segunda-feira, 11 de outubro de 1999


PRIMEIRA PARTE

SOBRE A FÉ

CAPÍTULO II

ORDEM DAS QUESTÕES SOBRE A FÉ

1 — A fé é uma certa prelibação daquele conhecimento que nos fará bem-aventurados no futuro. O Apóstolo disse que ela é a “substância das coisas que se esperam” (Heb 11,1), fazendo já existir em nós, por uma certa incoação, as coisas que se esperam, isto é, a felicidade futura.
2 — O Senhor ensinou que aquele conhecimento beatificante consiste em duas verdades: na divindade da Trindade e na humanidade de Cristo. Ele mesmo dirigiu-se ao Pai com estas palavras: “Esta é a vida eterna: que Te conheçam a Ti por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo a quem enviaste” (Jo 17,3.) Por conseguinte, todo o conhecimento da fé resume-se nestas duas verdades: na divindade da Trindade e na humanidade de Cristo. Isso não é de se estranhar, porque a humanidade de Cristo é o caminho pelo qual se vai à divindade.
Enquanto estamos em caminho, convém conhecer o caminho pelo qual se alcança o fim, até porque, na pátria, os bem-aventurados não poderão dar suficiente ação de graças se não tiverem tido o conhecimento do caminho pelo qual foram salvos. Por isso o Senhor disse aos discípulos: “Sabeis para onde Eu vou e conheceis o caminho” (Jo 14,4).
3 — A respeito da divindade, três coisas devem ser conhecidas: primeiro, a unidade da essência; segundo, a Trindade das Pessoas; terceiro, os efeitos da ação da divindade.


PRIMEIRO TRATADO

SOBRE A UNIDADE E A TRINDADE DE DEUS


I — A UNIDADE DA ESSÊNCIA DIVINA


CAPÍTULO III

DEUS EXISTE

Com relação à unidade da essência divina, deve-se, em primeiro lugar, crer que Deus existe, verdade esta evidente à razão humana.
1 — Vemos, com efeito, que todas as coisas que se movem são movidas por outras: as inferiores pelas superiores, como os elementos o são pelos corpos celestes; vemos que as coisas inferiores agem impulsionadas pelas superiores. É impossível que nesta comunicação de movimentos, o processo prolongue-se até o infinito, porque toda coisa que é movida por outra é como um instrumento do primeiro motor da série. Ora, se não houver um primeiro motor, todas as coisas movidas nada mais são que instrumentos. Por conseguinte, se houver um processo que leve ao infinito a série das coisas que movem sucessivamente umas às outras, nele não pode existir um primeiro motor. Conseqüentemente, todas as coisas, as que movem e as movidas, seriam instrumentos.
2 — É ridículo, porém, até para os menos instruídos, imaginar instrumentos que não sejam movidos por um agente principal. Seria como pensar em construir arcas ou leitos só com serras e machados, mas sem o carpinteiro que os fizesse. Por isso, é necessário que exista um primeiro motor, supremo na sucessão dos movimentos das coisas que se movem umas às outras. A este primeiro motor, chamamos Deus.


CAPÍTULO IV

DEUS É IMÓVEL

Do acima exposto, depreende-se ser necessário que Deus, que move todas as coisas, seja imóvel.
1 — Com efeito, sendo o primeiro motor, se fosse movido, sê-lo-ia necessariamente por si mesmo, ou por outro movente.
Ser movido por outro movente não é possível, porque, se o fosse, existiria algum motor anterior a ele. Ora, isso contradiz a própria noção de primeiro motor.
Se fosse movido por si mesmo, poderia, por sua vez, ser movido de duas maneiras: ou, conforme o mesmo aspecto, sendo movente e movido; ou, então, conforme um aspecto sendo movente, e, conforme outro, movido.
Não é possível dar-se a primeira parte da alternativa. Sabemos que tudo o que é movido, enquanto movido, está em potência, pois o que move está em ato. Ora, se segundo a mesma consideração fosse movente e movido, estaria também conforme a mesma consideração em potência e em ato, o que é impossível.
Não se salva também a outra parte da alternativa. Se estivesse, segundo um aspecto como movente, e, segundo outro, como movido, não seria o primeiro motor por si mesmo primeiro movente, mas pela sua parte que o move. O que é por si, porém, é anterior ao que não é por si. Não poderia, portanto, ser primeiro motor, se fosse movido pela parte. Conseqüentemente, o primeiro motor deve ser absolutamente e em tudo imóvel.
2 — A essa mesma conclusão pode-se chegar considerando-se as coisas que são movidas, e que, ao mesmo tempo, movem outras. Ora, todo movimento apresenta-se como procedente de algo imóvel, que não é movido pela mesma espécie de movimento com que move. Assim é que as alterações, as gerações e as corrupções, movimentos que se dão nos corpos inferiores, referem-se a um corpo celeste como a um primeiro motor que é movido por outra espécie de movimento que a que o move, pois os corpos celestes não surgem por geração: são incorruptíveis e inalteráveis. Aquilo, portanto, que é o princípio de todo o movimento, convém que seja absolutamente imóvel.


