, sendo mais conjecturas, a não ser que se trate de efeitos que necessariamente procedem de suas causas. É assim que o médico pode prever o andamento da doença, e o navegante, as tempestades[4].
151


CAPÍTULO CXXXV

DEUS ESTÁ EM TODAS AS COISAS POR
POTÊNCIA, ESSÊNCIA E PRESENÇA,
E IMEDIATAMENTE DISPÕE
DE TODAS ELAS

1 — Assim, pois, nada impede que Deus conheça os efeitos singulares e que, por Si mesmo, imediatamente, os ordene, embora o faça por causas intermediárias. Mas também nesta ordenação, de certo modo, imediatamente relaciona-se com todos os efeitos, pois todas as causas intermediárias agem em virtude da causa primeira. E como, de certa maneira, Ele é visto agindo em todas as coisas, assim também Lhe podem ser atribuídas todas as ações das causas segundas, como, outrossim, a ação do instrumento é atribuída ao artista. Pode-se, portanto, dizer com mais conveniência que o carpinteiro opera mais no banco que está fazendo que o martelo.
Deus também se relaciona imediatamente com todos os efeitos, enquanto Ele por si mesmo é a causa do ser, e, por Ele, todas as coisas são conservadas no ser.
2 — Segundo três modos de estar nas coisas imediatamente, pode-se dizer que Deus nelas está por essência, por potência e por presença.
Por essência, enquanto todo ser é alguma participação no ser divino, e, assim, a essência divina é inerente a qualquer ser que exista, enquanto este possui ser, como a causa o é ao efeito próprio.
Por potência, enquanto todas as coisas agem em virtude d’Ele.
Finalmente, por presença, enquanto imediatamente dispõe todas as coisas e as ordena[5].
152


CAPÍTULO CXXXVI

SÓ DEUS PODE FAZER MILAGRES

1 — Como toda a ordem das causas segundas e a virtude delas provêm de Deus, e como também Deus não produz os seus efeitos por necessidade, mas livremente, como acima vimos, é evidente que Ele pode agir fora da ordem das causas segundas. Assim, por exemplo, Deus é capaz de curar aqueles que não seriam curados pela ação da própria natureza, e fazer outras coisas que não estão na ordem das causas segundas, mas que se subordinam à ordem da Divina Providência, porque essas coisas, que algumas vezes se fazem fora da ordem das causas naturais estabelecidas por Deus, realizam-se para algum fim. Quando essas coisas acontecem fora da ordem das causas segundas por interferência divina, elas são chamadas demilagres, porque causa admiração verem-se os efeitos, e não, as causas. Assim, sendo Deus simplesmente uma causa oculta para nós, aquilo que por Ele é feito fora da ordem das causas segundas nossas conhecidas é simplesmente chamado de milagre.
2 — Se, porém, algo acontece como efeito de outra causa oculta somente a um ou a outro, isso não é simplesmente milagre, mas somente para quem ignora a causa. Por isso, vemos que um fato pode aparecer como milagre para um, mas que não o é para outrem que conheça a causa.
Operar, pois, fora da ordem das causas segundas, é próprio só de Deus, que é o instituidor dessa ordem e a ela necessariamente não se subordina. Portanto, realizar milagres só a Deus pertence, conforme o declara o Salmista: “Que faz sozinho coisas admiráveis” (Sl 195,4).
3 — Quando se vê alguma criatura fazer milagres, esses não são verdadeiros milagres, porque são causados por outras virtudes naturais de coisas desconhecidas de nós, como são os milagres do demônio, que são feitos por artifícios mágicos; ou, se são verdadeiros milagres, alguém pediu a Deus para realizá-los.
Porque tais milagres só são feitos por Deus, muito convincentemente são apresentados como provas da fé, pois esta só a Deus tem por fundamento. Quando a palavra de um homem é considerada como sendo de autoridade divina, ela nunca será tão convenientemente comprovada senão pelas obras que só Deus pode fazer.
4 — Embora esses milagres sejam feitos fora da ordem das causas segundas, contudo não podem ser simplesmente considerados como sendo contra a natureza, porque a ordem da natureza determina que as coisas inferiores subordinem-se às superiores.
Por isso, o que acontece nos corpos inferiores devido à influência dos corpos celestes não pode ser considerado simplesmente contra a natureza, embora seja algumas vezes contra a natureza particular desta ou daquela coisa, como se vê no fluxo e refluxo da água do mar, que são provocados pela atração da lua.
Assim, pois, as coisas que acontecem nas criaturas pela ação de Deus, embora se manifestem contra a ordem particular das causas segundas, seguem, contudo, a ordem universal da natureza. Os milagres, conseqüentemente, não são contra a natureza.


CAPÍTULO CXXXVII

POR QUE ALGUMAS COISAS SÃO
CHAMADAS DE CASUAIS OU FORTUITAS

Como se viu, tudo que acontece, até as mínimas coisas, é disposto por Deus.
Contudo, nada impede que algumas coisas aconteçam por acaso ou por sorte. Alguma coisa é casual, ou fortuita, em relação a uma causa inferior, quando realiza-se fora da intenção desta. Mas ela não é casual nem fortuita com relação à causa superior, fora de cuja intenção não se realiza. Assim, ao patrão que manda dois empregados irem ao mesmo lugar, ambos desconhecendo a sua ordem, o encontro dos mesmos é casual com relação a cada um deles, não, porém, com relação a si. Desse modo, quando algumas coisas acontecem fora das causas segundas, elas são casuais ou fortuitas, se as considerarmos com relação a essas causas, e podem simplesmente ser denominadas casuais, porque o efeito é simplesmente denominado de acordo com a natureza das causas próximas. Se, porém, as considerarmos com relação a Deus, elas não são fortuitas, mas providenciadas por Ele.


CAPÍTULO CXXXVIII

SE O DESTINO TEM ALGUMA NATUREZA,
E EM QUE CONSISTE

Do que precede pode-se inferir a noção do que seja o destino.
1 — Como muitos efeitos parecem originar-se casualmente ao considerarmos só as causas segundas, alguns não os querem reduzir a nenhuma causa superior ordenadora, devendo esses efeitos, por conseguinte, afastar totalmente a existência do destino.
Outros quiseram reduzir os efeitos que se apresentam como casuais, ou fortuitos, a alguma causa ordenadora superior. Mas como não se elevaram acima da ordem corpórea, atribuíram a ordenação daqueles efeitos aos corpos superiores, isto é, aos corpos celestes. Afirmaram também que o destino era uma força existente na posição dos astros, da qual derivava tais efeitos.
Mas, como acima foi demonstrado que a inteligência e a vontade, que são os princípios próprios dos atos humanos, não estão propriamente submetidos aos corpos celestes, também não se pode dizer que o que parece acontecer casualmente ou fortuitamente, nas coisas humanas, seja reduzido aos corpos celestes como a uma causa ordenadora.
2 — O destino, com efeito, não pode realizar-se senão nas coisas humanas, nas quais surge também a sorte. Muitos procuravam indagar dessas coisas, desejando saber o que acontecera no futuro, e é também a respeito delas que buscavam respostas nos adivinhos. Por essa razão é que o destino é chamado de fado (“fatum”), termo que se origina do verbofalar (em latim, “fando”). Admitir tal destino é também contrário à fé.
3 — Contudo, porque não apenas as coisas naturais, mas também as humanas, estão submetidas à Providência Divina, aquilo que parece acontecer casualmente nas coisas humanas deve ser reduzido à ordenação daquela Providência. Por isso, os que afirmam que tudo está submetido à Providência Divina devem também admitir o destino.
O destino, assim considerado, refere-se à Providência Divina, como um efeito próprio dela. Essa é uma consideração da Providência Divina enquanto ela se aplica às coisas, conforme o que afirmou Boécio, dizendo ser o destino “a disposição (isto é, a ordenação) imóvel, inerente às coisas móveis”. Como, porém, não devemos, o mais possível, ter em comum com os infiéis nem os nomes das coisas, para que os menos inteligentes não encontrem nisso ocasião de errar, os fiéis, ao usarem a palavra destino, devem fazê-lo com muita cautela, justamente porque tal palavra é mais convenientemente e mais comumente entendida conforme a primeira acepção. Por isso é que Santo Agostinho disse que “se alguém entendeu o destino conforme a segunda acepção, guarde a sentença e corrija a língua” (“De Civ. Dei”, cap. V).


CAPÍTULO CXXXIX

NEM TUDO ACONTECE
POR NECESSIDADE

Embora a ordem da Divina Providência realizando-se nas coisas seja certa, e, por esse motivo, Boécio definiu o destino como sendo a disposição imóvel inerente às coisas móveis, nem por isso se deva concluir que tudo aconteça necessariamente. Ora, os efeitos são ditos necessários ou contingentes conforme a disposição de suas causas próximas. É, pois, evidente, que se a primeira causa for necessária e a segunda, contingente, o efeito será também contingente. Assim é que a causa primeira da geração nas causas corpóreas inferiores é o movimento de um corpo celeste, movimento necessariamente causado, mas a geração e a corrupção desses corpos inferiores são contingentes, justamente porque as suas causas inferiores são contingentes e podem falhar.
Foi visto acima que Deus dá execução à ordem da sua Providência por meio de causas inferiores. Devem, por conseguinte, existir alguns efeitos da Divina Providência que sejam contingentes, de acordo com a condição dessas causas inferiores.


CAPÍTULO CXL

EXISTE A PROVIDÊNCIA DIVINA, E,
NÃO OBSTANTE, MUITOS FATOS
SÃO CONTINGENTES

A contingência dos efeitos ou das causas não prejudica a certeza da Providência Divina.
1 — A certeza da Providência Divina parece fundamentar-se em três coisas: na infalibilidade da presciência divina, na eficácia da vontade divina e na disposição de tudo pela sabedoria divina, que encontra sempre o meio adequado para realizar o seu efeito, dos quais nenhum repugna à contingência das coisas.
A ciência de Deus é infalível também com relação às coisas contingentes, enquanto Deus contempla na Sua própria eternidade as coisas futuras conforme existem atualmente no seu ser, do que já acima falamos.
A vontade de Deus, sendo a causa universal das coisas, também ela não somente age para fazer as coisas, bem como para que estas sejam feitas em determinado modo. Pertence, com efeito, à eficácia da vontade divina, que se realize não só o que Deus quer, mas também que se faça conforme aquele modo que determinou. Ora, Deus quer que algumas coisas sejam feitas como contingentes; outras, como necessárias, porque ambos os modos são exigidos para o complemento do ser do universo. Para que as coisas sejam feitas de ambos esses modos, a vontade divina realiza-se eficazmente.
2 — É também evidente que, pela disposição da sabedoria divina, salva-se a certeza da Providência Divina, conservada a contingência das coisas. Ora, se pela providência humana, a uma causa cujo efeito pode falhar, o homem, algumas vezes, pode trazer o auxílio para que o efeito indefectivelmente se realize, como vemos no médico que cura, ou no vinicultor que aplica o remédio contra a debilidade da vinha; com muito mais razão, isso pode ser feito pela disposição da sabedoria divina, isto é, embora as causas contingentes falhem pela sua deficiência na produção dos efeitos, contudo, eles podem ser produzidos indefectivelmente, devido a alguns auxílios que lhes são ministrados, mas que não lhes tiram a contingência.
Fica, pois, evidenciado que a contingência das coisas não exclui a certeza da Providência Divina.


CAPÍTULO CXLI

A CERTEZA DA PROVIDÊNCIA DIVINA
NÃO EXCLUI O MAL NAS COISAS

Pelo mesmo raciocínio percebe-se que, embora exista a Providência Divina, podem os males existir no mundo, devido a defeitos nas causas segundas.
Vemos, nas causas ordenadas, surgir o mal no efeito pela falha da causa segunda, defeito esse de modo algum causado pela causa primeira, como, por exemplo, o mal da claudicação de uma pessoa, que é causado pela sua perna torta, não, porém, pela ação da alma que lhe movimenta as pernas. Por isso, o que há no andar coxo, com relação ao movimento, refere-se à ação da alma, como sua causa que é. O que nele há, porém, com relação ao coxeamento, não é causado pela ação da alma, mas pela perna encurvada.
Assim também o que aparece de mal nas coisas, quanto ao ser, à espécie ou a uma natureza, reduz-se a Deus como à causa. Ora, já se viu acima que o mal não pode existir senão no bem. Por isso, o que há nele de defeituoso reduz-se à causa inferior defectível.
Eis porque, embora Deus seja a causa universal de tudo que existe, não é causa do mal enquanto mal. Mas o bem que lhe está anexo é causado por Deus.


CAPÍTULO CXLII

DEUS, PERMITINDO O MAL,
NÃO ANULA SUA BONDADE

Não repugna à bondade divina permitir o mal nas coisas por ela ordenadas.
1 — Em primeiro lugar, porque não é próprio da providência deixar que se perca a natureza das coisas por ela governadas, mas salvá-las. Com efeito, a perfeição do universo requer que haja uns seres nos quais não possa o mal existir, e outros, que possam estar sujeitos ao mal, conforme a sua natureza; se, por conseguinte, o mal fosse totalmente excluído das coisas, a natureza divina não as governaria segundo a natureza de cada uma delas. Ora, isso seria um maior defeito que os defeitos que delas fossem tirados.
2 — Em segundo lugar, porque não pode existir o bem de alguma coisa sem que venha o mal para outra coisa, como vemos que a geração de um ser não se processa sem a corrupção de outro ser; que a alimentação do leão não se faz, sem a morte de outro animal; que a paciência não existe no justo, sem que o injusto o persiga. Ora, se o mal fosse totalmente excluído das coisas, seguir-se-ia que também de muitos bens seriam elas privadas. Por isso, não cabe à Providência Divina excluir totalmente o mal das coisas, mas sim, dirigir os males surgidos para algum bem.
3 — Era terceiro lugar, porque os próprios males particulares tornam os bens mais recomendáveis quando são comparados entre si, como também o negro mais escuro, pelo contraste, torna o branco mais claro. Assim, enquanto permite o mal no mundo, a bondade divina torna-se mais evidente, nas coisas, e a sabedoria divina mais manifesta, na ordenação dos males para o bem.


CAPÍTULO CXLIII


DEUS, PELA GRAÇA, MANIFESTA
UMA PROVIDÊNCIA ESPECIAL
PARA O HOMEM

1 — A Providência Divina dirige as coisas conforme o modo de cada uma. Ora, sendo a criatura racional mais senhora do seu ato que as outras, é necessário que a Providência Divina refira-se a ela de modo especial. Essa providência especial manifesta-se de duas maneiras: primeiro, com relação aos auxílios concedidos por Deus às suas obras; segundo, com relação à retribuição que lhe é dada por essas obras.
2 — Às criaturas irracionais somente são concedidos, para que elas possam agir, aqueles auxílios divinos pelos quais elas naturalmente são movidas para a ação. Às criaturas racionais, porém, são dados ensinamentos e preceitos para viverem. Ora, o preceito não deve ser dado senão a quem é senhor do próprio ato, embora, por analogia, diga-se serem dados preceitos às criaturas irracionais, conforme lê-se no Salmo CXLIII “Estabeleceu um preceito e não será desobedecido”. Tal preceito nada mais é que a disposição da Providência Divina, enquanto dá movimento às coisas naturais para as suas próprias ações.
3 — De modo semelhante, as ações das criaturas racionais lhes são imputadas, com relação àquilo que, nos seus atos, elas têm domínio, para culpa ou para louvor. Aos homens, tal imputabilidade lhes é conferida, não somente aos que são governados por outros homens, mas também por Deus, porque, sabemos, os homens não apenas são governados por outros homens, mas também por Deus.
A quem quer que se submeta ao governo de outrem, por este lhe é imputada a ação digna de louvor ou de culpa. E porque, agindo bem, merece prêmio, agindo, porém, culposamente, deve receber a pena, como acima foi dito, é que as criaturas racionais, conforme a justiça da Providência Divina, são punidas ou premiadas, respectivamente, pelo mal ou pelo bem que fizeram. Nas criaturas irracionais, porém, não há lugar para pena, nem para prêmio, e também elas não podem ser louvadas ou culpadas por alguma ação.
4 — Porque o fim último da criatura racional excede-lhe a faculdade da natureza, e como, de acordo com a ordenação da Providência, as coisas que se dirigem para um fim devem ser proporcionadas a ele, deve-se concluir que também à criatura racional são necessários auxílios divinos, não somente os proporcionados à natureza, mas também os que excedem a faculdade de tal natureza. Donde concluir-se que é conferido, por Deus, ao homem, além da faculdade natural da sua razão, a luz da graça, pela qual ele interiormente é aperfeiçoado para a virtude, quer quanto ao conhecimento, enquanto a inteligência humana é elevada por essa luz para conhecer aquilo que exceda a razão; quer quanto à ação e afeição, enquanto por essa mesma luz a ação humana é elevada acima de todas as criaturas para amar a Deus e n’Ele esperar, e para realizar as exigências do amor sobrenatural.
5 — Tais dons, ou auxílios, sobrenaturalmente conferidos ao homem, são, por este motivo, chamados de gratuitos. Primeiro, porque são dados gratuitamente por Deus, já que nada pode ser encontrado no homem que exija condignamente esses auxílios, pois eles excedem a faculdade da natureza humana. Segundo, porque o homem, por meio desses dons, torna-se, de certo modo, agradável a Deus.
Como o amor de Deus é a causa da bondade das coisas, que não lhes é conferida por outra bondade nelas preexistente, como acontece com o nosso amor, é necessário que naqueles aos quais são concedidos especiais efeitos da bondade, neles também seja considerado um especial motivo do amor divino para com eles.
Donde dizer-se que Deus ama mais e verdadeiramente aos que confere os efeitos dessa bondade, pelos quais chegam ao fim último, que é Ele mesmo, a fonte da Bondade.