CAPÍTULO V

DEUS É ETERNO[21]

Do precedente resulta também que Deus é eterno, pois tudo o que começa a existir ou deixa de existir, por movimento ou mutação, é móvel por natureza. Ora, foi provado que Deus é absolutamente imóvel. Logo, Deus é eterno.


CAPÍTULO VI

DEUS NECESSARIAMENTE
EXISTE POR SI MESMO

Na seqüência do mesmo raciocínio, prova-se que é necessário que Deus exista.
1 — Com efeito, tudo o que tem possibilidade de existir ou de não existir é mutável. Ora, Deus é absolutamente imutável, como se viu. Logo, ser ou não ser, em Deus, não é uma possibilidade.
2 — Além disso, tudo o que existe e que não é possível não existir é necessário que exista, porque, existir necessariamente e não ser possível não existir significam o mesmo. Por conseguinte, Deus necessariamente existe.
3 — Ademais, aquilo que é possível ser ou não ser exige algo que o tenha posto em existência, porque, considerado em si mesmo, pode existir ou não existir. Ora, aquilo que põe a coisa em existência, existe antes dela. Logo, há sempre algo anterior àquilo que pode existir ou não existir. Conseqüentemente, como não há nada anterior a Deus, existir ou não existir não lhe é uma possibilidade. Logo, Deus existe necessariamente.
4 — Continuemos o raciocínio: algumas coisas são necessárias, mas tendo outra como causa dessa necessidade, que lhes é anterior. Ora, Deus existindo antes de todas as coisas, não pode ser causa da sua necessidade de existir. Logo, existe necessariamente por si mesmo.


CAPÍTULO VII

DEUS SEMPRE EXISTE

1 — Dando prosseguimento à argumentação, conclui-se que Deus sempre existe. Tudo aquilo que necessariamente tem existência, sempre existe, porque o que não é possível não existir, é impossível não existir, e, assim, nunca é privado da existência. Ora, vimos que a existência é necessária a Deus. Logo, Deus existe sempre.
2 — Continuemos: nada começa a existir, ou deixa de existir, a não ser por movimento ou mutação. Ora, ficou certo que Deus é absolutamente imutável. Logo, é impossível que tenha começado a existir, ou que deixe de existir.
3 — Ademais, tudo aquilo que nem sempre existiu, ao começar a existir exige algo que lhe cause a existência, pois nada pode passar de potência a ato, ou do não ser ao ser, por si mesmo. Como não pode haver uma causa da existência de Deus, já que Ele é o primeiro Ser, e a causa é sempre anterior ao efeito, é necessário que Deus tenha sempre existido.
4 — Por fim, o que convém a alguma coisa não por causa extrínseca, lhe convém pela própria natureza, por si mesma. Ora, a existência não convém a Deus por alguma causa extrínseca, até porque essa causa lhe seria anterior. Por conseguinte, Deus tem a existência por si mesmo. Como as coisas que existem por si mesmas sempre existem por necessidade intrínseca, Deus sempre existe.


CAPÍTULO VII

NENHUMA SUCESSÃO HÁ EM DEUS

Evidencia-se, além disso, que em Deus não há sucessão, mas, que todo o seu ser existe simultaneamente.
1 — Não se encontra sucessão de tempo a não ser nos seres sob certos aspectos sujeitos a movimento, porque a sucessão de tempo tem a sua explicação na anterioridade e na posterioridade que há no movimento. Ficou já provado que Deus de modo algum está sujeito a movimento. Logo, não há sucessão alguma em Deus, mas todo o seu ser existe simultaneamente.
2 — Ademais, se um ser não existe todo simultaneamente, nele algo poderia desaparecer, e algo, aparecer, pois desaparece nos seres aquilo que passa, e aparece aquilo que é esperado no futuro. Ora, em Deus nada pode desaparecer, nem nada lhe pode ser acrescentado, porque Ele é imóvel. Logo, o seu ser existe todo simultâneo.
3 — Esses dois argumentos provam justamente que Deus é eterno por propriedade da sua natureza. É eterno por propriedade da natureza aquilo que sempre existe e cuja existência está toda simultaneamente realizada. Boécio definiu a eternidade como sendo “total possessão, simultânea e perfeita, de uma vida interminável”.