CAPÍTULO CXLIV

PELOS DONS GRATUITOS, DEUS
PERDOA OS PRÓPRIOS PECADOS
QUE DESTROEM A GRAÇA

1 — Porque os pecados nascem devido às falhas das ações na reta ordenação para o fim, e como o homem está ordenado para o fim, não somente pelos auxílios naturais, como também pelos gratuitos, necessariamente os pecados contrariam não só os auxílios naturais, bem como os gratuitos. Ora, as coisas contrárias repelem-se mutuamente. Por conseguinte, como pelo pecado o homem perde esses auxílios gratuitos, também pelos dons gratuitos para ele os pecados são remidos. Se assim não fosse, a malícia do homem, ao pecar, seria mais poderosa, enquanto afasta a graça divina, do que a bondade divina, enquanto afasta o pecado pelos dons da graça.
2 — Ademais, Deus ordena, pela sua Providência, as coisas, conforme o modo de cada uma. O modo das coisas mutáveis consiste, com efeito, em que nelas as coisas contrárias possam se alternar, como acontece com a geração e a corrupção nos seres corpóreos, e com a cor branca e a preta nos corpos coloridos. Ora, o homem, enquanto está nesta vida terrena, é mutável quanto à sua vontade. Por conseguinte, os dons gratuitos lhes são conferidos de tal modo que ele os possa perder pelo pecado, e que também ele possa cometer pecados capazes de serem remidos pelos mesmos dons.
3 — Ademais, naquelas coisas que se realizam acima das forças da natureza, o possível e o impossível dependem da potência divina, não da potência natural; assim, não é possível à potência natural, mas o é à divina, dar vista ao cego ou ressuscitar o morto, pois os dons gratuitos são sobrenaturais. Que alguém, portanto, possa fazer tais coisas, isso depende da potência divina. Dizer, por conseguinte, que alguém, após o pecado, não possa alcançar a graça divina, é anular a potência divina. Além disso, os dons gratuitos não podem coexistir com o pecado, porque, por eles, o homem é ordenado para o fim, do qual, pelo pecado, é afastado. Dizer, portanto, que os pecados não são remissíveis, é negar a potência divina.


CAPÍTULO CXLV

OS PECADOS NÃO SÃO IRREMISSÍVEIS

É falso afirmar que os pecados são irremissíveis, não porque Deus seja impotente, mas porque a justiça divina exige que quem perde a graça não a recupere mais.
1 — A justiça divina, com efeito, requer que quem está no estado viatório, se lhe dê o que o deva levar ao termo do caminho. O termo desse caminho é a imobilidade e o repouso. Ora, toda a vida presente do homem está em estado viatório, o que é confirmado pela sua mutabilidade corpórea e psíquica. Logo, não é exigência da justiça divina que o homem, tendo pecado, permaneça imóvel neste estado.
2 — Ademais, mediante benefícios divinos não podem vir, para o homem, perigos, principalmente por meio dos maiores benefícios. Ora, seria perigoso para o homem, cuja vida é mutável, receber a graça e pudesse pecar, após tê-la recebido, e não pudesse voltar ao estado da graça. Principalmente porque os pecados que precedem o estado de graça são perdoados pela graça, e eles, geralmente, são mais graves que os cometidos após a entrada no estado de graça. Não se deve, pois, afirmar que os pecados do homem são irremissíveis, quer sejam cometidos antes ou depois de ele haver recebido o estado da graça.


CAPÍTULO CXLVI

SÓ DEUS PODE REMIR OS PECADOS

Somente Deus, na verdade, pode remir os pecados.
1 — Um ato culposo cometido contra alguém, pode perdoá-lo somente aquele contra quem foi cometido. Os pecados, com efeito, são imputados ao homem como culposos, não pelo seu semelhante, apenas, como também por Deus, como foi dito acima. Aqui, com efeito, tratamos dos pecados imputados ao homem por Deus. Logo, só Deus pode remir esses pecados.
2 — Ademais, como o homem, pelos pecados, é desviado do fim último, estes não podem ser perdoados senão quando o homem for novamente ordenado para o fim. Ora, essa ordenação é feita pelos dons gratuitos, os quais só podem vir de Deus, enquanto excedem a faculdade da natureza. Logo, só Deus pode remir os pecados.
3 — Finalmente, o pecado é imputado ao homem culposo, enquanto é voluntário. Ora, só Deus pode mudar a vontade. Logo, somente Ele pode verdadeiramente remir os pecados.


CAPÍTULO CXLVII

SOBRE ALGUNS ARTIGOS DA FÉ
QUE SÃO CONSIDERADOS ENQUANTO
SE REFEREM AO GOVERNO DIVINO

O segundo efeito de Deus é o governo das coisas[6], especialmente das criaturas racionais, às quais Ele concede a graça e redime o pecado. Esse segundo efeito está indicado no Símbolo da Fé, quer ao que se refere à ordenação de todas as coisas para o fim, que é a bondade divina, enquanto confessamos que o Espírito Santo é Deus, pois pertence a Deus dirigir os seus súditos para o fim; quer ao que se refere ao movimento que é dado por Deus a todas as coisas, enquanto diz: “Vivificante”. Assim como o movimento, que vem da alma ao corpo, é a vida do corpo; assim também o movimento, pelo qual o universo é movido por Deus, é uma certa vida do universo. E porque a razão do governo divino procede da bondade divina, e isso é apropriado ao Espírito Santo porque procede como amor, os efeitos da Providência Divina são (no Credo) convenientemente referidos à Pessoa do Espírito Santo.
Com relação ao efeito do conhecimento sobrenatural que Deus, pela fé, infunde no homem, é dito: “Santa Igreja Católica”, pois a Igreja é a congregação dos que têm fé.
Com relação à graça que Deus comunica aos homens é dito: “Comunhão dos Santos”.
Com relação à remissão da culpa, é dito: “Na remissão dos pecados”.
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CAPÍTULO CXLVIII

TODAS AS COISAS FORAM FEITAS
PARA O HOMEM

1 — Todas as coisas, como já foi demonstrado, estão ordenadas para a bondade divina, como para seu fim. Das coisas ordenadas para o fim, umas estão mais próximas dele que as outras, e aquelas participam mais da bondade divina. Conclui-se daí que as criaturas, as mais inferiores, e que, por conseguinte, participam menos da bondade divina, de certo modo, ordenam-se para as superiores, como para seu fim. Em toda ordem de fins, as coisas mais próximas do último fim são também fins das que dele estão mais afastadas. Assim é que, por exemplo, toma-se um remédio para a purgação. Ora, a purgação visa o emagrecimento, e, este, a saúde da pessoa. Desse modo, a magreza é o fim da purgação, como também esta o é do remédio.
2 — Ademais, como na ordem das causas motoras a virtude do primeiro agente atinge os últimos efeitos, também, na ordem dos fins, as coisas que estão mais distantes do fim, atingem o último fim mediante as que dele mais se aproximam, como também aquele remédio não se ordena para a saúde, senão por intermédio da purgação. Por isso, na ordenação do universo, as coisas inferiores atingem principalmente o último fim, enquanto se ordenam para as superiores.
3 — Tudo isso torna-se evidente se considerarmos a própria ordem das coisas. Sabemos que as coisas pertencentes à ordem natural agem de acordo com a natureza para que foram feitas. Assim é que vemos, nessa ordem, os seres mais imperfeitos serem destruídos para o uso dos mais nobres, isto é, as plantas nutrem-se da terra; os animais, das plantas; e esses animais, por sua vez, serem usados pelos homens. Conclui-se daí que as criaturas inanimadas foram feitas para as animadas; as plantas, para os animais irracionais; estes, para os homens.
Ora, já tendo sido provado acima que a criatura intelectual é superior à corpórea, é concludente afirmar que toda natureza corpórea seja ordenada para a intelectual. Entre as criaturas intelectuais, a que está mais próxima do corpo é a alma racional, que é a forma (substancial) do homem. Conseqüentemente, vê-se, de certo modo, que para o homem, enquanto é animal racional, foi feita toda a natureza corpórea. Logo, da consumação do homem depende, de certa forma, toda natureza corpórea.


CAPÍTULO CXLIX

QUAL É O FIM ÚLTIMO DO HOMEM

A consumação do homem consiste na consecução do último fim, que é a beatitude perfeita (ou felicidade) que consiste na visão de Deus, como acima foi explicitado.
Atinge-se a visão divina pela imutabilidade da inteligência e da vontade. A inteligência atinge então a imobilidade, porque, chegando à visão da causa primeira, na qual todas as coisas podem ser conhecidas, cessa a sua função inquiridora. Cessa a mobilidade da vontade, porque, tendo ela atingido o fim último, no qual está contida a plenitude de toda bondade, nada mais resta a ser desejado. A vontade, com efeito, é mutável, porque deseja algo que ainda não possui.
Fica, pois, provado que a última consumação do homem consiste na perfeita quietude, ou imobilidade, da inteligência e da vontade.


CAPÍTULO CL

COMO O HOMEM ATINGE A ETERNIDADE
E NELA ENCONTRA A SUA CONSUMAÇÃO

Ficou demonstrado acima que a razão da eternidade está na imobilidade. Como o tempo, com efeito, é originado do movimento, no qual há antes e depois, convém que, terminado o movimento, cesse também o motivo de antes e depois, e, assim, manifeste-se a essência da eternidade, que consiste em ser toda simultaneamente.
Consegue, pois, o homem a sua última consumação na eternidade da vida, não apenas enquanto nela a alma tem a vida imortal, o que lhe é natural, como já se disse acima, mas ainda enquanto atinge a perfeita imobilidade.


CAPÍTULO CLI

COMO, PARA A PERFEITA BEATITUDE, A
ALMA DEVE UNIR-SE NOVAMENTE AO CORPO

1 — Deve-se considerar que não pode haver imobilidade total da vontade, a não ser que o seu desejo natural seja plenamente satisfeito. Tudo que é feito para estar por natureza unido a outra coisa, naturalmente deseja essa união, pois cada coisa deseja aquilo que lhe é conveniente por natureza. Ora, como a alma humana une-se naturalmente ao corpo, como já se disse acima, há nela desejo natural para unir-se a ele. Por isso, não haverá perfeita quietude da vontade, senão após nova união com o corpo. Nisto consiste a ressurreição.
2 — Além disso, para a perfeição final, requer-se a primeira perfeição. Ora, a primeira perfeição de cada coisa consiste em estar perfeita na sua natureza, e a perfeição final consiste na consecução do último fim. Para que a alma seja totalmente perfeita no fim, é necessário que esteja também perfeita na sua natureza, o que não acontece senão estando ela unida ao próprio corpo.
A alma é, por natureza, uma parte do homem, enquanto é forma (substancial), e nenhuma parte está perfeita por natureza, senão quando unida ao todo. É exigido, pois, para a última beatitude do homem, que a alma novamente se una ao corpo.
3 — Finalmente, o que existe acidentalmente e contra a natureza não pode ter duração eterna. Ora, é necessário que estando a alma separada do corpo, esse estado lhe seja acidental e contra a natureza, se por natureza ela deve unir-se ao corpo. Eis porque a alma não estará para sempre separada do corpo. Ora, como a sua substância é incorruptível, como já foi visto, conclui-se que ela deva novamente unir-se ao corpo.


CAPÍTULO CLII

COMO A SEPARAÇÃO ENTRE A ALMA
E O CORPO SEJA CONFORME E
CONTRA A NATUREZA

1 — Parece que a separação entre a alma e o corpo não é acidental, mas conforme a natureza. O corpo do homem é composto de elementos contrários. Ora, seres assim são naturalmente corruptíveis. Logo, o corpo humano é naturalmente corruptível.
2 — Estando o corpo corrompido e sendo a alma incorruptível, ela deve, ao separar-se, necessariamente permanecer, como já foi explicitado. Ora, assim sendo, a separação entre a alma e o corpo apresenta-se como sendo conforme à natureza.
3 — Devemos agora ver como essa separação deva ser contra a natureza. Já foi acima demonstrado que a alma racional, diferentemente do modo das outras formas (substanciais) excede a faculdade de toda matéria corporal, como se verifica pela sua operação intelectual, que se realiza sem o corpo. Para que a matéria corpórea lhe fosse apta de modo conveniente, foi também necessário que alguma disposição fosse acrescida ao corpo, pela qual este se tornasse matéria conveniente a tal forma. Como, além disso, essa forma só por Deus é posta na existência pela ação criadora, assim também aquela disposição que excede à natureza corpórea só por Deus foi conferida ao corpo humano, disposição essa que deveria conservar o corpo incorrupto, de modo a corresponder à perpetuidade da alma. Essa disposição, com efeito, permanece no corpo do homem enquanto a sua alma adere a Deus.
Afastando-se, porém, a alma de Deus pelo pecado, é conveniente que o corpo humano perca também aquela disposição sobrenatural pela qual submetia-se de modo imóvel à alma. É assim que o homem fica incurso na necessidade de morrer.
4 — Considerando-se, portanto, a natureza do corpo, a morte é-lhe natural. Considerando-se, porém, a natureza da alma e a disposição conferida, no início, ao corpo humano, por causa da alma, a morte é-lhe acidental e contra a natureza, já que é natural que a alma esteja unida ao corpo.


CAPÍTULO CLIII

A ALMA REASSUMIRÁ O MESMO
CORPO E NÃO UM CORPO DE
OUTRA NATUREZA

1 — Unindo-se a alma ao corpo como forma (substancial), e como a cada forma corresponde a própria matéria, é necessário que o corpo que novamente se une à alma seja da mesma natureza e espécie que o corpo deixado por ela, pela morte. Com efeito, a alma não reassume, na ressurreição, um corpo celeste, aéreo, ou o corpo de um outro animal, como alguns fabulam, mas reassume o corpo humano, que é organicamente composto de carne e osso, e com os mesmos órgãos que agora o constituem.
2 — Demais, como à mesma forma, de acordo com a espécie, corresponde a mesma matéria, de acordo com a espécie, assim também à mesma forma, de acordo com o número, corresponde a mesma matéria, de acordo com o número. Portanto, como a alma do boi não pode ser a alma do corpo de um cavalo, assim também a alma de um boi não pode ser alma de outro boi. É necessário, pois, que a alma racional permanecendo numericamente a mesma, se una novamente, na Ressurreição, a um corpo numericamente o mesmo.


CAPÍTULO CLIV

SÓ PELO PODER DE DEUS O CORPO
NUMERICAMENTE O MESMO
SERÁ REASSUMIDO

1 — Aquilo que se corrompe na substância não pode ser refeito numericamente o mesmo por operação natural, mas o pode apenas especificamente. A nuvem que produz uma chuva não é numericamente a mesma que a que se forma pela evaporação da água dessa chuva. Como, com efeito, o corpo humano corrompe-se substancialmente pela morte, ele não pode ser reparado por ação da natureza, para que fique numericamente o mesmo. Como, porém, essa reparação exija a verdadeira ressurreição, conforme acima explicado, conclui-se que a ressurreição dos homens não se faz por operação natural (como muitos afirmaram, dizendo que após o decurso de muitos anos, voltando o corpo ao mesmo lugar, os homens voltariam também numericamente os mesmos), mas, que a reparação dos que ressurgem só pode ser feita por operação divina.
2 — Ademais, é também evidente que os sentidos que foram destruídos não podem ser restituídos por operação natural, nem tampouco aquilo que surge só por geração, porque é impossível que uma coisa seja gerada muitas vezes, continuando numericamente a mesma. Se, porém, algo é restituído a alguém desse modo (por exemplo, um olho arrancado, uma mão cortada), isso é feito pela virtude divina, a qual opera acima da ordem natural (isto é, sobrenaturalmente), como já foi visto. Como, com efeito, todos os sentidos e membros do homem desaparecem, é impossível que o homem morto seja novamente refeito para a visão, a não ser por uma operação divina.
3 — Pelo fato de afirmarmos que a ressurreição futura é feita por operação divina, facilmente pode-se verificar como o corpo é reparado, conservando-se numericamente, porém, o mesmo. Ora, foi afirmado acima que todas as coisas, mesmo as mínimas, subordinam-se à Providência Divina. Assim sendo, é claro que a matéria deste corpo humano, seja qual for a forma que o homem receba após a morte, não deixará de estar submetida à operação nem ao conhecimento divinos. Essa matéria permanece numericamente a mesma enquanto é conhecida segundo dimensões segundo as quais ela é dita, e de fato o é, o princípio da individuação. Ora, permanecendo essa mesma matéria, e, com ela, o corpo humano reparado pela virtude divina, é claro que o homem é também reparado, conservando-se numericamente o mesmo.
4 — Não pode também essa identidade numérica ser impedida pela objeção de alguns que afirmam que a humanidade no homem não será a mesma conforme o número. Conforme eles, a humanidade que é dita forma do todo, não é senão forma da parte, que é a alma, e esta é dita forma do corpo, porque dá especificação ao todo. Se isso é verdadeiro, é também evidente que a humanidade permanece numericamente a mesma, já que a alma racional é numericamente a mesma. Mas porque a humanidade é significada pela definição do homem, e como a definição de qualquer coisa significa-lhe a essência, a definição do homem não só significa a forma, bem como a matéria (já que nas definições de coisas materiais deva-se pôr a matéria). Outros acham que seja mais conveniente que no conceito de humanidade estejam incluídos a alma e o corpo, de modo diverso, porém, que na definição do homem, pois no conceito de humanidade estão incluídos somente os princípios essenciais do homem, com exclusão dos outros princípios. Como humanidade refere-se àquilo pelo que o homem é homem, é claro que tudo aquilo que não pode ser verdadeiramente dito que faz o homem ser homem deve ser excluído do conceito de humanidade.
Por outro lado, denominando-se homem àquele que possui a humanidade, pelo fato de ele possuir a humanidade não se exclui que possua também outras coisas, como, por exemplo, a cor branca e semelhantes qualidades. Ora, o termo homem significa os princípios essenciais do homem, não, porém, com a exclusão dos demais princípios, bem que os demais estejam incluídos no conceito de homem não em ato, mas em potência. Homem, portanto, significa conforme o todo; humanidade, porém, conforme a parte, e não pode ser atribuída como tal ao homem todo. Em Sócrates ou em Platão estão contidas esta matéria e esta forma, pois é de natureza do homem ser composto de alma e corpo. Eis porque a definição de Sócrates seria verdadeira se nela fosse considerado que ele é constituído por estas carnes, estes ossos e esta alma. Conseqüentemente, se a humanidade não é uma outra forma fora da alma e do corpo, mas composta de ambos, é claro que sendo refeito o mesmo corpo e permanecendo a mesma alma, a humanidade será também numericamente a mesma.
5 — Nem tampouco a identidade numérica será impedida, porque a corporeidade não volta numericamente a mesma, já que ela se corrompe ao corromper-se o corpo.
Se por corporeidade entende-se a forma substancial pela qual um ser é colocado no gênero das substâncias corpóreas, e como de um só ser não há senão uma só forma substancial, essa corporeidade outra coisa não é senão a própria alma. Este animal, com efeito, por esta alma, não só é animal, como também corpo animado, e corpo é algum homem existindo no gênero da substância. Se assim não fosse, a alma viria ao corpo já existente em ato, e seria, então, forma acidental. O sujeito da forma substancial não é algo em ato, mas em potência. Por conseguinte, o corpo quando recebe a forma substancial não é dito ser gerado conforme este ou aquele aspecto, como acontece na geração das formas acidentais, mas é dito gerado simplesmente, recebendo como que simplesmente o ser. A corporeidade assim recebida permanece a mesma em número, estando a mesma alma racional.
6 — Se, porém, pelo nome de corporeidade entende-se alguma forma, que dá denominação ao corpo posto no gênero da quantidade, então corporeidade é uma certa forma acidental, nada significando senão a dimensão trina. Assim, embora essa forma acidental não seja numericamente a mesma, não fica prejudicada a identidade numérica do sujeito, pois, para salvá-la, é suficiente a identidade dos princípios essenciais. Essa mesma razão vale para todos os acidentes, cuja diversidade não impede a identidade numérica do sujeito. Por isso, a união sendo uma relação, e, assim, acidente, a sua diversidade numérica não impede a identidade do sujeito. Nem tampouco a impede a diversidade das potências da alma sensitiva e vegetativa, se de fato se corrompem. As potências naturais existentes no corpo íntegro estão no gênero dos acidentes. Mas sensível, enquanto sensível é diferença constitutiva do animal, não é derivado de potência, e sim da própria substância da alma sensitiva, a qual, no homem, substancialmente é uma só com a alma racional.


CAPÍTULO CLV

NÃO RESSURGIREMOS
NO MESMO MODO DE VIDA

Os homens ressurgirão numericamente os mesmos, mas não terão o mesmo modo de vida: agora, a sua vida é corruptível; então, será incorruptível.
1 — Se a natureza, na geração, tenciona a perpetuidade do ser, com mais razão a tenciona Deus, na reparação do homem. A natureza tenciona a perpetuidade do ser, porque ela é movida por Deus. Mas na reparação do homem pela ressurreição não é visada perpetuidade da espécie, porque isso pode ser alcançado pela perpetuidade da geração. Resta, portanto, que nela seja visado o perpétuo ser do indivíduo. Logo, após a ressurreição, os homens viverão para sempre.
2 — Demais, se os homens ressuscitados morressem, as almas privadas dos corpos não poderiam permanecer para sempre neste estado de privação: isso é contra a natureza da alma, como se verificou acima. Seria, portanto, conveniente que de novo ressurgissem, acontecendo isso se, depois da segunda ressurreição, os homens morressem outra vez. Se assim fosse, a morte e a vida seriam reiteradas em circulação infinita, no mesmo homem. Mas isso é sem sentido. É mais conveniente que se pare na primeira asserção feita, isto é, que os homens ressurjam imortais na primeira ressurreição.
3 — Contudo, essa privação da mortalidade não traz ao homem diversidade específica ou numérica. A mortalidade, por sua natureza, não pode ser a diferença específica do homem, pois representa uma certa passividade, É posta, porém, como diferença específica do homem, para que, enquanto ele é caracterizado como mortal, seja entendida a sua natureza de homem, que é composto de princípios contrários, como também, enquanto é caracterizado como racional, seja entendida a sua própria forma, pois as coisas materiais não podem ser definidas sem a matéria. A mortalidade, porém, não seria afastada pela separação da matéria própria, porque a alma não reassumirá um corpo celeste, um astro, como acima verificamos, mas o corpo humano, composto de seus elementos contrários. A incorruptibilidade, porém, lhe vem da virtude divina, pela qual a alma dominará o corpo até não o deixar mais corromper-se, pois uma coisa é conservada no ser tanto tempo em que a forma domine a matéria.


CAPÍTULO CLVI

DEPOIS DA RESSURREIÇÃO NÃO
HAVERÁ MAIS USO DE ALIMENTOS
NEM DA FUNÇÃO GENERATIVA

1 — Porque, afastado o fim, deve ser removido tudo o que se destine ao fim, convém que, afastada a mortalidade dos ressurgidos, sejam também removidas as coisas destinadas ao estado viatório, tais como o alimento e a bebida, que são necessários para a subsistência da vida mortal, enquanto o que é destruído pelo calor natural seja restaurado pelos alimentos: não haverá, portanto, após a ressurreição, o uso dos alimentos nem das bebidas.
2 — Do mesmo modo não se usarão as vestes, pois elas são necessárias para que os corpos não sejam corrompidos pelo calor ou pelo frio, vindos de fora.
3 — Deverá cessar também o uso das funções venéreas, pois elas ordenam-se à geração dos animais. A geração, com efeito, serve à vida mortal, para que, já que o homem como indivíduo não pode ser conservado, conserve-se, pelo menos, como espécie. Mas como, após a ressurreição, os homens serão conservados individualmente para sempre, não haverá então lugar neles para a geração, nem, conseqüentemente, para o uso das funções venéreas. Além disso, como o sêmen é uma decorrência da nutrição, cessada esta, cessará também o exercício das funções generativas.
4 — Não se pode afirmar convenientemente que o uso dos alimentos, das bebidas e das funções venéreas devam permanecer só para o deleite. Nada, com efeito, será desordenado naquele estado final, porque nele cada coisa, a seu modo, receberá perfeita consumação. Ora, a desordem opõe-se à perfeição.
5 — Sendo ainda a reparação do homem pela Ressurreição causada imediatamente por Deus, neste estado não poderá haver desordem alguma. Lê-se na Carta aos Romanos: “O que é instituído por Deus é ordenado” (Rom 13,1). É, com efeito, desordenado procurar-se só por deleite o uso dos alimentos ou da função venérea, e, por esse motivo, mesmo agora, entre os homens, usá-los desse modo é tido por vicioso. Portanto, não permanecerá, naqueles que não mais morrerem, o uso da comida, da bebida e da função venérea, só para o prazer.


CAPÍTULO CLVII

CONTUDO, TODOS OS
MEMBROS RESSURGEM

1 — Embora não haja nos ressurgidos o uso das funções descritas, não lhes faltarão os membros destinados a elas, porque sem eles os corpos não seriam íntegros. É conveniente, pois, que na reparação do homem ressurgido, que será feito por Deus sem algum elemento intermediário, cujas obras são perfeitas, seja integralmente reparada a natureza. Assim, esses membros estarão nos ressurgidos para que seja conservada a integridade da natureza, mas não para os atos a que foram destinados.
2 — Ademais, se naquele estado os homens recebem a pena ou o mérito das ações na terra, como veremos depois, é conveniente que eles possuam os mesmos membros pelos quais serviram, nesta vida, ao pecado ou à justiça, para que sejam punidos ou premiados nos mesmos membros em que pecaram ou mereceram.


CAPÍTULO CLVIII

OS HOMENS NÃO RESSURGEM
COM DEFEITOS

É também conveniente que todos os defeitos naturais sejam afastados dos corpos dos ressurgidos.
1 — Por todos esses defeitos é quebrada a integridade da natureza humana. Porém, se é conveniente que na ressurreição a natureza humana seja integralmente reparada por Deus, é também conseqüente que esses defeitos sejam afastados.
2 — Além disso, esses defeitos originam-se de uma falha da virtude natural, que foi o princípio da geração humana. Ora, na ressurreição não haverá outra virtude operante, senão a divina. Logo, tais defeitos dos homens aqui gerados não estarão neles, após terem sido reparados pela ressurreição.


CAPÍTULO CLIX

RESSURGIRÁ SOMENTE AQUILO
QUE PERTENCE À VERDADEIRA NATUREZA

1 — O que foi dito a respeito da integridade dos ressurgidos deve também atribuir-se àquilo que pertence à verdade da natureza humana. O que não pertence à verdade da natureza humana não será também reassumido nos ressurgidos, pois o tamanho deles seria excessivo, se for reassumido tudo que de alimento lhes foi transformado em carne.
A verdade, com efeito, de cada natureza, considera-se conforme a sua espécie e forma. As partes do homem referentes à espécie e à forma estarão todas integralmente nos ressurgidos, não só as partes orgânicas, bem como partes semelhantes a estas, como a carne, os nervos, etc., das quais se compõem os membros orgânicos. Por isso, não será reassumido tudo que naturalmente esteve nessas partes, mas somente o que foi suficiente para a integração de cada uma delas.
2 — Nem o homem deixará de ser numérica e integralmente o mesmo, se aquilo que nele existiu materialmente não ressurgir. É certo que neste estado de vida terrestre o homem permanece, do princípio ao fim da vida, numericamente o mesmo. Contudo, aquilo que materialmente sob a forma das partes existe nele não permanece o mesmo, mas lentamente entra e sai (como um fogo que não se apaga, mas que sempre se conserva porque é sempre reacendido), e, assim, o homem fica íntegro quando lhe são conservadas a espécie e a quantidade devida à espécie.

CAPÍTULO CLX

DEUS SUPRIRÁ TUDO QUE FALTAR
NO CORPO DEFORMADO OU
NA SUA MATÉRIA

Assim como Deus, para a reparação do corpo ressurgido, não fará ser reassumido tudo que existiu no corpo humano, assim também o que materialmente lhe faltar, Deus suprirá. Se isso pode ser feito pela natureza, de modo que, à criança que não tem o tamanho devido, seja-lhe dado apenas o que lhe é suficiente para adquirir o perfeito tamanho, pela recepção da comida e da bebida, que são de matéria alheia, sem, contudo, perder ela a identidade numérica, com muito mais razão isso pode ser feito pela virtude divina. Será, então, suprido, aos que menos receberam de matéria extrínseca, e que a eles nesta vida faltou para a integridade dos membros naturais, ou do tamanho devido. Assim, embora alguns não tenham certos membros naturais nem tenham atingido o tamanho perfeito, eles receberão, na ressurreição, pela virtude divina, a perfeição devida aos membros e ao tamanho, seja qual for o tamanho com que tenham morrido.


CAPÍTULO CLXI

REFUTAÇÃO DE ALGUMAS OBJEÇÕES
CONTRA O QUE ESTÁ AQUI EXPOSTO

Pelas razões seguintes podem ser resolvidas as dificuldades apresentadas por alguns contra a ressurreição.
1 — Dizem ser possível que um alimentado por carne humana gere filho neste estado, e que este filho alimente-se também de carne humana. Ora, se o alimento se converteu na substância da carne, parece ser impossível que ambos ressurjam integralmente, já que as carnes de um convertem-se nas carnes do outro. Torna-se isso ainda mais difícil se o sêmen, como afirmam os filósofos, provém do supérfluo dos alimentos, e, nesse caso, o sêmen do qual nasceu o filho origina-se na carne de outrem. Parece, assim, impossível que o filho nascido desse sêmen ressurja, se os homens, dos quais o pai e o filho comeram as carnes, ressurgirem integralmente.
2 — Na verdade, essas considerações não repugnam à ressurreição universal.
Foi dito acima que não é necessário que tudo que existiu materialmente em um homem deva ser reassumido quando ele ressurgir, mas somente o necessário para ser conservada a porção de quantidade a ele devida. Foi também afirmado que se alguém tiver deficiência de matéria para atingir o tamanho completo, isso será suprido pela virtude divina.
Deve-se, além disso, considerar que se algo existe materialmente no corpo humano, neste se encontra, pertencendo, em graus diversos, à verdade da natureza humana. Com efeito, o que primeiro e principalmente se recebe dos pais, verdadeiramente pertencente à espécie humana de modo puríssimo, perfaz-se pela virtude formativa; secundariamente, o que é gerado como vindo dos alimentos para a devida quantidade dos membros, porque sempre a mistura com um elemento estranho enfraquece a força do ser; finalmente, é necessário que o tamanho diminua e que o corpo envelheça e se dissolva, como o vinho ao qual se mistura a água, tornando-se aguado. Além disso, vindo dos alimentos, aparecem no corpo do homem alguns elementos supérfluos, dos quais uns são necessários para determinado uso, como o sêmen para a geração e os cabelos para revestimento e ornato do corpo; outros, no entanto, para nada valem, e são expelidos, como a secreção sudorífera e outras mais, ou são conservados internamente com prejuízo da natureza.
Tudo isso será considerado conforme a disposição da Providência Divina, na ressurreição comum, de modo que se alguma coisa existiu materialmente em mesmo número em diversos homens, ressurgirá naquele em que se realizou em maior grau. Se, porém, existiu numericamente a mesma e do mesmo modo em dois homens, aparecerá naquele em que por primeiro existiu; no outro será, então, suprida pela virtude divina.
Fica, assim, claro que as carnes de um homem, comidas por outro, não ressurgem neste que as comeu, mas naquele em que elas primeiramente existiram. Contudo, ressurgirão naquele que foi gerado do sêmen do homem que as comeu, quanto ao que nele existiu de alimento líquido; o restante, ressurgirá no primeiro homem, devendo Deus suprir o que faltou a cada um.


CAPÍTULO CLXII

A RESSURREIÇÃO DOS MORTOS
ESTA EXPRESSA NOS ARTIGOS DA FÉ

Para ser confessada a verdade da Ressurreição da Carne, foi colocado no Símbolo dos Apóstolos: “Creio na Ressurreição da Carne.”
Não foi sem motivo que só foi posta a expressão carne, pois existiram alguns, ainda nos tempos apostólicos, que negaram a ressurreição da carne, confessando eles que haveria só uma ressurreição espiritual, aquela pela qual o homem ressurge da morte do pecado.
Refere-se o Apóstolo, pela segunda vez, na Segunda Carta a Timóteo, a alguns que se afastaram da verdade dizendo que a Ressurreição já foi feita, e que subverteram a fé de muitos. (2 Tim 2,18; 1 Tim 6,21).
Para afastar o erro deles e para que se creia na ressurreição futura, é dito no Símbolo dos Padres: “Espero a ressurreição dos mortos.”


CAPÍTULO CLXIII

QUE ATIVIDADE TERÃO
OS RESSURGIDOS

Cada ser vivo deve ter uma operação para a qual se dirija em primeiro lugar, e nisto se diz que consiste a sua vida; como dos que se dirigem, em primeiro lugar, para a voluptuosidade, diz-se deles que levam vida voluptuosa; dos que se entregam à contemplação, que têm vida contemplativa; dos que, ao governo do povo, que realizam vida política.
Acima foi demonstrado que os ressurgidos não se alimentarão, nem usarão dos prazeres venéreos, para o que parece que se ordenam as demais funções corpóreas. Afastadas essas funções corpóreas, permanecem as operações espirituais, nas quais, já o dissemos, consiste o fim último do homem. Atingir esse fim cabe aos ressurgidos livres do estado de corrupção e de mutabilidade, como já foi acima demonstrado.
O fim último do homem não consiste em quaisquer atos espirituais, mas em que Deus seja visto na sua essência, como se falou acima. Ora, sendo Deus eterno, é necessário que a nossa inteligência se una também à eternidade. Como dos que se entregam à voluptuosidade, diz-se deles que vivem uma vida voluptuosa, assim também os que possuem a vida divina têm vida eterna, conforme escreve São João: “Esta é a vida eterna — que Te conheçam como Deus verdadeiro.” (Jo 17,3.)


CAPÍTULO CLXIV

DEUS SERÁ VISTO NA SUA ESSÊNCIA,
NÃO EM ALGUMA SEMELHANÇA

Deus será visto pela inteligência criada na sua própria essência, não em alguma semelhança, pela qual a coisa conhecida torna-se presente na inteligência, mas dela está distante, como a pedra que está presente aos olhos pela sua semelhança, mas deles dista, pela substância.
Mas já foi dito acima que a mesma essência de Deus une-se, de certo modo, à inteligência criada, e assim Deus pode ser visto na sua própria essência.
Assim como no último fim será visto o que antes se acreditou sobre Deus, também o que fora esperado como distante será possuído como presente, e a isso é que se chama decompreensão, conforme as palavras do Apóstolo na Carta aos Fiipenses: “Prossigo, para ver se compreenderei.” (Fil 3,12.) Este modo não deve ser entendido no sentido de que à compreensão pertença alguma inclusão, mas só enquanto ela supõe a presença da coisa compreendida, assim como também é suposto o conhecimento dela por quem a compreende.


CAPÍTULO CLXV

VER A DEUS É A SUMA PERFEIÇÃO
E O SUMO DELEITE

1 — Deve-se também considerar que o deleite é gerado pela apreensão do objeto conveniente à potência, como a vista deleita-se pela apreensão das belas cores, e o gosto, com suaves sabores. Mas o deleite dos sentidos pode ser impedido por uma indisposição do órgão sensitivo, como acontece com os olhos doentes, aos quais a luz é desagradável. Entretanto, sabemos que aos olhos sãos, ela é agradável. Como, porém, a inteligência não conhece por meio de órgão corpóreo, como foi demonstrado, o deleite que lhe vem da contemplação da verdade não é contrariado por tristeza alguma. Contudo, acidentalmente, pode a tristeza acompanhar a apreensão intelectiva, enquanto aquilo que é conhecido pela inteligência é apreendido como nocivo, havendo, no caso, satisfação na inteligência pelo conhecimento da verdade, e tristeza na vontade, causada pela coisa conhecida, não enquanto é conhecida, mas enquanto nociva ao ato voluntário. Ora, Deus, naquilo mesmo que é, é a verdade. Por conseguinte, não pode a inteligência ver a Deus e não se deleitar também, simultaneamente, dessa visão.
2 — Ademais, Deus é a própria bondade que motiva ao amor. Logo, é necessário que essa bondade seja amada por todos os que a apreenderem.
Se bem que uma coisa, mesmo sendo boa, possa não ser amada, podendo até ser odiada, isso acontece, não porque seja apreendida como bem, mas enquanto o é como nociva. Na visão de Deus, que é a própria bondade e verdade, convém que, como há conhecimento compreensivo de Deus, haja também o amor, isto é, a posse deleitável, conforme se lê em Isaías: “Vereis, e o vosso coração se alegrará.” (Is 66,14.)