CAPÍTULO IX

DEUS É SIMPLES

Em prosseguimento ao raciocínio anterior, chega-se também à evidência da razão por que o primeiro motor deve ser simples.
1 — Em toda composição convém que haja dois elementos que se relacionem como a potência para o ato. Ora, no primeiro motor, se ele é absolutamente imóvel, é impossível haver potência unida a ato, porque, desde que esteja em potência, é móvel. Logo, é impossível que o primeiro motor seja composto de potência e ato.
2 — Ademais, deve haver algo anterior ao ser composto, porque as causas que atuaram na composição lhe são anteriores. Por conseguinte, é impossível que aquilo que antecede a todos os seres seja composto.
3 — Considerando, agora, a ordem dos seres compostos, vemos que os seres mais simples são anteriores, porque os elementos são anteriores aos corpos mistos. Mais ainda: entre esses elementos, o primeiro é o fogo, que é simplicíssimo. Anterior, porém, a todos os elementos é o corpo celeste, constituído que está em maior simplicidade, porque é livre de contrariedade. Segue-se, então, que o primeiro dos seres é absolutamente simples[22].


CAPÍTULO X

DEUS É SUA PRÓPRIA ESSÊNCIA

Desenvolvendo-se ainda mais o raciocínio, chega-se à conclusão de que Deus é também a sua própria essência.
1 — A essência de cada coisa é aquilo que a sua definição significa. Há sempre identificação entre a essência e a coisa definida, a não ser que, acidentalmente, entre na definição algo que não pertença à própria definição, como, por exemplo, à definição própria de homem, isto é, animal racional e mortal, se acrescente o qualificativo brancura. Animal racional e mortal diz o mesmo que homem, mas brancura não é o mesmo que homem enquanto é branco.
2 — Nas coisas nas quais não se encontram as duas determinações, uma que lhe seja essencial, e outra, acidental, as essências identificam-se totalmente com elas. Ora, ficou demonstrado acima que Deus é simples, não podendo, portanto, haver n’Ele uma determinação essencial e outra acidental. Logo, em Deus, a essência identifica-se totalmente com Ele.
3 — Ademais, quando uma essência não se identifica totalmente com a coisa de que é essência, encontra-se nela algo de potência e algo de ato, pois a essência refere-se à coisa, de que é essência, como forma; assim como, por exemplo, a humanidade refere-se a homem. Ora, em Deus não há composição de ato e potência, mas Ele é ato puro. Logo, é a sua própria essência.


CAPÍTULO XI

A ESSÊNCIA DE DEUS NÃO É
OUTRA REALIDADE QUE O SEU SER

Desenvolvendo-se ainda mais o raciocínio, chega-se também à evidência de que a essência de Deus não seja outra coisa que o seu ser.
1 — Em qualquer ente no qual uma coisa é a essência, e outra, o seu ser, convém que uma coisa seja pelo que é, e outra, pelo que é algo, pois, pelo seu ser, se diz de qualquer enteque é, e, pela sua essência, se diz o que ele é. Donde também deduzir-se que a definição significativa da essência demonstra o que uma coisa é. Em Deus, porém, não é uma coisa oque é, e, outra coisa, o pelo que é algo, pois, como n’Ele não há composição, como foi demonstrado, também não há d’Ele outra essência que o seu próprio ser[23].
2 — Ademais, vimos anteriormente que Deus é ato puro, no qual não há mistura alguma de potencialidade. Convém, por isso, que a sua essência seja o seu ato último.
Esclareçamos melhor esta verdade. Com efeito, todo ato, que se refere ao ato último, está em potência para ele, e este ato último é o próprio ser. Ora, como todo movimento é passagem de potência a ato, o último ato será aquele para o qual se dirige todo o movimento. Como o movimento natural tende para o que é naturalmente desejável, será também o ato último aquele que todas as coisas desejam, isto é, o ser. Conseqüentemente, convém que a essência divina, que é ato puro e ato último, seja o próprio ser.