CAPÍTULO CLXVI

TODOS OS QUE VÊEM A DEUS ESTÃO
CONFIRMADOS NO BEM

Do exposto acima, pode-se concluir que a alma, ou qualquer outra criatura espiritual, que vê a Deus, tem a vontade n’Ele confirmada, de modo que não se incline para sempre a um bem contrário.
1 — Sendo o bem o objeto da vontade, é impossível que ela incline-se para alguma coisa, a não ser atraída por alguma razão de bem. Mas como é possível também faltar algo em qualquer bem particular, fica, ao que conhece, a capacidade de buscá-la em outro bem. Logo, não convém à vontade do que conhece um bem particular fixar-se só nele, de modo que não se ordene senão para ele.
Mas em Deus, que é o bem universal e a própria bondade, nada de bem lhe falta que possa ser desejado em outro ser, como se viu acima. Quem quer, pois, que veja a essência de Deus não pode d’Ele desviar a vontade sem que se dirija para tudo, senão sob uma formalidade divina.
2 — Esclareçamos isso por uma semelhança do plano do conhecimento. A nossa inteligência, quando duvida, é capaz de dirigir-se para objetos contrários, até atingir o primeiro princípio, no qual necessariamente se firme. Como, com efeito, o fim é para as coisas apetecíveis o que o princípio é para as inteligíveis, pode também a vontade inclinar-se para bens contrários até que venha ao conhecimento ou fruição do último bem, no qual necessariamente deva firmar-se.
3 — Além disso, seria contrário à felicidade perfeita, se o homem, neste estado, pudesse inclinar-se para bens contrários. Se não o fosse, não estaria totalmente excluído o temor de perder a Deus, e, assim, o desejo não estaria também totalmente aquietado. Lê-se, porém, no Livro do Apocalipse: “Não sairá mais fora d’Ele.” (Ap 3,12.)


CAPÍTULO CLXVII

OS CORPOS ESTARÃO TOTALMENTE
SUBMISSOS ÀS ALMAS

Porque o corpo é para a alma como a matéria para a forma, e como o instrumento, para o artífice; quando a alma atingir a vida acima descrita, a ela será dado, por ação divina — na ressurreição — aquele corpo que corresponda à sua beatitude.
Com efeito, o que é ordenado para um fim, deve ser disposto de acordo com as exigências desse fim. Ora, tendo a alma atingido o sumo grau da sua atividade intelectual, não convém a ela ter corpo, porque, por ele, de certo modo, ela é impedida ou retardada para essa atividade. Sabemos que o corpo humano, devido à sua natureza corruptível, impede e retarda a atividade espiritual, de modo que a alma não seja capaz de permanecer em contínua contemplação, nem, chegar ao sumo grau dessa contemplação, porque é fazendo abstração dos sentidos corpóreos que os homens tornam-se mais aptos para receber algum conhecimento das coisas divinas. Assim é que as revelações proféticas são feitas durante o sono, ou em estado de êxtase, conforme se lê no Livro dos Números: “Se houver entre vós algum profeta, Eu aparecerei em visão e falar-lhe-ei no sono” (Num 12,6). Ora, os corpos dos beatos ressurgidos não serão corruptíveis, nem retardadores da ação da alma, como agora, mas serão incorruptíveis e absolutamente obedientes à própria alma, não lhe resistindo em nada.


CAPÍTULO CLXVIII

OS DOTES DOS CORPOS
GLORIFICADOS

Daí se pode concluir qual seja a constituição dos corpos dos glorificados.
A alma é forma e motor do corpo. Como forma, não apenas é princípio do corpo quanto ao ser substancial, mas também quanto aos acidentes, que são causados no sujeito pela união da forma com a matéria. Além disso, quanto mais forte for a forma, tanto menos será a sua atuação sobre a matéria impedida por algum agente externo, como se vê, por exemplo, no fogo, cuja forma é considerada a mais nobre entre as formas elementares, e, por isso, lhe dá a capacidade de não facilmente ter a sua disposição natural modificada por outro agente.
Ora, como a alma beata estará em sumo grau de nobreza e de força, porque unida ao primeiro princípio de todas as coisas, ela conferirá ao corpo a si divinamente unido, em primeiro lugar, o ser substancial, tendo-o sob seu império de modo nobilíssimo, e, por isso, este será sutil espiritual. Dará também a alma, ao corpo, uma qualidade nobilíssima, qual seja, a glória da claridade, e, em virtude da mesma alma, o corpo não poderá ser modificado na sua disposição que é a de ser impassível; e porque também ele totalmente obedecerá à alma, como o instrumento obedece ao agente motor, tornar-se-á ágil. São, portanto, quatro as condições dos corpos dos beatos: sutileza, clareza, impassibilidade agilidade. Todas elas são lembradas por São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios: “O corpo que na morte é semeado na corrupção, surgirá na incorrupção”; eis a impassibilidade. “Semeado na ignomínia, surgirá na glória”; eis a clareza. “Semeado na fraqueza, surgirá na força”; eis a agilidade. “Semeado em corpo animal, surgirá corpo espiritual”; eis a sutileza. (I Cor 15,42.)


CAPÍTULO CLXIX

O HOMEM SERÁ, ENTÃO, RENOVADO,
BEM COMO TODA A NATUREZA
CORPÓREA

É certo que as coisas ordenadas a um fim são dispostas de acordo com as exigências deste fim. Eis porque se aquilo, para o que algumas coisas estão ordenadas, varia conforme a perfeição e a imperfeição, estas, que são para aquilo ordenadas, devem ser dispostas de modos diversos, conforme o estado perfeito ou imperfeito: o alimento e as vestes são diversamente feitos para a criança e para o adulto.
Já vimos acima que a criatura corpórea ordena-se para a natureza espiritual como para um fim. Convém, portanto, que tendo o homem recebido na ressurreição a sua última perfeição, também a criatura corpórea seja levada para outro estado. Por isso é que se diz que o mundo será renovado pela ressurreição do homem. Lê-se a respeito, no Apocalipse: “Vi um novo céu e uma nova terra” (Ap 21,1), e, em Isaías: “Eis que Eu crio novo céu e nova terra” (Is 65,7).


CAPÍTULO CLXX

QUAIS AS CRIATURAS QUE SERÃO
RENOVADAS, E QUAIS AS QUE
PERMANECERÃO COMO AGORA

1 — Deve-se ainda considerar que os diversos gêneros de criaturas corpóreas, segundo razões diversas, ordenam-se para o homem.
Sabemos que as plantas os animais servem ao homem, auxiliando-o na fraqueza, enquanto este recebe deles o alimento, as vestes, o transporte e coisas semelhantes, pelas quais as deficiências humanas são remediadas.
No estado final, porém, toda essa fraqueza será — pela ressurreição — afastada do homem. Ele não terá mais necessidade dos alimentos para se nutrir, porque estará então incorruptível, como vimos; nem de vestes para se cobrir, porque vestir-se-á da claridade da glória; nem de animais para o transporte, porque será ágil; nem de remédios para conservar a saúde, porque será impassível. Portanto, é conveniente que no estado de última consumação não permaneçam tais criaturas corpóreas, isto é, as plantas, os animais, e outros corpos mistos semelhantes.
2 — Quanto aos quatro elementos — fogo, ar, água e terra —, sabemos que eles se ordenam para o homem, não só para o exercício da vida corporal, mas também para a própria constituição do corpo humano, porquanto o corpo é constituído desses elementos. Desse modo, os elementos ordenam-se essencialmente para o corpo humano. Por isso, na consumação do homem no seu corpo e na sua alma, é conveniente que esses elementos também permaneçam, mas mudados para melhor condição.
3 — Quanto aos corpos celestes, eles não são assumidos em sua substância pelo homem, nem para o uso da vida corruptível, nem entram tampouco na constituição do corpo humano. Contudo, servem ao homem enquanto pela sua beleza e grandeza revelam a existência do Criador. Eis porque, constantemente, nas Escrituras, o homem é convidado a contemplar os corpos celestes, para que, por meio deles, seja conduzido à reverência divina, como se pode ler em Isaías: “Levantai os olhos para o alto e contemplai quem criou estas coisas” (Is 40,26).
Não obstante o homem no estado daquela perfeição não seja levado pelas criaturas sensíveis ao conhecimento de Deus, vendo então Deus em si mesmo, contudo será alegre e deleitável ao que vê a causa reconhecer no efeito, resplandecente, a semelhança dela. Eis porque será alegre para os Santos a consideração do reflexo da bondade divina nos corpos, máxime nos corpos celestes, os quais se antepõem aos demais.
Os corpos celestes têm também uma certa ordenação essencial para o corpo humano, isto é, sob o aspecto de causa agente, como os elementos a têm, sob o aspecto de causa material. O homem gera o homem por influência do sol[7], e, por esse motivo, é também conveniente a permanência dos corpos celestes.
4 — Que esses corpos celestes sejam conservados, isso torna-se evidente não só pela comparação deles com o homem, mas também pela consideração da natureza das criaturas corpóreas de que falamos.
5 — Aquilo que por nenhum aspecto é incorruptível não deve permanecer naquele estado de incorruptibilidade. Ora, os corpos celestes são incorruptíveis no todo e nas partes; os elementos, no todo, mas não nas partes; o homem, só em uma parte, isto é, na alma racional, mas não no todo, já que o composto desfaz-se pela morte. Os animais, as plantas e todos os corpos mistos não são incorruptíveis nem no todo, nem nas partes. Assim sendo, permanecerão de fato naquele último estado de incorruptibilidade os homens, os elementos, os corpos celestes, mas não os animais, as plantas e os corpos mistos.
6 — Verifica-se que tudo isso é razoável, se considerarmos a natureza do universo, sendo o homem parte do universo corpóreo, na última consumação deve o universo corpóreo permanecer, pois a parte não é perfeita senão no todo. O universo corpóreo não pode permanecer, sem que suas partes essenciais também permaneçam. Ora, são suas partes essenciais os corpos celestes, os elementos, porque por eles é constituída a máquina do mundo.
Os outros seres não se apresentam como pertencentes à integridade do universo corpóreo, mas como seu ornamento e embelezamento maior, o que convém ao estado de imutabilidade, no qual os animais, as plantas e os corpos minerais são gerados pelos corpos celestes, como agentes, e, pelos elementos, como matéria. No estado de consumação final será dado aos elementos um outro ornato que corresponda ao estado de incorruptibilidade. Permanecerão, portanto, naquele estado, os homens, os elementos e os corpos celestes, não, porém, os animais, as plantas e os seres minerais.


CAPÍTULO CLXXI

CESSARÁ O MOVIMENTO
DOS CORPOS CELESTES

1 — Mas como os corpos celestes movem-se continuamente, pode a alguém parecer que se a substância deles permanecer, deveriam ter eles movimento, naquele estado de consumação.
Isso até poderia parecer razoável, se o movimento dos corpos celestes se realizasse pela mesma razão pela qual se movimentam também os elementos. O movimento próprio dos elementos dá-se, nos corpos pesados ou leves, para que eles atinjam a perfeição. Eles tendem pelo seu movimento natural para o lugar conveniente a cada um, onde melhor devem estar. Portanto, no estado de consumação final, cada elemento, e cada uma das suas partes, estarão no lugar devido. Mas isso não pode ser dito dos corpos celestes, porque o corpo celeste não estaciona em lugar algum que atinja, pois, como naturalmente se move para uma direção, também naturalmente dela se desvia.
Assim sendo, não irá faltar algo aos corpos celestes se o movimento for-lhes tirado porque o movimento não lhes é necessário para que atinjam a perfeição.
2 — É também ridículo afirmar que, como o corpo leve por sua natureza move-se para cima, assim também o corpo celeste deva por natureza mover-se circularmente, movimento proveniente de um princípio ativo. É sabido que a natureza tende sempre para a unidade. Por isso, aquilo, que por sua natureza repugne à unidade, não pode ser o último fim da natureza. Ora, o movimento repugna à unidade, enquanto o corpo movido comporta-se de modos diferentes durante o movimento. A natureza não produz o movimento para o próprio movimento, mas o causa visando um termo, como o corpo leve, por natureza, tende, ao subir, para um lugar acima, e, do mesmo modo, os outros corpos.
Como o movimento circular do corpo celeste não se dirige para um ponto determinado, não se pode dizer que o movimento circular de um corpo seja devido a princípio natural ativo, como esse princípio é causa do movimento dos corpos pesados e leves. Portanto, permanecendo a mesma natureza dos corpos celestes, nada impede que ela entre em repouso, não obstante ser impossível ao fogo entrar em repouso fora do próprio lugar, permanecendo na sua natureza própria.
3 — O movimento do corpo celeste é dito natural, não por causa do princípio ativo do movimento, mas porque o próprio ser movido possui aptidão para ser movido, devendo-se concluir daí que o movimento do corpo celeste deve ser causado por alguma inteligência. Como, porém, a inteligência não move nada a não ser entendendo um fim, deve-se indagar qual seja o fim do movimento dos corpos celestes.
Sendo, com efeito, o movimento, tendência para a perfeição, ele não pode, por natureza, ser o fim, mas é mais, por natureza, tendência para o fim.
Do mesmo modo não se pode dizer que a mudança de situação seja o termo do movimento do corpo celeste, de modo que ele se movimente para estar em ato em um lugar para o qual estava em potência, porque isso iria ao infinito. Ora, sabemos que repugna ao infinito o atributo de fim.
4 — Somos, então, forçados a indagar qual seja o fim do movimento dos corpos celestes. É sabido que todo corpo movido por uma inteligência é seu instrumento. O fim do movimento do instrumento é a forma concebida pelo principal agente, que é reduzida a ato pelo movimento do instrumento. A forma concebida pela inteligência divina, conseguida pelo movimento celeste, é a perfeição das coisas, por via da geração e corrupção. O último fim da geração e da corrupção é a forma nobilíssima, isto é, a alma humana, cujo fim último é a vida eterna, como vimos acima. Por conseguinte, o fim último do movimento do céu é a multiplicação dos homens que devem ser criados para a vida eterna. Ora, essa multidão de homens não pode ser infinita, pois a intenção de qualquer inteligência tem como termo algo finito.
5 — Assim, estando completo o número dos homens criados para a vida eterna, e estando eles gozando dela, cessará o movimento do céu, como cessa o movimento de qualquer instrumento ao estar a obra terminada. Cessado o movimento do céu, conseqüentemente cessará o movimento dos corpos inferiores, com exceção do movimento que haverá na alma humana. Assim, todo o universo corpóreo terá outra disposição e outra forma, conforme se lê na Primeira Carta aos Coríntios: “Passará a figura deste mundo” (I Cor 7,21)[8].

CAPÍTULO CLXXII

DO PRÊMIO E DO CASTIGO DOS
HOMENS PELAS SUAS OBRAS

1 — Deve-se considerar que, se há um determinado caminho para se chegar a um fim, não o alcançarão os que vão pelo caminho oposto, ou os que saírem do reto caminho.
O doente não pode ser curado, a não ser acidentalmente, se usar de medicamentos contrários, proibidos pelo médico.
Há o caminho determinado pelo qual se chega à felicidade, isto é, a virtude. Nenhuma coisa consegue o seu fim, senão agindo bem naquilo que lhe é próprio; nem a planta frutifica se não se respeitar nela o processo natural de ação; nem o corredor recebe o prêmio da vitória; nem o soldado, a palma da glória, senão respeitando ambos a natureza das próprias atividades.
Para o homem, agir bem na atividade que lhe é própria é agir conforme a virtude: pois é a virtude de cada coisa que faz bom o que a possui, e torna também a sua ação boa, como se lê em Aristóteles (II Ética).
Sendo o último fim do homem a vida eterna, da qual se falou acima, nem todos a ela chegam, mas só aqueles que agem virtuosamente.
2 — Além disso, como escrevemos antes, não só as coisas da natureza estão subordinadas à Providência Divina, mas também as coisas humanas, e não apenas de maneira geral, mas particularmente.
Pertence, a quem compete o cuidado dos atos singulares dos homens, retribuir com o prêmio à virtude, e, com a pena, ao pecado (porque a pena é remédio proporcional à culpa, como se viu acima). Mas a felicidade é o prêmio da virtude, que é concedido ao homem pela bondade divina.
Pertence, portanto, a Deus, retribuir aos que agem contra a virtude, não com a felicidade, mas com a extrema miséria.


CAPÍTULO CLXXIII

O PRÊMIO E O CASTIGO DOS
HOMENS APÓS ESTA VIDA

1 — Deve-se considerar que, de causas contrárias, os efeitos são também contrários. Ora, a ação conforme a virtude é contrária à ação conforme a malícia. Deve, portanto, a miséria, à qual se chega pela má ação, ser contrária à felicidade, que é merecida pela ação virtuosa, pois as coisas contrárias perten-
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cem ao mesmo gênero. Como, com efeito, a felicidade última, que se alcança pela ação virtuosa, não consiste em um bem desta vida, mas é obtida após esta vida, como se pode concluir do que já foi dito, é conseqüente que a miséria final, à qual nos leva a malícia, seja também um mal obtido após esta vida.
2 — Além disso, todos os bens ou males desta vida ordenam-se para alguma coisa. Os bens externos e os bens corporais são instrumentos para se conseguir a virtude. Esta, por sua vez, é o caminho reto para se alcançar a beatitude para os que usam desses mencionados bens.
Mas para os que deles usaram mal, são instrumentos da malícia, pela qual se atinge a miséria. Semelhantemente, dos males opostos àqueles bens, como sejam as doenças, a pobreza, etc., alguns são usados como meio para progresso na virtude, outros, para o aumento da maldade, conforme as maneiras diversas por que são usados. Ora, o que é ordenado para outra coisa não é ainda o fim último, porque nem é o último prêmio, nem a última pena. Por conseguinte, a última felicidade e a última miséria não consistem nos bens ou nos males desta vida.


CAPÍTULO CLXXIV

EM QUE CONSISTE A MISÉRIA DO
HOMEM QUANTO À PENA DE DANO

1 — Porque a miséria, para a qual leva a malícia, é contrariada pela felicidade, para a qual leva a virtude, convém que aquilo que pertence à miséria seja considerado como oposto àquilo que conduz à felicidade, conforme acima dissemos. Dissemos, outrossim, que a última felicidade do homem, quanto à inteligência, consiste na plena visão de Deus; quanto ao afeto, porém, consiste em estar a virtude do homem firmada imovelmente na bondade primeira. A extrema miséria do homem consiste em estar a inteligência totalmente privada da luz divina, e em estar o afeto obstinadamente desviado da bondade divina. Nisso consiste a principal miséria dos condenados, e se chama pena de dano.
Deve-se, contudo, considerar que o mal não pode excluir absolutamente o bem, já que todo mal fundamenta-se em algum bem. Portanto, a miséria, mesmo se opondo à felicidade imune de todo mal, deve, não obstante, fundamentar-se no bem da natureza.
2 — O bem de uma natureza inteligente consiste em que a inteligência conheça a verdade, e em que a vontade tenda para o bem. Ora, toda verdade e todo bem derivam do primeiro sumo bem, que é Deus. Por conseguinte, convém que a inteligência do homem, posto naquela extrema miséria, tenha algum conhecimento de Deus e algum amor de Deus, isto é, enquanto Deus é o princípio das perfeições naturais, amor que é natural, não dirigido para Deus em si mesmo; nem para Deus enquanto é princípio das virtude, ou da graça, ou de quaisquer outros bens pelos quais o homem é por Ele aperfeiçoado para a virtude ou para a glória.
3 — Os homens situados em tal miséria não serão privados do livre arbítrio, mesmo tendo a vontade firmada no mal, nem o serão também os bem-aventurados, mesmo tendo a vontade firmada no bem.
Propriamente o livre arbítrio refere-se à eleição, pertence àquelas coisas que se dirigem para o fim. O último fim, com efeito, é naturalmente apetecido por cada um. Donde, todos os homens, sendo como são criaturas inteligentes, desejarem naturalmente a felicidade como o último fim, e isso de modo tão imutável que nenhum dos homens quer tornar-se miserável. Veja-se que isso não repugna à liberdade de arbítrio, porque ela se refere só àquilo que é para o fim.
4 — Que certo homem ponha a sua felicidade neste bem particular, outro homem, naquele, isso não lhes convém enquanto homens, pois nesta estimação e apetência os homens são diferentes, mas convém a cada um enquanto individualmente qualificado. Digo: individualmente qualificado, referindo-me à alguma paixão ou à algum hábito. Assim é que se o indivíduo se modificar, outro bem parecer-lhe-á como ótimo; o que se evidencia ainda mais naquele que deseja algo como ótimo impulsionado por alguma paixão. Cessada a primeira paixão de ira, de concupiscência, não mais julgam aquilo que antes desejavam como bem. Mas os hábitos são mais estáveis, e, por isso, os indivíduos mais firmemente perseveram no bem conquistado por hábito. Enquanto, porém, o hábito possa mudar, o apetite e a estima do homem para o último fim é também mutável. Isso, com efeito, convém aos homens nesta vida, enquanto estão em estado de mutabilidade. A alma, após esta vida, é imutável com relação à alteração, porque a transformação de alteração é-lhe acidental e relaciona-se com alguma transformação corpórea. Quando o corpo for reassumido, não haverá uma mudança de corpo, mas é o contrário que se dá. Agora, a alma é infundida em um corpo originado do sêmen, e, por isso, seguem-se naturalmente as mudanças no corpo. Mas quando o corpo for unido à alma preexistente, totalmente seguir-lhe-á as condições.
5 — A alma, por conseguinte, encontrará no estado de morte qualquer fim que tenha para si preestabelecido como fim último, e nele permanecerá perpetuamente apetecendo-o como fim último, quer seja ele o bem, quer o mal, conforme se lê no Eclesiastes: “Se tombar o madeiro para o austro ou para o aquilão, onde quer que tenha caído, aí permanecerá” (Ec 11,3). Por conseguinte, os que após esta vida forem encontrados bons, terão para sempre a vontade firmada no bem; os que, porém, forem encontrados maus, permanecerão perpetuamente obstinados no mal.


CAPÍTULO CLXXV

OS PECADOS MORTAIS NÃO SERÃO
PERDOADOS APÓS ESTA VIDA;
SÊ-LO-ÃO, PORÉM, OS VENIAIS

1 — Pode-se inferir, do que se disse, que os pecados mortais não serão perdoados após esta vida; mas que os pecados veniais sê-lo-ão.
Os pecados mortais, com efeito, realizam-se pela aversão ao fim último, no qual o homem, após a morte, imovelmente firma-se, como foi dito acima; os pecados veniais, porém, não se referem ao fim último, mas às coisas que levam ao fim último.
2 — A vontade dos maus, após a morte, firma-se obstinadamente no mal, e eles sempre apetecerão como ótimo o que antes desejaram: portanto, não se afligem porque pecaram. Ninguém, de fato, aflige-se, porque alcançou aquilo que desejava como ótimo.
Mas deve ficar esclarecido que os condenados à última miséria não poderão conseguir após a morte o que desejaram como ótimo. Nesse estado não será dado ao luxurioso a faculdade dos prazeres sensuais, nem aos irados ou invejosos a faculdade de ofender ou prejudicar alguém, e assim será com cada vício.
3 — Conhecerão, porém, aqueles que viveram virtuosamente, que conseguiram o que desejaram como ótimo. Os maus afligir-se-ão devido aos pecados cometidos, não porque os pecados os aborreçam, pois se lhes fosse dada oportunidade, ainda os cometeriam e os prefeririam a Deus: afligir-se-ão porque não poderão possuir aquilo que escolheram, e porque poderiam ter aquilo que rejeitaram. Assim as suas vontades permanecerão perpetuamente obstinadas no mal, e ainda afligir-se-ão muitíssimo pela culpa adquirida e pela glória perdida. Chama-se esse sofrimento remorso de consciência, e, na Escritura, ele é chamado de verme, conforme se lê em Isaías: “Os vermes não morrerão para eles” (Is 66,24).


CAPÍTULO CLXXVI

OS CORPOS DOS CONDENADOS
SERÃO PASSÍVEIS E SEM DOTES,
MAS ÍNTEGROS

Como nos santos a beatitude da alma estender-se-á, de certo modo, pelo corpo, conforme nos referimos acima, assim também a miséria da alma refletir-se-á no corpo. Como o bem natural não será retirado da alma, não o será, outrossim, o do corpo. Os corpos dos condenados ficarão íntegros na sua natureza, sem, contudo, possuírem as condições pertencentes à glória dos beatificados. Esses corpos, portanto, não serão sutis nem impassíveis, mas unir-se-ão muito mais à sua natureza pesada e passível, que lhes será, ainda, agravada: não serão ágeis, mas somente empurrados pela alma; não serão claros, mas obscuros, para que as trevas da alma mostrem-se nos corpos, conforme se lê em Isaías: “Os seus rostos serão de faces queimadas” (Is 13,8).

CAPÍTULO CLXXVII

OS CORPOS DOS CONDENADOS SERÃO
PASSÍVEIS, MAS INCORRUPTÍVEIS

Deve-se saber que, apesar de os corpos dos condenados serem passíveis, contudo não se corromperão, bem que isso pareça ser contrário ao que agora experimentamos, pois a paixão, quanto mais veemente, tanto mais é prejudicada a substância.
Haverá, então, dois motivos para justificarem porque a paixão, apesar de perpetuamente continuada, não prejudicará os corpos.
1 — O primeiro é este: tendo cessado o movimento do céu, como já foi dito acima, necessariamente cessará toda mudança na natureza. Nada poderá, por conseguinte, ser mudado por alteração da natureza, mas haverá somente alteração da alma. Quando me refiro à alteração da natureza, refiro-me a algo que de quente torne-se frio, ou que, de qualquer maneira, varie na natureza das qualidades. Quando me refiro à alteração da alma, refiro-me a algo que receba uma qualidade, não conforme a natureza da qualidade, mas conforme a natureza de ser espiritual: como a pupila que não recebe a forma da cor para que fique colorida, mas para que sinta a cor.
Assim também os corpos dos condenados sofrerão pela ação do fogo, ou de qualquer outro elemento corpóreo, não para que sejam alterados pela natureza ou qualidade do fogo, mas para que sintam a superioridade dele. Será isso aflitivo enquanto essa superioridade contraria a harmonia reinante nos sentidos e pela qual eles deveriam deleitar-se. Isso, porém, não fará o corpo ser corruptível, porque a recepção espiritual das formas não modifica a natureza dos corpos, a não ser acidentalmente.
2 — A segunda razão diz respeito à alma, à cuja perpetuidade o corpo, por virtude divina, será associado. Eis porque a alma do condenado, sendo forma nascida para aquele corpo, dar-lhe-á o ser perpétuo. Não lhe dará, contudo, a impassibilidade, devido ser ele imperfeito. Desse modo, aqueles corpos sofrerão para sempre, sem se corromperem, porém.


CAPÍTULO CLXXVIII

A PENA DOS CONDENADOS EXISTIRÁ
JÁ ANTES DA RESSURREIÇÃO

Se é evidente, pelo que se acabou de dizer, que tanto a felicidade quanto a miséria futuras realizam-se principalmente na alma, secundariamente, porém, e por certa derivação, no corpo, a felicidade ou a miséria da alma não dependem da felicidade ou da miséria do corpo, mas mais dela mesma. Como, após a morte e antes da ressurreição dos corpos, umas almas apresentam-se com a merecida bem-aventurança, outras, com a merecida miséria, isso evidencia que, já antes da reassunção dos corpos, algumas almas gozarão da felicidade, conforme atesta a Segunda Carta aos Coríntios: “Todos nós sabemos que, quando for destruída essa tenda em que vivemos na terra, teremos no céu uma casa feita por Deus, uma habitação eterna, não feita por mãos humanas”; e: “Cheios de confiança desejamos sair deste corpo para habitar com o Senhor” (II Cor 5,18).
Outras almas, porém, viverão na miséria, conforme se lê no Evangelho de São Lucas: “O rico morreu, e foi sepultado. Achando-se em tormentos no inferno...” (Lc 16,22,23).


CAPÍTULO CLXXIX

A PENA DOS CONDENADOS CONSISTE
EM MALES ESPIRITUAIS E CORPORAIS

1 — Deve-se, contudo, considerar que a felicidade das almas santas consistirá somente no gozo dos bens espirituais, ao passo que, antes da ressurreição, a pena das almas condenadas não será somente de males espirituais, como alguns ventilaram essa opinião, mas elas suportarão também penas corporais. A razão dessa diferença está em que as almas dos santos, enquanto nesta vida foram unidas aos corpos, seguiram a sua ordenação: não se submeteram às coisas corpóreas, mas, somente a Deus, em cuja fruição consiste toda a felicidade delas — não no gozo das coisas corpóreas; as almas dos maus, porém, não tendo seguido a ordem da natureza, pelo afeto submeteram-se às coisas corpóreas, desprezando as divinas e espirituais. Conseqüentemente, devem ser punidas, não só pela privação dos bens espirituais, mas inclusive por aquilo que as submeteram às coisas corpóreas.
2 — Por essa razão, se, nas Escrituras Sagradas, for encontrada alguma promessa, feita às almas santas, de retribuição de bens corporais, isso deve ser interpretado misticamente; porque é costume, nas Escrituras, serem as coisas espirituais designadas pela semelhança de coisas corporais.
Por isso também os textos das Sagradas Escrituras que prenunciam as penas corporais para almas dos condenados, isto é, que elas serão atormentadas pelo fogo do inferno, devem ser interpretadas literalmente.


CAPÍTULO CLXXX

PODE A ALMA SOFRER A AÇÃO
DO FOGO CORPÓREO?

1 — Para que não se pense ser absurdo sofrer a alma separada do corpo ação do fogo corpóreo, deve-se considerar que não é contra a natureza da substância espiritual ser retida pelo corpo. Isso realiza-se pela própria natureza, como se pode verificar na união que há entre a alma e o corpo, e nas mágicas, nas quais o espírito fica retido por imagens, por anéis, ou coisas semelhantes. Entretanto, isso pode ser também feito por virtude divina, de modo que as substâncias espirituais, sem embargo de por natureza estarem elevadas acima de todos os corpos, sejam retidas por determinados corpos, ou seja, pelo fogo do inferno, não como se a ele estivesse unida, mas de certo modo a ele se submetendo. Esse fato, ao ser verificado pela substância espiritual, é-lhe aflitivo, isto é, ver-se ela submetida a uma criatura inferior. Esse conhecimento que é aflitivo à substância espiritual, confirma o que se diz: a alma ao ver-se queimada, queima-se. Não deixa também de ser razoável dizer-se que aquele fogo é espiritual, porque o que a aflige é o fogo, conhecido como retendo-a.
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2 — Que tal fogo seja corpóreo, comprova-se pela afirmação de São Gregório, que disse sofrer a alma a ação do fogo não só enquanto o vê, mas também enquanto o experimenta.
E porque aquele fogo, não por sua natureza, mas por virtude divina, tem capacidade de reter uma substância espiritual, muitos convenientemente afirmaram que ele age sobre a alma como instrumento da justiça divina vindicativa, não agindo sobre a substância espiritual como age sobre os outros corpos, aquecendo, secando ou dissolvendo, mas prendendo, como foi dito.
3 — Porque a causa próxima da aflição da substância espiritual é ter conhecimento de que o fogo a retém devido a uma penalidade, pode-se facilmente compreender que, mesmo se ela fosse desligada da retenção ao fogo apenas por uma hora, não deixaria de sentir a aflição contínua, como também um condenado à prisão perpétua, que só por uma hora fosse libertado das correntes, não deixaria de senti-la.


CAPÍTULO CLXXXI


APÓS A MORTE HAVERÁ TAMBÉM
PENAS PURGATÓRIAS NÃO ETERNAS,
PARA QUE SE COMPLETEM AS
PENITÊNCIAS DE PECADOS MORTAIS
NÃO TERMINADAS NESTA VIDA

Bem que algumas almas imediatamente após a separação do corpo consigam a beatitude eterna, como foi dito, alguma há que só a consiga, após certo tempo. Acontece que alguns não completaram nesta vida a penitência exigida pelos pecados cometidos, dos quais, contudo, se arrependeram. Como a justiça divina exige que as culpas sejam punidas, deve-se afirmar que, após esta vida, as almas devem cumprir a pena que neste mundo não cumpriram. Não, porém chegando ao estado de extrema miséria dos condenados, pois pela penitência reintegraram-se no estado de caridade, no qual aderiram a Deus como seu fim último, e pelo qual mereceram a vida eterna. Resta, pois, afirmar que, após esta vida, há algumas penas purgatórias, pelas quais são completadas as penitências que aqui não o foram.


CAPÍTULO CLXXXII

HÁ PENAS PURGATÓRIAS TAMBÉM
PARA AS FALTAS VENIAIS

Acontece também que alguns deixam esta vida sem pecado mortal, mas com pecado venial, o qual não os afastou do fim último, bem que tenham pecado, devido à adesão indevida a coisas que levam ao fim último. Esses pecados são purgados, nos homens perfeitos, pelo fervor da caridade. Mas os que não são perfeitos devem purgá-los por alguma pena, porque não conseguem a vida eterna senão quem esteja imune de todo pecado e de todo defeito. É, portanto, necessário que existam penas purgatórias após esta vida. São elas purgatórias, devido à condição daqueles que as sofrem, pois, havendo neles caridade, pela qual têm a própria vontade conformada com a vontade divina, em virtude dessa mesma caridade, as penas que sofrem lhes são purgatórias. Por esse motivo, naqueles (como nos condenados) nos quais não há caridade, as penas não purgam, permanecendo neles para sempre a imperfeição proveniente do pecado, nos quais também a pena dura para sempre.


CAPÍTULO CLXXXIII

SE A PENA ETERNA DEVIDA A UMA
CULPA TEMPORAL CONTRARIA
A JUSTIÇA DIVINA

1 — Não contradiz à justiça divina sofrer alguém a pena perpétua, porque nem as leis humanas exigem que as penas sejam medidas pelo tempo para serem adequadas à culpa. Ora, para os pecados de adultério, de homicídio, cometidos que são em breve tempo, a lei humana impõe, às vezes, o exílio perpétuo, ou até mesmo a morte, pela qual para sempre o criminoso é afastado da sociedade. Se o exílio não é perpétuo, isso é por acidente, porque a vida humana não é perpétua, mas parece que a intenção do juiz é punir o criminoso perpetuamente. Por isso, também não é injusto se, para um pecado feito momentaneamente no tempo, Deus impuser uma pena eterna.
2 — Deve-se também considerar que ao pecador é infligida a pena eterna, mas somente àquele que não se arrepende do pecado, e, assim, nele, o pecado perdura até a morte. E porque na sua intenção peca para sempre, é razoável que Deus o puna eternamente.
3 — Além disso, cada pecado cometido contra Deus tem um certo grau infinito, se considerarmos que ele é cometido contra Deus. É certo que quanto mais importante é a pessoa contra quem se peca, tanto mais grave é o pecado: considera-se de maior gravidade dar uma tapa num militar, que num camponês; e, de muito maior gravidade, se for dada num príncipe ou no rei. Ora, sendo Deus de grandeza infinita, a ofensa contra Ele cometida, é, de certo modo, infinita. Logo, a pena devida a essa ofensa deve ser também, de certo modo, infinita.
Essa pena, porém, não pode ser infinita de modo intensivo, porque nada de criado é infinito em intensidade. Resta, por conseguinte, que ao pecado mortal é devida uma pena de duração infinita.
4 — Ademais, ao que pode ser corrigido, a pena temporal lhe é imposta para a correção ou purificação. Se, portanto, alguém não mais pode ser corrigido do pecado, porque a sua vontade está obstinadamente firme no pecado, como acontece com os condenados acima descritos, a sua pena não pode também ter fim.