CAPÍTULO XII

DEUS NÃO ESTÁ COLOCADO EM GÊNERO,
COMO SE FOSSE ESPÉCIE

Nesta seqüência, chega-se também ao conhecimento de que Deus não está colocado em gênero algum, como se fosse uma espécie.
1 — A diferença acrescentada ao gênero constitui a espécie. Por isso, a essência de qualquer espécie possui algo acrescentado ao gênero. Mas o mesmo ser, que é a essência de Deus, nada contém em si que lhe tenha sido acrescentado. Logo, Deus não é espécie de gênero algum.
2 — Ademais, como todo gênero contém as diferenças específicas em potência, tudo o que é constituído de gênero e diferença tem mistura de ato e potência. Ora, foi demonstrado que Deus é ato puro, sem mistura de potência. Conseqüentemente, a sua essência não é constituída por gênero e diferença. Logo, Deus não está colocado sob gênero algum.


CAPÍTULO XIII

É IMPOSSÍVEL DEUS SER GÊNERO

Avançando o raciocínio, verifica-se também que é impossível Deus ser gênero.
1 — Tem-se, pelo gênero, o que a coisa é, mas não aquilo pelo que ela existe, porque a coisa só pode ser posta no próprio ser após ter sido determinada pela diferença. Ora, sendo Deus o seu próprio ser, fica impossibilitado de ser gênero.
2 — Ademais, todo gênero é dividido pelas diferenças específicas. Mas o próprio ser do gênero não consiste em receber as diferenças específicas, pois elas não participam do gênero senão acidentalmente, na medida em que as espécies, que são constituídas pelas diferenças, participam do gênero. Não pode, com efeito, haver diferença que não participe do ser, até porque no não ser não existe diferença alguma. Logo, é impossível que Deus seja um gênero que se divida em muitas espécies.


CAPÍTULO XIV

DEUS NÃO É UMA ESPÉCIE QUE
SE DIVIDE EM MUITOS INDIVÍDUOS

Também não é possível que Deus seja uma espécie dividida em muitos indivíduos.
1 — Os diversos indivíduos que possuem a mesma essência da espécie distinguem-se por algo não inerente à essência da espécie, como, por exemplo, os homens, que possuem a mesma humanidade, distinguem-se entre si por algo não inerente à noção de humanidade. Mas isso não se pode dar em Deus, pois, como ficou provado, Ele é sua própria essência. Logo, é impossível que Deus seja uma espécie, e se divida por muitos indivíduos.
2 — Ademais, os indivíduos nos quais uma espécie se divide, diferenciam-se entre si pelo ser, mas convém na mesma essência. Ora, onde quer que haja muitos indivíduos sob a mesma espécie, é necessário que uma coisa seja o ser de cada um, e, outra coisa, a essência da espécie. Mas em Deus, como vimos, identificam-se o ser e a essência. Logo, é impossível que Deus seja uma espécie que se divida em muitos indivíduos.


CAPÍTULO XV

É NECESSÁRIO AFIRMAR
QUE HÁ UM SÓ DEUS

Verifica-se também que é necessário que haja um só Deus.
1 — Se existirem muitos deuses, cada um deles será denominado deus por equivocidade ou por univocidade: se por equivocidade, a denominação não tem sentido, até porque nada me impediria, neste caso, de chamar de pedra o que outrem chama de deus; se por univocidade, concordarão os diversos deuses em gênero e em espécie. Ora, como já foi provado, Deus não pode ser gênero, nem espécie dividida por muitos indivíduos. Logo, é impossível haver muitos deuses.
2 — Ademais, é impossível que aquilo que individualiza uma essência comum contenha simultaneamente os seus diversos indivíduos, pois, embora existam muitos homens, é impossível que este homem não seja senão um só homem. Ora, se a essência fosse por si mesma individualizada e não por outra realidade, ser-lhe-ia impossível multiplicar-se em muitos indivíduos. Ora, a essência divina é individualizada por si mesma, porque em Deus a essência identifica-se com o que Ele é, pois já foi provado que Ele é a sua própria essência. Logo, é impossível que não exista senão um só Deus.
3 — Finalmente, uma forma pode-se multiplicar de duas maneiras: uma, pelas diferenças, como forma geral: o calor, por exemplo, multiplica-se pelas diversas espécies de calor; outra, pelo sujeito, como, por exemplo, a brancura multiplica-se pelos diversos indivíduos brancos. A forma que não se pode multiplicar pelas diferenças, se não está como forma existente num sujeito, é impossível que seja multiplicada: a brancura, por exemplo, se não estivesse existindo nos indivíduos, seria uma só realidade subsistente. Ora, a essência divina é o próprio ser de Deus, que, como foi provado acima, não pode receber diferenças. Sendo, pois, o próprio ser divino como uma quase forma subsistente por si mesma, porque Deus é o seu próprio ser, é impossível que a essência divina não seja também senão uma só. Logo, é impossível que haja muitos deuses.


CAPÍTULO XVI

É IMPOSSÍVEL QUE DEUS SEJA CORPO

1 — Evidencia-se, após, que é impossível Deus ter corpo, porque em todo corpo há alguma composição, já que o corpo é constituído de partes. Ora, o que é totalmente simples, como Deus o é, não pode ter partes.
2 — Ademais, nenhum corpo encontra-se em movimento, senão por alguma coisa que o tenha movido, como atesta a experiência. Por conseguinte, se o primeiro motor é absolutamente imóvel, é impossível que ele seja corpo.


CAPÍTULO XVII

IMPOSSÍVEL DEUS SER FORMA DE
ALGUM CORPO, OU SER COMO
UMA POTÊNCIA UNIDA A CORPO

Também não é possível ser Deus forma de corpo ou ser potência em corpo.
1 — Como todo corpo é imóvel, é necessário que aquilo que a ele se una participe também do seu movimento, ainda que seja só acidentalmente. Ora, o primeiro motor nem acidentalmente pode movimentar-se, pois é absolutamente imóvel. Logo, é impossível ao primeiro motor ser forma de corpo ou potência unida a corpo.
2 — Ademais, todo motor, para movimentar alguma coisa, deve ter domínio sobre ela, enquanto ela é movida. Além disso, sabemos pela experiência, que quanto mais a potência motora excede a potência da coisa movida, tanto mais veloz será o movimento. Ora, o motor, que por primeiro move todas as coisas, deve dominá-las, por conseguinte, de modo absoluto. Mas isso não poderia acontecer se ele estivesse de algum modo preso à coisa movida, pois só unido a ela poderia ser sua forma ou sua potência. Logo, convém que o primeiro motor não seja nem corpo, nem forma unida a corpo, nem potência unida a corpo.
3 — Esse o motivo por que Anaxágoras viu a necessidade de considerar a inteligência sem mistura alguma, para que ela pudesse dominar e dar movimento a todas as coisas.


CAPÍTULO XVIII

DEUS É INFINITO NA SUA ESSÊNCIA

Do exposto se pode considerar que o primeiro motor é infinito, não privativamente, pois o infinito privativo é próprio da quantidade, isto é, quando por sua natureza a coisa deve ter limite, mas é considerada como se o não tivesse. O primeiro motor, porém, é infinito negativamente, porque o infinito negativo atribui-se a uma coisa que careça totalmente de limite.
1 — Não se encontra nenhum ato limitado, a não ser que a potência que o receba o limite: as formas, por esse motivo, são limitadas pela potência da matéria. Ora, se o primeiro motor é um ato sem mistura de potência, porque não pode ser forma de corpo, nem potência unida a corpo, é necessário que ele seja infinito.
2 — O mesmo verificamos quando observamos a ordem das coisas, pois, quanto mais elevada é uma coisa entre os entes, tanto maior ela é a seu modo. Entre os elementos que são inferiores aos outros, encontram-se uns maiores que os outros, tanto entre os que têm quantidade, quanto entre os simples. Na geração destes, conforme ensina a experiência, com o aumento de proporção, vai sendo gerado o fogo, do ar; o ar, da água; a água, por fim, da terra[24]. É evidente também que o corpo celeste que é simples por natureza, excede toda a quantidade dos elementos. Conseqüentemente, torna-se necessário que o primeiro dos entes, anterior ao qual nada pode existir, exista com a quantidade infinita que lhe convém.
3 — Não pode causar admiração que um ser simples, carecente, portanto, de quantidade, seja considerado infinito, e excedendo, pela sua imensidão, a quantidade dos corpos, porque a nossa inteligência, que é incorpórea e simples, excede também pela sua imensidão a quantidade de todos os corpos, já que atinge a todas as coisas. Ora, muito mais que a inteligência, o primeiro de todos os seres, pela sua imensidão absoluta, deve exceder e abranger todas as coisas.


CAPÍTULO XIX

O PODER DE DEUS É INFINITO

Daí tornar-se evidente que o poder de Deus é infinito.
1 — A potência resulta da essência da coisa, pois cada coisa age conforme o seu modo de ser. Ora, se Deus é infinito na sua essência, convém também que o seu poder seja infinito.
2 — Chega-se à mesma evidência observando-se, com atenção, a ordem das coisas. Ora, uma realidade, enquanto potência, é potência receptiva, ou passiva; enquanto ato, é potência ativa. Mas aquilo que é somente potência, isto é, matéria-prima, tem potência infinita para receber, sem que em nada participe da potência ativa. Além disso, quanto mais algo está como forma acima dela, tanto mais lhe abunda a potência ativa. O fogo, por exemple, que é o elemento superior a todos os outros, tem o máximo de potência ativa entre os elementos. Deus, sendo ato puro, sem mistura alguma de potência, age abundantemente com poder infinito sobre todos os seres.