CAPÍTULO CLXXXIV

O QUE FOI DITO ANTERIORMENTE
CONVÉM TANTO AS ALMAS QUANTO ÀS
OUTRAS CRIATURAS ESPIRITUAIS

1 — Porque o homem, sendo de natureza inteligente, assemelha-se aos Anjos, nos quais também, como nos homens, pode haver pecado, como já foi dito acima, o que foi dito também a respeito da glória, ou, das penas, deve ser aplicado à glória dos Anjos bons, e às penas dos Anjos maus.
Há somente uma única diferença entre os homens e os Anjos com relação à confirmação da vontade no bem e à obstinação dela no mal: é que isso se dá nas almas humanas quando se separam dos corpos, como acima foi dito; nos Anjos, porém, quando, no primeiro instante, estabeleceram Deus, deliberadamente, como próprio fim, ou, algo criado, desde então tornaram-se felizes ou miseráveis.
Nas almas, com efeito, a mutabilidade pode vir não só da liberdade da vontade, mas também da mutabilidade do corpo; no Anjo, porém, só da liberdade de arbítrio. Por isso, os Anjos, na primeira eleição, já conseguem a imutabilidade; mas as almas, só quando forem despojadas do corpo;
2 — Para se confessar a remuneração dos bons, recita-se no Símbolo da Fé Católica: “Creio na vida eterna”. Essa vida não deve ser concebida como eterna, somente por causa da duração, mas muito mais devido à fruição.
Como, porém, devido a essa verdade muitas outras devem ser cridas, para que tudo referente às penas dos condenados e ao estado final por ela sejam compreendidas, acrescentou-se no Símbolo dos Padres: “na vida do século futuro”. A expressão século futuroabrange todas essas verdades.



SEGUNDO TRATADO


SOBRE A ENCARNAÇÃO
DO FILHO DE DEUS


CAPÍTULO CLXXXV

DA FÉ NA HUMANIDADE DE CRISTO

Porque, como inicialmente foi dito, a fé cristã refere-se principalmente a duas verdades, isto é, à divindade da Trindade e à humanidade de Cristo, após termos visto o que pertence à divindade e aos seus efeitos, resta-nos considerar o que pertence à humanidade de Cristo.
Como o Apóstolo escreveu na Primeira Carta a Timóteo que “Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores” (I Tim 1,15), parece ser conveniente tratarmos em primeiro lugar, de como o gênero humano caiu no pecado, para que, desse modo, torne-se também mais claro como, pela humanidade de Cristo, os homens são livres do pecado.


CAPÍTULO CLXXXVI

OS PRECEITOS DADOS AO PRIMEIRO
HOMEM E A PERFEIÇÃO DO
PRIMEIRO ESTADO

1 — Como foi dito acima, o homem foi posto por Deus no seu estado primitivo de modo que o corpo estivesse totalmente submisso à alma. Por sua vez, havia subordinação entre as partes da alma, de modo que as forças inferiores se submetessem, sem oposição, à razão, e que a própria razão humana também fosse submissa a Deus. Porque o corpo era submisso à alma, acontecia que nenhuma paixão poderia atingir o corpo que repugnasse ao domínio da alma sobre ele; por isso, não havia, para o homem, possibilidade de morte, nem de alguma enfermidade.
Devido à sujeição das forças inferiores à razão, o homem estava possuído de total tranqüilidade espiritual, porque a razão humana não era perturbada por paixão alguma desordenada.
Devido a ser a vontade submissa a Deus, o homem dirigia tudo para Deus, como a seu fim último, e nisso consistia a sua justiça e inocência.
Dessas três submissões, a última a que nos referimos era causa das demais, porque, considerando-se os elementos componentes do corpo, composto que ele é de elementos contrários, não lhe era natural ser submetido à dissolução nem a qualquer paixão contrária à vida. Também não era da natureza da alma que as forças sensíveis se submetessem sem repugnância à razão, porque as forças sensíveis dirigem-se para o que é deleitável ao sentido, o que se opõe freqüentemente à reta razão. Por conseguinte, isso acontecia devido à interferência de uma força superior, isto é, Deus, o Qual, como juntou ao corpo a alma racional, que transcende toda proporção do corpo e das forças corpóreas às quais pertencem as forças sensíveis, assim também concedeu à alma racional a força que pudesse conter o corpo acima de sua condição corpórea, e as forças sensíveis exigidas pela alma racional.
2 — Para que a razão mantivesse submetidas a si, firmemente, as forças inferiores, também ela deveria ficar firmemente submetida ao domínio de Deus, de Quem recebia a virtude excedente à sua condição natural, de que acima falamos.
3 — Foi assim o homem de tal modo constituído, que, se a razão não fosse submetida a Deus, nem o corpo poderia ser obediente às ordens da alma, nem as forças sensíveis dirigidas pela razão.
Devido a isso, havia no homem uma certa vida imortal e impassível, porque, se ele não pecasse, não morreria, nem sofreria paixões.
4 — Poderia, contudo, pecar, enquanto a sua vontade não fosse confirmada na posse do último fim, e, nesse estado, poderia sofrer e morrer.
A diferença entre a mortalidade e impassibilidade do primeiro homem e a imortalidade e impassibilidade que terão os santos na Ressurreição, consiste justamente em que estes não mais poderão sofrer ou morrer, porque as suas vontades estão totalmente confirmadas na posse de Deus, como já foi dito acima. Haverá, além disso, uma outra diferença: depois da Ressurreição, os homens não mais se alimentarão, nem mais usarão do sexo. O primeiro homem, com efeito, foi criado tendo necessidade de alimentar-se para sustentar a própria vida e obrigado a promover a geração, para que, originado de um só homem, fosse multiplicado o gênero humano. Eis porque foram dados ao homem, naquela condição primitiva, dois preceitos. O primeiro é o seguinte: “Do fruto de todas as árvores do Paraíso, comereis” (Gen 2,16). O segundo é este: “Crescei e multiplicai-vos e enchei a terra” (Gen 1,28).


CAPÍTULO CLXXXVII

O ESTADO PERFEITO DO PRIMEIRO
HOMEM CHAMA-SE JUSTIÇA ORIGINAL,
E SOBRE O LUGAR ONDE ELE FOI POSTO

1 — Esse estado do homem, assim tão bem ordenado, chama-se justiça original. Por ela, o homem estava subordinado ao seu superior, bem como todas as coisas inferiores subordinavam-se a ele, conforme lhe fora dito: “Dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu” (Gen 1,28). Também no homem as partes inferiores submetiam-se às superiores, sem repugnância.
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2 — Esse estado foi concedido ao primeiro homem, não como a uma pessoa singular, mas como ao primeiro princípio da natureza humana, de modo que, por ele, fosse transmitido aos pósteros, juntamente com a natureza humana.
3 — E porque a cada um é devido o lugar que convém à sua condição, o homem, constituído assim com tanta ordem, foi posto em um lugar muito temperado e delicioso, para que lhe fosse tirado todo sofrimento de perturbações internas e externas.


CAPÍTULO CLXXXVIII

A ARVORE TO BEM E DO MAL E O
PRIMEIRO PRECEITO DADO AO HOMEM

Porque o acima referido estado do homem dependia de que a vontade estivesse submetida a Deus, para que imediatamente após a sua criação o homem fosse acostumado a seguir a vontade de Deus, o Criador deu ao homem algumas ordens, permitindo-lhe que comesse do fruto de todas as árvores do Paraíso, mas lhe proibindo, sob cominação de pena de morte, de comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal. Foi-lhe proibido comer do fruto dessa árvore, não porque ele fosse mal em si, mas para que o homem, ao menos, nesta pequena coisa, obedecesse a uma ordem tão-somente por ser dada por Deus. Assim é que comer do fruto da mencionada árvore tornou-se um mal. Aquela árvore, com efeito, foi chamada de árvore da ciência do bem e do mal, não porque ela possuísse uma força causadora de ciência, mas devido ao que aconteceu após ter sido comido o seu fruto. Tendo-o comido, o homem aprendeu por própria experiência a diferença que existe entre o bem da obediência e o mal da desobediência.


CAPÍTULO CLXXXIX

A SEDUÇÃO DE EVA PELO DIABO

O diabo, que já havia caído no pecado, vendo que o homem constituído naquele estado chegaria assim à felicidade perpétua, mas que, não obstante, poderia pecar, procurou tirá-lo daquela retidão de justiça. Com esse intento, aproximou-se do homem e o atacou pelo lado mais fraco, tentando a mulher, cujo dom ou luz de sabedoria era menor. Para mais facilmente levá-la à transgressão do preceito, por meio de mentiras, tirou-lhe o medo da morte e prometeu-lhe, conforme se lê no Livro do Gênesis (Gen 3,5), tudo aquilo que a criatura humana naturalmente deseja, isto é, que a ignorância seria afastada, dizendo-lhe: “Abrir-se-ão os vossos olhos”; que a sua dignidade seria elevada, dizendo-lhe: “Sereis como deuses”; que sua ciência seria aperfeiçoada, dizendo-lhe: “Conhecereis do bem e do mal”. O homem, pela sua inteligência, naturalmente foge da ignorância e deseja a ciência. Pela sua vontade, que é livre por natureza, deseja a própria elevação e perfeição, de modo a ficar a nada submetido, ou, na medida do possível, só a um mínimo de coisas superiores a si.


CAPÍTULO CXC

O QUE LEVOU A MULHER
AO PECADO

A mulher desejou, então, a própria elevação e a perfeição da ciência, juntando-se a isso a beleza e a doçura do fruto que a tentava para ser comido; desprezando, além disso, o medo da morte, ela transgrediu o preceito de Deus, o de não comer do fruto proibido, havendo, assim, no seu pecado, uma multiplicidade de pecados.
Primeiro, o da soberba, pela qual ela desejou, de modo desordenado, a própria elevação.
Segundo, a da curiosidade, pela qual quis ter ciência, além dos limites prefixados.
Terceiro, o de gula, pela qual, tentada pela sua vaidade, foi levada a comer do fruto.
Quarto, o de infidelidade, pela falsa consideração de Deus, enquanto acreditou nas palavras do diabo, contrárias às de Deus.
Quinto, o de desobediência, transgredindo o preceito de Deus.


CAPÍTULO CXCI

COMO O PECADO ATINGIU
O HOMEM

O pecado chegou até o homem devido à persuasão da mulher, o qual, contudo, como diz o Apóstolo (I Tim 2,14), não foi seduzido como o foi a mulher, que acreditou nas palavras do diabo, contrárias às de Deus. Não lhe podia vir à mente que Deus, por uma mentira, o ameaçasse, nem que, sem motivo, lhe proibisse fazer algo de útil. Entretanto, atraído pela promessa do diabo, desejou indevidamente a própria elevação e a ciência. Ficando, por esses atos, a sua vontade já desviada da retidão da justiça e querendo mostrar-se também complacente com a esposa, seguiu-a na transgressão do preceito divino; e comeu o fruto proibido.


CAPÍTULO CXCII

A REVOLTA DAS FORÇAS INFERIORES
CONTRA A RAZÃO É EFEITO DA
CULPA DO PECADO

Porque essa tão ordenada integridade era toda causada pela sujeição da vontade humana a Deus, a conseqüência do pecado foi que, tendo sido a vontade humana desviada da sujeição a Deus, desaparecesse aquela perfeita sujeição das forças inferiores à razão, e, do corpo, à alma. Seguiu-se, então, que o homem sentisse, no apetite sensitivo inferior, movimentos desordenados de concupiscência, de ira e de paixões, não conforme a ordem da razão, mas muito mais a repelindo e obscurecendo. Essa é a repugnância da carne para o espírito, da qual as Escrituras falam. Porque, com efeito, o apetite e as demais forças sensitivas operam por meio de um instrumento corpóreo, mas a razão, sem órgão algum corpóreo, é conveniente que aquilo que pertence ao apetite sensitivo seja imputado à carne. O que pertence, porém, à razão, é atribuído ao espírito, de modo a serem chamadas de substâncias espirituais aquelas que são separadas dos corpos.


CAPÍTULO CXCIII

DE COMO FOI IMPOSTA A PENA
DE MORTE NECESSÁRIA

Seguiu-se também ao pecado que o homem sentisse no corpo o mal da corrupção, e, assim, ficasse incurso na necessidade de morrer, como se a alma não mais fosse capaz de conter para sempre o corpo, dando-lhe a vida. Daí tornar-se o homem passível e mortal, não apenas sendo capaz de sofrer e morrer como antes, mas devendo sofrer e morrer por necessidade.


CAPÍTULO CXCIV

SOBRE OS OUTROS DEFEITOS NA
INTELIGÊNCIA E NA VONTADE,
DECORRENTES DO PECADO

Muitos outros defeitos apareceram, no homem, como conseqüência do pecado. Havendo no apetite inferior os desordenados movimentos das paixões, e também, na inteligência, a carência da luz da sabedoria, que a iluminava antes, quando a vontade estava submetida a Deus, conseqüentemente, o afeto do homem submeteu-se às coisas sensíveis, pelas quais, afastando-se de Deus, começou a cometer muitos pecados. Depois, o homem submeteu-se aos espíritos imundos, acreditando que neles encontraria o auxílio para conseguir os meios para suas ações. Foi assim que foram introduzidos no gênero humano a idolatria e outras espécies de pecados, e quanto mais o homem por essas coisas se corrompia, tanto mais se afastava do conhecimento e do desejo dos bens espirituais e divinos.


CAPÍTULO CXCV

COMO ESSES DEFEITOS FORAM
TRANSMITIDOS AOS DESCENDENTES

1 — O supracitado bem da justiça original foi concedido divinamente ao primeiro pai em vista do gênero humano, de modo que, dele, fosse estendido aos pósteros. Ora, sabemos que sendo removida a causa, o é também o efeito. Logo, tendo sido, devido ao pecado próprio, o primeiro homem privado daquele bem, todos os pósteros deveriam o ser também. Assim é que, após o pecado do primeiro pai, todos os homens nasceram sem a justiça original, e com os defeitos dela derivados.
2 — Tal fato, entretanto, não é contra a ordem da justiça, como se Deus punisse, nos filhos, o delito do primeiro pai. Não o é, porque a pena em vista não consistiu senão em tirar deles os dons que foram concedidos sobrenaturalmente ao primeiro homem e que dele passariam para outros. Por isso, aos outros, esses dons não lhes eram devidos. Se-lo-iam apenas enquanto transmitidos pelo primeiro pai. Fato semelhante aconteceria, se um rei desse um feudo a um militar, que seria, por meio deste, transmitido aos seus herdeiros. Ora, se aquele militar ofendesse de tal modo ao rei que merecesse ser destituído do feudo, este não poderia mais passar para os herdeiros. Por isso, os pósteros são, com justiça, privados de um bem, por culpa do pai.


CAPÍTULO CXCVI

SE A PRIVAÇÃO DA JUSTIÇA ORIGINAL
TEM NATUREZA DE CULPA NOS PÓSTEROS

Permanece, ainda, uma dificuldade que exige solução: se a privação da justiça original tem natureza culposa, naqueles que descenderam do primeiro pai.
1 — Sabemos que pertence à natureza da culpa, como anteriormente foi visto, que a ação má chamada de culposa seja feita sob o domínio da vontade daquele a que ela é imputada como culposa. Ninguém é, com efeito, culpado daquilo que não está nele poder de fazê-lo, ou não o fazer. Não está sob o poder de quem nasce, nascer ou não com justiça original. Conclui-se daí que a privação dela não lhe pode ser razão de culpa.
2 — Essa questão pode também ser facilmente resolvida, fazendo-se a distinção entre pessoa e natureza. Assim como em uma pessoa há muitos membros, há também na natureza humana muitas pessoas, de modo que muitos homens, participando da mesma espécie, podem ser considerados quase que como um só homem, como diz Porfírio. Deve-se aqui advertir que, no pecado de um homem, diversos membros cometem pecados diversos e não é exigido, para a imputabilidade da culpa, que cada pecado seja voluntário pela vontade dos membros em que se realizam, mas pela vontade daquilo que é o principal no homem, a saber, da parte intelectiva. Assim é que, se a vontade o ordenar, a mão não pode deixar de bater, ou o pé, de andar. Ora, a privação da justiça original é pecado da natureza, enquanto deriva da vontade desordenada do primeiro princípio, que foi, na natureza humana, o primeiro pai, e, assim, é voluntário com relação à natureza, isto é, com relação ao primeiro princípio da natureza. O pecado passa, pois, para todos os que receberem dele a natureza humana como se fossem seus membros e, por esse motivo, chama-se pecado original, isto é, porque tendo origem no primeiro pai é transmitido aos pósteros.
Daí referir-se esse pecado diretamente à natureza, enquanto os outros pecados atuais referem-se imediatamente à pessoa do pecador. O primeiro pai, com efeito, corrompeu a natureza humana pelo seu pecado, e esta natureza corrompida corrompeu as pessoas dos filhos, que a receberam do primeiro pai.