CAPÍTULO XX

O INFINITO EM DEUS
NÃO IMPLICA IMPERFEIÇÃO

1 — O infinito quantitativo implica imperfeição, mas o infinito que se atribui a Deus implica a suma perfeição. O infinito quantitativo convém à matéria enquanto é privada de limite, pois a imperfeição convém à coisa corpórea enquanto a matéria-prima é sujeito de privação, ao passo que a perfeição lhe convém pela forma substancial. Ora, como Deus é infinito, porque é somente forma, ou ato, sem mistura alguma de potência, ou de matéria-prima, a infinitude de Deus decorre da sua suma perfeição.
2 — A observação das coisas nos leva à mesma conclusão. Embora em um mesmo ser que se desenvolve de imperfeito para perfeito o imperfeito anteceda o perfeito, como, no homem, em que primeiro há a criança e, só depois, o adulto; contudo, é necessário que a coisa imperfeita tenha sua origem em uma coisa perfeita, pois vemos que uma criança não pode nascer senão de um adulto, e que o sêmen e a semente não vêm senão de um animal ou de uma planta. Conseqüentemente, aquilo que é anterior a todas as coisas, e que a todas elas dá o movimento, deve ser mais perfeito que tudo o mais.


CAPÍTULO XXI

A PERFEIÇÃO DE TODAS AS COISAS
EXISTE EM DEUS DE UM MODO EMINENTE

Donde sermos também levados a afirmar que todas as perfeições, que existem em todas as coisas, devem existir em Deus originária e superabundantemente.
1 — Todo ser que leva outro a atingir uma perfeição tem em si, anteriormente, aquela perfeição para a qual move o outro, como, por exemplo, o mestre deve conhecer a doutrina antes de ensiná-la aos discípulos. Ora, como Deus é o primeiro motor, e faz com que todas as coisas se movimentem para atingir as próprias perfeições, é necessário que todas as perfeições das coisas preexistam n’Ele de modo superabundante.
2 — Ademais, o ser que possui alguma perfeição, faltando-lhe outra, fica limitado a um gênero, a uma espécie. Sabemos também que é pela forma, que dá a perfeição aos seres, que cada um deles é posto em determinado gênero, ou em determinada espécie. Ora, o ser que é posto em uma espécie, mesmo já estando constituído em determinado gênero, não pode possuir essência infinita, porque é necessário que a última diferença, que o põe na espécie, termine a essência. Por essa razão, denomina-se definição, ou determinação de fim, o conceito que faz a espécie conhecida. Portanto, se a essência divina é infinita, é impossível que ela possua apenas a perfeição de um gênero ou de uma espécie, mas é necessário que ela possua em si mesma as perfeições de todos os gêneros e de todas as espécies.


CAPÍTULO XXII

EM DEUS TODAS AS PERFEIÇÕES
IDENTIFICAM-SE REALMENTE

Se agora considerarmos, em síntese, os argumentos até aqui desenvolvidos, fica evidenciado que todas as perfeições em Deus são uma só realidade.5
1 — Vimos que Deus é simples. Ora, onde há simplicidade não pode haver distinção real nos atributos intrínsecos. Logo, se em Deus salvam-se as perfeições de todas as coisas, é impossível que n’Ele elas sejam realmente distintas. Eis por que, em Deus, todas as perfeições são uma só realidade[25].
2 — Essa verdade pode ser esclarecida pela comparação com as potências cognoscitivas, pois a potência superior em uma só e mesma consideração conhece os objetos que as potências inferiores conhecem diversificadamente: a inteligência, por uma simples e única intelecção, apreende todos os objetos que as potências inferiores conhecem diversificadamente: o objeto da vista, da audição e dos demais sentidos.
Auxilia-nos também a comparação com as ciências: enquanto as ciências inferiores têm os seus objetos formais diversificados conforme a diversificação dos gêneros das coisas que elas atingem na realidade, a ciência que se chama Filosofia Primeira é uma ciência que, de plano superior, conhece todas as coisas.
Serve-nos ainda a comparação com o poder político. Com efeito, o poder régio, sendo um só, compreende todos os poderes que são distribuídos pelos múltiplos ofícios do reino.
Convém também que as perfeições, que nas coisas inferiores multiplicam-se conforme a multiplicação dessas mesmas coisas, no vértice de todas elas, isto é, em Deus, sejam unificadas.