CAPÍTULO CXCVII

NEM TODOS OS PECADOS SÃO
TRANSMITIDOS AOS DESCENDENTES

Não é também conveniente que todos os outros pecados do primeiro pai sejam transmitidos aos pósteros, nem os dos outros pais, porque o primeiro pecado do primeiro pai repeliu todo dom que fora conferido à natureza humana na sua pessoa, e, por isso, diz-se também que corrompeu (ou infectou) a natureza. Nos pecados que seguiram a este, não se encontram coisas semelhantes que possam ser subtraídos de toda a natureza humana, mas coisas que são tiradas de um só homem, ou que apenas diminuem algum bem particular, quer dizer, pessoal, e assim elas não corrompem a natureza senão enquanto pertence a esta ou àquela pessoa. O homem, com efeito, não gera alguém semelhante a si por semelhança de pessoa, mas por semelhança de natureza. Por isso, não é transmitido aos pósteros, pelo pai, o pecado que vicia a pessoa. Mas o primeiro pecado, que viciou a natureza, foi a eles transmitido.


CAPÍTULO CXCVIII

O MÉRITO DE ADÃO NÃO FAVORECEU
A REPARAÇÃO DOS PÓSTEROS

Embora o pecado do primeiro pai tenha infectado toda a natureza humana, não teria sido possível que, pela sua penitência, ou por qualquer mérito seu pessoal, fosse reparada toda a natureza.
1 — É evidente que a penitência de Adão, ou qualquer outro mérito seu, foi ato de uma pessoa singular. Sabemos que a ação de um indivíduo não pode influir em toda a natureza da espécie. Ora, as causas que podem influir em toda a espécie são causas equívocas, e não unívocas. O sol é, com efeito, causa da geração de toda a espécie humana; mas um homem é causa de geração só de outro homem. Portanto, o mérito pessoal de Adão, ou de qualquer outro simplesmente homem, não poderia ser causa suficiente para reintegrar toda a natureza humana.
2 — Que por um ato singular do primeiro homem ficasse viciada toda a natureza humana, isso aconteceu acidentalmente, enquanto ele tendo sido privado do estado de inocência não o poderia transmitir aos descendentes. Mesmo voltando à graça, pela penitência, não poderia voltar à inocência primeira, juntamente com a qual foi divinamente concedido o supracitado dom de justiça original.
3 — É também evidente que este estado de justiça original foi um dom especial da graça, porque a graça não se adquire pelos méritos, mas é concedida gratuitamente por Deus. Assim, portanto, como o primeiro homem recebeu, no princípio, a justiça original não por mérito seu, mas por dom divino, também, e muito mais após o pecado, não poderia merecê-la penitenciando-se ou seguindo qualquer outro modo.


CAPÍTULO CXCIX

A REPARAÇÃO DA NATUREZA
HUMANA POR CRISTO

Convinha, portanto, que a natureza humana corrompida, como acima dissemos, fosse reparada pela Providência Divina.
1 — Não poderia ela chegar à perfeita beatitude, se a sua corrupção não fosse removida: porque a beatitude, sendo um bem perfeito, não pode sofrer nenhum defeito, muito menos este defeito que é o pecado, o qual, de certo modo, se opõe à virtude, que é o caminho para a beatitude, como dissemos acima. Sendo o homem feito para a beatitude, porque esta é o seu fim último, se o pecado não fosse removido, resultaria que a obra de Deus em tão nobre criatura estaria frustrada. Mas o Salmista mostra como isso é inconveniente, quando diz: “Para nada criastes os filhos dos homens?” (Sl 88,48). Por esse motivo, a natureza humana deveria ser reparada.
2 — Além disso, a bondade divina, quanto ao bem, excede a capacidade da criatura. Pelo que acima foi dito, ficou esclarecido que tal é a condição do homem, enquanto está nesta vida mortal, como nela não está imutavelmente confirmado no bem, também não está obstinadamente imutável no mal. Possui, pois, este estado da natureza humana, a capacidade de ser purificada da infecção do pecado. Não foi, com efeito, conveniente que a bondade divina deixasse essa capacidade ao abandono. Tê-la-ia deixado, porém, se não lhe tivesse providenciado o remédio da reparação.


CAPÍTULO CC

A NATUREZA HUMANA SÓ PODERIA
TER SIDO REPARADA POR DEUS,
E POR DEUS ENCARNADO

1 — Foi acima demonstrado que nem por Adão, nem por algum outro puro homem, poderia ser reparada a natureza humana, já porque nenhum indivíduo humano era superior a toda a natureza, já porque nenhum outro homem pode causar a graça.
2 — Pela mesma razão, não poderia ser reparada a natureza humana por um Anjo, porque também o Anjo não pode ser causa da graça, nem ser para o homem o prêmio da beatitude perfeita, para a qual o homem devia ser novamente chamado, porque nela são semelhantes.
Conseqüentemente, tal reparação só podia ser realizada por Deus.
3 — Mas se Deus reparasse a natureza humana por sua vontade apenas ou apenas por sua força, a ordem da justiça divina não estaria observada, porque esta ordem exige satisfação pelo pecado cometido. Ora, é impossível Deus ser sujeito de satisfação ou de mérito, porque um ser sujeito de algo está submetido a outra coisa.
4 — Por essas razões, não cabia nem a Deus satisfazer pelo pecado de toda a natureza humana, nem a um puro homem, como se viu acima.
Foi conveniente, portanto, que Deus se fizesse homem, de modo que um e o mesmo ser pudesse reparar e satisfazer. Tal motivo da Encarnação divina é declarado por São Paulo, quando escreve: “Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores” (I Tim 1,15).


CAPÍTULO CCI

OUTRAS CAUSAS DA ENCARNAÇÃO
DO FILHO DE DEUS

Há, além disso, outros motivos da Encarnação divina.
1 — Porque o homem afastou-se das coisas espirituais e entregou-se todo às coisas corpóreas, das quais ele, por si mesmo, não poderia sair para voltar a Deus, a sabedoria divina, que o criara, visitou, por meio da natureza corpórea que assumiu, este homem entregue às coisas corpóreas, para, pelos mistérios do seu corpo, reconduzi-lo às coisas espirituais.
2 — Foi também necessário, para o gênero humano, que Deus se fizesse homem para demonstrar a dignidade da natureza humana, e, assim, o homem não ficasse submetido ao demônio, nem às coisas corpóreas.
3 — Além disso, Deus querendo fazer-se homem, demonstrou simultaneamente a imensidade de seu amor para com o homem, e, por essa razão, os homens não mais ficassem a Ele submetidos pelo medo da morte, desprezada pelo primeiro homem, mas pelo afeto da caridade.
4 — Pela Encarnação foi também dado ao homem um certo exemplo daquela beata união, na qual a inteligência criada une-se, pelo seu ato intelectivo, ao Espírito incriado. Assim, não mais será incrível que a inteligência da criatura possa unir-se a Deus, vendo-lhe a essência, porque Deus uniu-se também ao homem, assumindo-lhe a natureza.
5 — Finalmente, completa-se, de certo modo, a universalidade de toda a obra divina, enquanto o homem, que foi criado por último, como que por um círculo, volta ao seu princípio, unindo-se ao princípio das coisas, pela obra da Encarnação.


CAPÍTULO CCII

O ERRO DE FOTINO ACERCA DA
ENCARNAÇÃO DO FILHO DE DEUS

1 — Esse mistério da Encarnação divina, Fotino procurou esvaziá-lo o mais possível. Seguindo os erros de Ebião, Cerinto e Paulo de Samósata, afirmou que o Senhor Jesus foi puro homem, que não existira antes da Virgem Maria, mas que, por meio dos merecimentos de uma vida santa e pela sujeição à morte, mereceu a glória da divindade. Assim sendo, é chamado Deus, não devido à natureza, mas devido à graça da adoção.
2 — Se isso fosse verdadeiro, não se teria realizado a união de Deus com o homem, mas o homem teria sido deificado pela graça, o que não é próprio de Cristo, mas comum a todos os santos, embora, devido à graça, uns sejam mais perfeitos que os outros.
3 — Esse erro é também contrário à Sagrada Escritura. É dito no Evangelho de São João: “No principio era o Verbo”, e, logo após, é acrescentado: “E o Verbo se fez carne” (Jo 1,1). Por conseguinte, o Verbo que no princípio estava em Deus é que assumiu a carne. Não a assumiu, portanto, um homem que antes não fora deificado pela graça da adoção.
O Senhor disse: “Desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a d’Aquele que me enviou” (Jo 6,38). Ora, conforme o erro de Fotino, não seria conveniente que o Cristo descesse, mas que somente subisse. Lê-se, porém, em São Paulo: “Que quer dizer subiu, senão que também tenha descido às regiões inferiores da terra?” (Ef 4,9). Disso conclui-se claramente que Cristo não teria possibilidade de subir, se primeiro não tivesse descido.


CAPÍTULO CCIII

O ERRO DE NESTÓRIO ACERCA DA
ENCARNAÇÃO E SUA REFUTAÇÃO

1 — Tentando fugir dessa conclusão, Nestório, em parte, afastou-se do erro de Fotino, porque afirmou que Cristo era Filho de Deus não apenas pela graça da adoção, mas pela natureza divina, na qual existe eternamente com o Pai; e, em parte, com ele concordou, afirmando que Deus não se uniu ao homem para constituir-se com este uma só pessoa, mas somente inabitando no homem. Segundo Fotino, com efeito, o homem Cristo é denominado Deus, só devido à graça; segundo Nestório, Ele é chamado de Filho de Deus, não porque seja verdadeiro Deus, mas devido à inabitação n’Ele do Filho de Deus, que se fez pela graça.
2 — Esse erro contradiz a autoridade da Sagrada Escritura. Com efeito, a esta união de Deus com o homem o Apóstolo chama aniquilamento, conforme se lê: “Ele, que era de condição divina, não reivindicou o direito de ser equiparado a Deus, mas aniquilou-se a Si mesmo, tomando a condição de servo” (Fil 2,71). Não há, porém, aniquilamento de Deus por inabitar pela graça em uma criatura racional. Se o houvesse, o Pai e o Espírito Santo também seriam aniquilados, porque ambos inabitam na criatura racional pela graça, conforme o Senhor refere-se a Si mesmo e ao Pai: “Viremos a ele e nele faremos morada nossa” (Jo 14,23), e, o Apóstolo, ao Espírito Santo: “O Espírito de Deus habita em nós (I Cor 3,16).
3 — Além disso, não seria conveniente a um homem falar como Deus, se de fato não fosse pessoalmente Deus. Estaria falando de medo muito perigoso, ao afirmar: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30); e: “Antes de Abraão ter sido. Eu sou” (Jo 5,58). Ora, a palavra eudemonstra a pessoa daquele que fala. Aqui, o homem era que falava. Logo, há uma só pessoa de Deus e do homem.
4 — Para excluir esses erros, no Símbolo dos Apóstolos e no Símbolo dos Padres, ao se fazer menção da Pessoa do Filho, foi acrescentado: “Que foi concebido do Espírito Santo, nasceu, padeceu e ressuscitou”.
Não seriam atribuídos ao Filho de Deus predicados relativos ao homem, a não ser que uma pessoa fosse a de Deus e do homem, porque os predicados que convém a uma pessoa não podem convir à outrem, conservando cada uma a própria singularidade. Eis porque os predicados que são atribuídos a Paulo não são atribuídos a Pedro pelo mesmo motivo.


CAPÍTULO CCIV

O ERRO DE ARIO ACERCA DA
ENCARNAÇÃO E SUA REFUTAÇÃO

1 — Para a unidade de Deus e do homem em Cristo, alguns encaminharam-se para uma sentença contrária à que acima nos referimos, e afirmaram que não somente há uma só pessoa de Deus e do homem, mas também uma só natureza. Quem por primeiro propôs esse erro foi Ario. Este, para que os textos da Escritura, que dizem Cristo ser menor que o Pai, não pudessem ser referidos ao Filho de Deus senão enquanto assumiu a natureza humana, afirmou que em Cristo não havia outra alma que o próprio Verbo de Deus, de modo que o Verbo atuava como se fosse alma para o corpo de Cristo. Isso posto, conclui-se também que quando Cristo falava: “O Pai é maior que Eu” (Jo 14,28), ou quando orava, ou se entristecia, tudo isso devia ser referido à própria natureza do Filho de Deus. Se assim fosse, seria concludente que a união do Filho de Deus com o homem teria sido realizada não só na pessoa, mas também na natureza.
2 — Mas é sabido que a unidade da natureza humana realiza-se na união da alma com o corpo. A falsidade da posição de quem diz que o Filho é menor que o Pai já foi acima demonstrada, quando afirmamos que o Filho é igual ao Pai.
Quanto à asserção de que o Verbo de Deus em Cristo estaria em lugar da sua alma, a falsidade de tal erro pode ser também evidenciada pelo que se afirmou acima: foi demonstrado que a alma une-se ao corpo como forma. Foi também demonstrado que é impossível Deus tornar-se forma de um corpo.
3 — Para evitar que Ario dissesse que isso devia entender-se com relação ao Sumo Deus Pai, pode demonstrar-se que o mesmo acontece com os Anjos. Estes, em sua natureza, não podem unir-se a um corpo, como forma desse corpo, porque são pela própria natureza separados dos corpos. Nem tampouco o Filho de Deus, por Quem os Anjos foram feitos (e isso Ario reconhece), pode ser forma de corpo.
4 — Além disso, se o Filho de Deus fosse criatura, como dolosamente afirmou Ario, contudo ele também afirmou que o Filho de Deus precede em beatitude a todos os espíritos criados. Ora, a natureza dos Anjos é tão excelente que impede que haja neles tristeza. Não haveria nos Anjos a verdadeira e completa felicidade, se algum dos seus desejos não se realizasse, pois é da essência da beatitude ser o bem final e perfeito, aquietando todo desejo. Assim sendo, muito menos poderia entristecer-se o Filho de Deus em sua natureza.
Mas lê-se nas Escrituras que Ele se entristeceu: “Começou (Jesus) a apavorar-se e angustiar-se” (Mc 14,33), e o próprio Cristo confessa a sua tristeza, quando diz: “A minha alma está possuída de tristeza mortal” (Mc 14,34). É evidente que a tristeza não poderia ser do corpo, mas de uma substância dotada de conhecimento. Convém, portanto, que juntamente com o Verbo e com o corpo de Cristo, houvesse nele outra substância passível de tristeza. Essa é que nós chamamos justamente de alma.
5 — Finalmente, se Cristo assumiu aquilo que pertence à nossa natureza, para nos libertar dos pecados, era, para nós, mais necessário sermos purificados na alma, na qual o pecado tem a sua origem e que é sujeito do pecado. Por conseguinte, não assumiu um corpo sem alma, mas assumiu um corpo com a sua alma, porque é a alma que devia principalmente assumir.


CAPÍTULO CCV

O ERRO DE APOLINÁRIO ACERCA
DA ENCARNAÇÃO E SUA REFUTAÇÃO

1 — Esses argumentos destroem também o erro de Apolinário, que tendo primeiramente seguido Ario entendeu, mais tarde, admitir outra alma em Cristo que não fosse o Verbo do Pai. Mas como não seguia o erro de Ario, no qual o Filho deve ser chamado de criatura, e como muitas coisas são atribuídas a Cristo que não podem ser referidas ao corpo nem ao Criador, como a tristeza, o temor e coisas semelhantes, viu-se, por fim, Apolinário forçado a admitir outra alma em Cristo que desse a sensibilidade ao corpo e que pudesse ser sujeito daquelas paixões, mas carecente de razão e inteligência. O próprio Verbo, então, substituiria a razão e a inteligência de Cristo homem.
2 — Que isso seja falso, pode-se demonstrar por muitas razões.
Primeiro, porque é contra a essência da natureza humana que uma alma não racional seja forma do homem, devendo, porém, o corpo ter uma forma. Ora, deve-se pressupor que nada de monstruoso nem de antinatural houvesse na Encarnação de Cristo.
Segundo, porque seria contra a finalidade de Encarnação, que é a reparação da natureza humana. Ora, a natureza humana deve ter a sua reparação iniciada principalmente na parte intelectiva, que pode ser a participante do pecado. Logo, era conveniente que o Verbo assumisse principalmente a parte intelectiva do homem.
Terceiro, porque é dito que Cristo admirava-se das coisas. Ora, admirar-se é próprio da alma racional e não pode de modo algum convir a Deus. Eis por que, assim como a tristeza exige que se admita uma alma sensitiva em Cristo, também a admiração exige que se admita em Cristo a parte intelectiva da alma.


CAPÍTULO CCVI

O ERRO DE EUTÍQUIO QUE AFIRMA
QUE A UNIÃO FOI FEITA NA NATUREZA

1 — Eutíquio seguiu algumas sentenças desses heréticos. Ensinava, com efeito, que, após a Encarnação, havia uma só natureza de Deus e do homem, mas não afirmou que Cristo carecesse de alma, de inteligência ou daquelas coisas exigidas para a inteligência da natureza humana.
2 — A falsidade dessa opinião aparece claramente.
A natureza é, em si, perfeita e incomunicável. Ora, a natureza, que é em si mesma perfeita, não pode unir-se a outra para formar uma só natureza, a não ser ou que uma se converta na outra, como o alimento converte-se naquele que o toma; ou que uma outra dela surja inteiramente diferente, como a lenha que se converte na natureza do fogo; ou que ambas se transformem em uma terceira, como os elementos no corpo misto.
Mas a imutabilidade divina é totalmente incompatível com essas conversões, porque aquilo que se converte em outra coisa não é imutável, ou aquilo que com outra coisa em algo mistura-se. Como a natureza divina é perfeita em Si mesma, de maneira alguma pode acontecer que se una com outra natureza para formarem ambas uma só.
3 — Ademais, se alguém observar a ordem das coisas, verificará que o acréscimo de uma perfeição maior faz variar a espécie de uma natureza. Ora, o ser que somente vive, como a planta, tem espécie diferente da do ser que somente existe. O ser que existe, vive e sente, como o animal, é de espécie diferente da do ser que somente vive, como a planta. Prossigamos: o ser que existe, vive, sente e raciocina, como o homem, é de espécie diferente da do ser que somente existe, vive e sente, como o animal bruto. Logo, se aquela natureza, que se afirma Cristo ter, possuía sobre todas essas perfeições o que é divino, conclui-se que aquela natureza era de diferente espécie da espécie da natureza humana, como também o era da espécie do animal bruto.
4 — Finalmente, se em Cristo houvesse uma só natureza, Ele nem seria homem da mesma espécie que os demais. Mas tal afirmação a respeito de uma só natureza é falsa, porque Cristo teve a sua origem, dos homens, segundo a carne, como se lê no início do Evangelho de São Mateus: “Livro da geração de Jesus Cristo, filho de David, filho de Abraão”.