CAPÍTULO XXIII

EM DEUS NÃO HÁ ACIDENTE

Por aí também se vê que em Deus não pode haver acidente.
1 — Se em Deus todas as perfeições unem-se numa só realidade, e à sua perfeição pertencem a existência, o poder, o agir, etc., é necessário que tudo n’Ele se identifique com a sua essência. Conseqüentemente, nenhum acidente há em Deus.
2 — Ademais, é impossível que um ser seja de perfeição infinita, se algo puder ser acrescido a essa perfeição. Se um ser tem alguma perfeição acidental, e como todo acidente é acrescido à essência, é evidente que alguma perfeição lhe foi acrescida à essência. Essa essência, portanto, não é de perfeição infinita. Ora, vimos que Deus, na sua essência, é de perfeição infinita. Logo, nenhuma perfeição lhe pode ser acidental, mas tudo que n’Ele existe pertence à sua própria substância.
3 — Chega-se à mesma conclusão partindo-se da consideração da suprema simplicidade divina, de que Deus é ato puro, bem como da consideração de que Ele é o primeiro dos seres. Da simplicidade, pois toda união de acidente com o sujeito é um modo de composição. De que Deus é ato puro, porque o que é sujeito de acidente não pode ser ato puro, já que o acidente é uma certa forma, ou ato, do sujeito. De que Deus é o primeiro dos seres, porque aquilo que existe por si é anterior àquilo que existe por acidente.
Todas essas razões nos levam à conclusão de que nada há em Deus que possa ser considerado acidente.


CAPÍTULO XXIV

A MULTIPLICIDADE DE SIGNIFICADOS
DOS NOMES ATRIBUÍDOS A DEUS NÃO
REPUGNA À SUA SIMPLICIDADE

O seguinte argumento esclarece por que muitos são os nomes atribuídos a Deus, não obstante Ele ser em si absolutamente simples.
1 — Foi demonstrado acima que a nossa inteligência não pode apreender a essência divina em si mesma, e que chega ao conhecimento dela partindo do conhecimento das coisas existentes entre nós, nas quais há perfeições diversas, cuja raiz e origem está em Deus. Como não podemos atribuir um nome a alguma coisa, a não ser que a tenhamos conhecido pela inteligência (pois os nomes são sinais daquilo que apreendemos por intelecção), assim também não podemos atribuir nomes a Deus a não ser partindo das perfeições existentes nas coisas, cuja origem está n’Ele. Como, além disso, são muitas as perfeições encontradas nas coisas criadas, deve-se também atribuir muitos nomes a Deus.
2 — Se, porém, víssemos a essência de Deus em si mesma, não haveria necessidade dessa multiplicidade de nomes, pois teríamos d’Ele um conceito simples, como simples é a sua essência. Esperamos vê-la no dia em que entrarmos na glória, conforme se lê no livro do profeta Zacarias: “Naquele dia haverá um só Deus, e um só será o Seu nome.” (Zac 14,9.)


CAPÍTULO XXV

OS DIVERSOS NOMES ATRIBUÍDOS
A DEUS NÃO SÃO SINÔNIMOS

Do que acabamos de expor, tiram-se três conclusões.
1 — Primeiro, que os diversos nomes, apesar de significarem uma só realidade em Deus, não são sinônimos. Para que os nomes sejam sinônimos, devem eles significar uma só coisa e designar um só conceito da nossa inteligência. Quando, porém, significam uma só coisa, mas considerada sob aspectos diversos, isto é, enquanto a inteligência conhece a mesma coisa por apreensões diversas, tais nomes não são sinônimos, porque não significam perfeitamente a mesma realidade. Nota-se que os nomes significam imediatamente os conceitos produzidos em nossa inteligência, e que estes, por sua vez, são semelhantes às coisas. Por conseguinte, como os diversos nomes atribuídos a Deus significam diversos conceitos que d’Ele há em nossa inteligência, esses nomes não são sinônimos, bem que signifiquem uma só e única realidade.