CAPÍTULO CCVII

CONTRA O ERRO DOS MANIQUEUS,
QUE AFIRMAM QUE CRISTO NÃO
POSSUÍA UM CORPO VERDADEIRO,
MAS FANTÁSTICO

1 — Fotino esvaziou o mistério da Encarnação, negando a natureza divina de Cristo. Maniqueu também a esvaziou, mas Lhe negando a natureza humana; porque ele afirmava que toda criatura corpórea foi criada pelo diabo, dizia também não ser conveniente que o Filho de Deus, que é bom, assumisse uma criatura do diabo, e, por isso, considerou Cristo como não possuindo verdadeira carne, mas um corpo fantástico. Assim sendo, para ele, tudo aquilo que, no Evangelho, lê-se, como pertencendo à natureza humana de Cristo, é fantástico, não real.
2 — Tal posição claramente opõe-se à Sagrada Escritura, pois esta afirma que Cristo nasceu da Virgem, que foi circuncidado, que teve fome, que se alimentou e que esteve sujeito a tudo que pertence à natureza humana carnal. Considerou, portanto, como falso tudo isso que a Escritura, nos Evangelhos, narra a respeito de Cristo.
3 — Além disso, Cristo disse de Si mesmo: “Aqui nasci e vim ao mundo para testemunhar a verdade” (Jo 18,37). Ora, Cristo não teria sido testemunha da verdade, mas sim, da falsidade, se não demonstrasse em Si mesmo o que de fato era, principalmente quando predissera que iria sofrer tudo aquilo que não se pode sofrer sem ter verdadeiramente carne, isto é, que seria entregue nas mãos dos homens, que seria cuspido, flagelado e crucificado. Logo, afirmar que Cristo não tenha possuído verdadeira carne, e também que Ele sofreu só aparentemente, mas não na realidade, é dar a Ele como falso.
4 — Demais, afastar os homens de uma opinião verdadeira é próprio do homem enganador. Aceitando-se, porém, a tese de Maniqueu, Cristo foi um enganador. Ora, tendo aparecido após a Ressurreição aos discípulos que naquela ocasião pensaram ser Ele um espírito ou um fantasma, para tirar-lhes da mente essa suspeita, disse-lhes: “Palpai e vede, porque um espírito não tem carne e ossos, como Me estais vendo ter” (Lc 24,36). Lê-se também um outro texto da Escritura que, quando andava sobre o mar, e os discípulos, cheios de medo, pensaram que era um fantasma, o Senhor lhes disse: “Sou Eu, não temais” (Mc 6,50).
Se, portanto, a opinião dos maniqueus fosse verdadeira. Cristo teria sido, de fato, um enganador. Mas Cristo disse de Si mesmo ser a verdade (Jo 14,6). Logo, aquela opinião é falsa.


CAPÍTULO CCVIII

CRISTO POSSUI CORPO VERDADEIRO,
NÃO CORPO CELESTE,
CONTRA VALENTINO

1 — Valentino, se bem que confessasse que Cristo tivesse verdadeiro corpo, contudo, afirmava não ter Ele assumido da Virgem Sua carne, mas que trouxera um corpo formado no céu, e que este corpo passou pelo da Virgem nada recebendo dela, como a água passando por um cano.
2 — Essa opinião é também contrária à verdade das Escrituras.
São Paulo escreve na Carta aos Romanos: “Que foi feito (Cristo) originando-se do sêmen de Davi, segundo a carne” (Rom 1,3); e, na Carta aos Gálatas: “Deus enviou o seu Filho feito de mulher” (Gal 4,4). Lê-se também no Evangelho de São Mateus: “E Jacó gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, chamado Cristo”; continuando, o Evangelista chama-a de “Mãe”, e acrescenta: “Tendo Maria, sua mãe, se casado com José” (Mt 1,18). Ora, todos esses textos seriam falsos se não tivesse assumido da Virgem a sua carne. Logo, é falso que tenha trazido um corpo celeste.
3 — Quanto ao que São Paulo diz: “O segundo Homem, do céu, é celeste” (I Cor 15,47), deve ser interpretado como Cristo tendo descido do céu segundo a divindade, não, porém, segundo a substância do seu corpo.
4 — Além disso, não haveria razão alguma para que o Filho de Deus, trazendo um corpo do céu, entrasse no seio da Virgem, se d’Ela nada assumisse. Seria, com efeito, mais ficção do que realidade, se demonstrasse ter recebido d’Ela, porque saiu do seu seio, o que na realidade não recebeu. Ora, como toda falsidade deve ser afastada de Cristo, deve-se também simplesmente confessar que Cristo saiu do seio da Virgem, porque d’Ela recebeu a carne.


CAPÍTULO CCIX

QUAL A SENTENÇA VERDADEIRA DA
FÉ A RESPEITO DA ENCARNAÇÃO

1 — Das premissas postas nos capítulos anteriores, podemos concluir que, conforme a verdadeira Fé Católica, havia em Cristo verdadeiro corpo da nossa natureza, verdadeira alma racional e, juntamente, a perfeita divindade. Essas três substâncias uniram-se em uma só pessoa, mas não em uma só natureza[9].
2 — Alguns, porém, ao exporem essa verdade, andaram por caminhos errados. Considerando que tudo que advém a um ser já completo é-lhe acrescentado acidentalmente, como as vestes, ao homem, afirmaram eles que a humanidade uniu-se à divindade na pessoa do Filho de Deus por união acidental, de modo que a natureza assumida fosse referida à pessoa do Filho, como as vestes, ao homem. Para confirmarem a sua sentença, buscaram o testemunho de São Paulo, quando este dizia de Cristo que “pela aparência (habitus), mostrou-se como homem” (Fil 2,7).
Considerava também que pela união da alma e do corpo constituiu-se um determinado indivíduo de natureza racional, que é chamado de pessoa.
3 — Se, portanto, a alma de Cristo uniu-se ao corpo, não podiam também eles deixar de reconhecer que, como efeito de tal união, constituir-se-ia pessoa. Seguir-se-ia daí que em Cristo haveria duas pessoas: a pessoa que assume e a pessoa assumida.
No homem vestido, com efeito, não há duas pessoas, porque a veste não tem natureza de pessoa. Se, porém, a veste for considerada como pessoa, no homem vestido haverá duas pessoas.
4 — Para evitar essa conclusão, alguns afirmaram que a alma de Cristo nunca se uniu ao corpo, mas que a pessoa do Filho de Deus assumiu, separadamente uma alma e um corpo.
5 — Mas essa opinião, tentando fugir de uma sentença inconveniente, cai em outra ainda mais inconveniente: leva a concluir que Cristo não foi verdadeiro homem. Não o teria sido, seguindo-se essa sentença, porque a verdadeira natureza humana exige a união da alma e do corpo, porque só é homem o ser que se compõe dessas duas naturezas.
Essa sentença leva também à conclusão que em Cristo não havia verdadeira carne e que nenhum dos seus membros foi verdadeiro. Ora, sem a alma, não pode haver olhos, nem mãos, nem carne, a não ser que tais realidades sejam consideradas equivocamente, como elas são vistas em uma pintura, e em uma estátua.
Conclui-se, do mesmo modo, que Cristo não morreu verdadeiramente. Sabemos que a morte é a privação da vida. Ora, é evidente que a vida da divindade não podia ser privada pela morte, e que o corpo também não podia estar vivo, se a alma não lhe estivesse unida.
Concluiu-se, finalmente, que o corpo de Cristo não podia sentir, porque o corpo não sente senão estando a alma unida a si.
6 — Além disso, essa opinião cai no erro de Nestório, erro que ela justamente queria evitar. Consistiu o erro de Nestório em afirmar que o Verbo de Deus estava unido a Cristo homem pela habitação da graça, de modo que o Verbo estava naquele homem como no seu templo. Pouco importa, ao propósito, dizer que o Verbo está no homem como num templo, ou que se junte a natureza humana ao Verbo, como a veste, ao que com ela está vestido, a não ser para afirmar algo de pior, porque, então, nem se pode confessar que Cristo foi verdadeiro homem. Esta opinião foi, aliás, merecidamente, condenada.
7 — Demais, o homem vestido não pode ser a pessoa de veste nem da roupa com que se cobre, nem se pode de maneira alguma dizer que ele tenha a natureza específica da roupa. Ora, se o Filho de Deus assumiu a natureza humana como uma veste, não pode, de maneira alguma, ser chamado de pessoa da natureza humana, e também não se poderia afirmar que o Filho de Deus tenha sido, com os demais homens, da mesma espécie. Mas o Apóstolo, quanto a isso, escreveu que Cristo “foi feito semelhante aos homens” (Fil 2,7).
Por isso, tal sentença deve ser totalmente evitada.



[1] Aristóteles afirmava a eternidade do mundo. O filósofo árabe Averróis, cuja influência na filosofia do séc. XIII foi considerável, reassumiu a tese aristotélica.
Devido à Revelação, Santo Tomás nega que, de fato, o mundo tenha existido eternamente, mas concede a possibilidade teórica da eternidade do mundo. Contudo, escreve o Doutor Angélico, “mesmo que o mundo sempre tivesse existido, não se identificaria com Deus pela eternidade, como disse Boécio, porque o ser divino existe todo simultaneamente e sem sucessão, mas com o mundo não é assim.” (S. T., I, 46. 2 ad 5.)
[2] Esse argumento de Santo Tomás deve ser bem compreendido. Não se queira deduzir daí que Deus não poderia fazer um universo mais perfeito que o atual. A tal conclusão chegou Leibnitz. Para ele, porque Deus é perfeitíssimo, sempre age de modo absolutamente mais perfeito. Ora esta tese conduz à negação da liberdade divina quanto à criação: se Deus não podia fazer um Universo mais perfeito que o atual, Deus estava condicionado a fazê-lo como existe. O argumento acima deve ser assim entendido: Deus não pode deixar de visar, na criação, o bem para as coisas (estaria se contradizendo se visasse o mal), mas pode visar um bem maior; não pode também deixar de visar sempre um fim, porque, se não o visasse, já que o fim se identifica com o bem, estaria visando o mal.
Escreve São Tomas: “Supostas estas coisas criadas, o universo não pode ser melhor, devido à decentíssima ordem posta por Deus nas coisas, em que consiste o bem do universo. (...) Poderia, contudo, Deus fazer outras coisas, ou acrescentar outras coisas feitas: este seria então um universo melhor.” (S. T. I, 26, 6 ad 3.)
[3] Ver, acima, nota ao cap. LVI.
[4] Para explicar o conhecimento divino, os tomistas, seguindo São Tomas, admitem apenas duas ciências em Deus: de simples inteligência de visão. Os molinistas, que seguem o teólogo jesuíta Luiz Molina (+ 1600), introduzem em Deus uma terceira ciência, a ciência média. As posições de ambas as escolas são inconciliáveis, por se basearem em teses contraditórias entre si, e que trazem efeitos diferentes para os diversos tratados de teologia. Essas explicações opostas surgiram para explicar o conhecimento divino das coisas futuras condicionadas, isto é, que seriam futuras se uma condição fosse posta, mas que nunca o serão (“futuríveis”). O seguinte texto de Santo Tomás é claro quanto à sua afirmação só de duas ciências em Deus: “Os seres que não são, nem serão, nem foram, Deus os conhece como possíveis ao seu poder, de modo que não os vê como de algum modo existentes em si mesmos, mas só na potência divina. E a isto alguns dizem Deus conhecer por ciência de simples inteligência. Mas os seres que para nós são presentes, passados e futuros, Deus os conhece enquanto estão em sua potência, nas próprias causas e em si mesmos. A este conhecimento se dá o nome de ciência de visão.” (Contra Gentiles, I, 66.)
[5] Além dessa presença de Deus nas criaturas, natural, na alma enriquecida pela graça santificante há uma outra presença divina, sobrenatural. Aquela chama-se presença de imensidade; esta, presença de inabitação.
Santo Tomás assim se refere a essas duas espécies de presença: “Há um modo comum, segundo o qual Deus está em todas as coisas por essência, potência e presença, como a causa está nos efeitos que participam da sua bondade. Além desse modo comum, há um outro especial que convém à criatura racional, no qual se diz que se encontra Deus como o objeto conhecido naquele que o conhece, e o amado, no que ama. Como a criatura racional, conhecendo e amando, alcança por sua operação ao próprio Deus, conforme esse modo especial não só se diz que Deus está na criatura racional, mas também que nela habita, como no seu templo. Por conseguinte, nenhum outro efeito que não seja a graça santificante pode ser a razão de que a Pessoa divina esteja de um modo novo na criatura racional.” (S. T., I, 43, 3c.)
presença de inabitação realiza-se aqui na terra pela fé e pela caridade, devendo intensificar-se até atingir a perfeição última, na visão beatífica. Mas já aqui na terra pode haver entre a alma e Deus tal consonância de afeição, que S. João da Cruz chega a denominar essa perfeita união de “transformação da alma em Deus, pelo amor” (Subida do Monte Carmelo. II, V, 3 e 4).
A essa transformação na Trindade, refere-se o Doutor da Mística nestes termos: “Nesta transformação, o divino Espírito Santo aspira a alma, no Pai e no Filho, a fim de uni-la a Si na reunião mais íntima. Se a alma, com efeito, não se transformasse nas Três Pessoas da Santíssima Trindade, em grau revelado e manifesto, não seria total e verdadeira a sua transformação... Na verdade, mesmo o que se passa na transformação a que a alma chega nesta vida é inefável; porque a alma, unida e transformada em Deus, aspira, em Deus, ao próprio Deus, naquela mesma aspiração divina com que Deus aspira em Si mesmo à alma toda já transformada n'Ele” (Cântico Espiritual. XXXIX, 3).
[6] O primeiro efeito é a criação. Cf. supra, cap. LXVIII.
[7] Não devemos perder de vista que São Tomás usa, na consideração científica da geração, dados da ciência contemporânea sua.
[8] A mesma conclusão a que chegou São Tomás, usando dos recursos imperfeitos da ciência do seu tempo, chegaram grandes cientistas modernos como Eddington, Jeans, Th. Wulf, Chwolson, Boltzmann. Crescendo sempre a entropia do universo, se o considerarmos como um sistema fechado, chegará um tempo em que todas as energias estejam transformadas em calor; estando, então, todos os corpos com a mesma temperatura, não poderá haver mais movimento. Será a morte térmica do universo. “Da Lei da entropia, escreve Wulf, segue-se a conseqüência fatal de que o mundo algum dia deverá sucumbir por morte térmica”. “Não encontro nenhuma dificuldade em aceitar as conseqüências da teoria científica atual, no que se refere ao futuro: a morte térmica do universo. Talvez seja dentro de bilhões de anos, mas o relógio de areia se esvazia inexoravelmente”, escreve Eddington. O assunto é suficientemente tratado na obra de José Maria Riaza Morales, S.J.: El Comienzo del Mundo (2ª ed., B.A.C., Madrid, 1964, p. 628 e ss.).
[9] a) Escreve o Teólogo Tomista Billuart, comentando o texto da (Suma Teológica) de São Tomás, referente aos conceitos de natureza e pessoa: “Natureza aqui é considerada como sendo a perfeita essência da coisa que é explicada pela definição essencial, isto é, considerada como sendo aquilo que a coisa é; considerada não só no sentido de natureza comum, bem como no sentido de natureza individual e singular, como há em Cristo. Unir-se na natureza é unir-se de tal modo que dessa união resulte uma só natureza, como uma só natureza resulta da união da alma com o corpo, da matéria com a forma.
Pessoa define-se como substância individual e incomunicável, de natureza intelectual.Unir-se na pessoa é a união de pessoas da qual não resulta uma outra pessoa, além daquela a que se une. Por conseguinte, quando a união é feita na pessoa, as naturezas unem-se de tal modo que a união ou unificação fique terminada em uma só pessoa subsistente em ambas as naturezas” (Billuart, Carlos Renato. Cursos Theologiae. Lecofre, Paris, 1905, II, p. 362.)
b) No Concílio de Calcedônia (451) foi definido, como Dogma de Fé, a unidade de Pessoa e a duplicidade de Naturezas em Cristo, nos seguintes termos:
“Seguindo, pois, aos Santos Padres, todos unânimes confessamos que há um só e mesmo Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, o mesmo perfeito na divindade e o mesmo perfeito na humanidade.
Verdadeiramente Deus, e o mesmo verdadeiramente homem com alma racional e com corpo.
Consubstancial ao Pai quanto à divindade, e o mesmo consubstancial conosco quanto à humanidade, semelhante em tudo a nós, com exceção do pecado (Heb 4,15).
Gerado do Pai antes dos séculos, quanto à divindade, e, o mesmo, gerado de Maria Virgem, quanto à humanidade.
Que se há de reconhecer a um só e mesmo Cristo Filho Senhor Unigênito em duas naturezas, sem confusão, sem troca, sem divisão, sem separação, jamais tirada a diferença das naturezas devido à união, mas mais conservando cada natureza à sua propriedade e concorrendo em uma só pessoa e em uma só hipóstase, não partido ou dividido em duas pessoas, mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo Senhor Jesus Cristo, como nos ensinaram antigamente acerca d'Ele os Profetas e o Próprio Jesus Cristo, e no-lo transmitiu o Símbolo dos Padres.
Assim, pois, após ter sido, com toda exatidão e cuidado, por nós em todos os seus aspectos elaborada esta fórmula, definiu o santo e ecumênico Concílio que a ninguém será lícito pronunciar, escrever, compor, sentir ou ensinar, aos outros, outra fé.” (Dz. 148.)

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