CAPÍTULO XXVI

PELA DEFINIÇÃO DOS NOMES NÃO
SE DEFINE O QUE ESTÁ EM DEUS

2 — Segundo, como a nossa inteligência não pode ter conhecimento perfeito da essência divina por nenhum dos conceitos significados pelos nomes atribuídos a Deus, é impossível definir-se algo que esteja em Deus pela definição de um outro nome, como, por exemplo, se quisermos definir a sabedoria divina pela definição do poder divino, etc.
3 — Pode isto ser demonstrado por outro argumento. Sabemos que toda definição consta de gênero e diferença específica. O que, porém, se define é a espécie. Ora, foi visto acima que a essência divina não pode ser colocada sob gênero, nem, sob espécie alguma. Logo, não pode ser definida.


CAPÍTULO XXVII

OS NOMES ATRIBUÍDOS A DEUS E
ÀS COISAS NÃO SÃO TOTALMENE
UNÍVOCOS NEM EQUÍVOCOS

4 — Terceiro, que os nomes atribuídos a Deus e às coisas não são totalmente unívocos nem equívocos. Não podem ser unívocos: a definição dos nomes atribuídos às criaturas não é a mesma definição dos nomes atribuídos a Deus. Ora, os nomes tomados univocamente devem ter a mesma definição. Por motivo semelhante, também não podem ser equívocos: nas coisas que são casualmente designadas pelo mesmo nome, dá-se o nome a uma sem nenhuma consideração para com a outra. Por conseguinte, nada se pode deduzir de uma, relacionando-a com a outra.
5 — Aqueles nomes, porém, que são equivocamente atribuímos a Deus e às outras coisas, são atribuídos a Deus conforme alguma ordenação existente entre elas e Deus, nas quais a inteligência considera o significado daqueles nomes. Eis porque, partindo-se das diversas coisas, podemos deduzir algo referente a Deus.
6 — Contudo, esses nomes não são ditos equivocamente de Deus e das outras coisas, como o são os nomes equívocos por acaso[26]. São atribuídos a Deus por analogia, isto é, conforme certa proporção de alguma perfeição, Assim, quando comparamos as outras coisas com Deus, por que Ele é a primeira causa delas, os mesmos nomes que significam as perfeições das coisas atribuímos a Deus. Fica, pois, esclarecido, com relação à imposição dos nomes, que embora esses nomes refiram-se primeiramente às criaturas, pois ao impor os nomes a inteligência sobe das criaturas para Deus, com relação a coisa significada pelo nome, eles referem-se primeiramente a Deus, de Quem as perfeições descem para as outras coisas.


CAPÍTULO XXVIII

CONVÉM QUE DEUS SEJA INTELIGENTE

1 — Devemos agora demonstrar que Deus é inteligente. Já foi acima dito que em Deus preexistem superabundantemente todas as perfeições de todos os seres. Ora, a intelecção tem a preeminência sobre todas as perfeições dos seres, pois os seres inteligentes são mais perfeitos que os demais. Logo, é conveniente que Deus seja inteligente.
2 — Foi também acima afirmado que Deus é ato puro, sem mistura alguma de potência. A matéria-prima sendo ser em potência, convém que Deus seja totalmente carecente dela. Ora, a imunidade de matéria-prima é a causa da intelecção, pois as formas materiais fazem-se inteligíveis em ato, na medida em que são abstraídas da matéria-prima e das condições materiais. Logo, Deus é um ser inteligente.
3 — Ademais, foi também acima demonstrado que Deus é o primeiro motor. Ora, essa é uma propriedade da inteligência, porque a inteligência usa de todas as outras coisas como instrumento para os movimentos: o homem, pela inteligência, usa como de instrumento aos animais, às plantas e aos seres inanimados. Por isso, Deus sendo o primeiro motor, deve ser também inteligente.


CAPÍTULO XXIX

A INTELECÇÃO EM DEUS NÃO
É POTÊNCIA NEM HÁBITO, MAS ATO

Como não há potência em Deus, mas tudo que n’Ele existe é ato, convém que a sua intelecção não proceda de potência ou de hábito, mas que ela seja somente ato.
1 — Daí se conclui que nenhuma sucessão pode haver nesse ato de intelecção. Quando uma inteligência conhece as coisas sucessivamente, deve conhecer algumas que estejam em ato, e outras que estejam em potência para o conhecimento. Deve-se ainda considerar que quando as coisas são simultâneas, entre elas não pode haver sucessão. Se, portanto, Deus nada conhece passando de potência a ato, a sua intelecção carece totalmente de sucessão.
2 — Daí também se conclui que todas as coisas que Deus conhece, conhece-as simultaneamente, bem como que nada conhece como novidade. A inteligência que conhece algo como novo estava primeiramente em potência para este conhecimento.
3 — Ademais, conclui-se que o conhecimento divino não se faz por intelecção discursiva, vindo do conhecimento de uma coisa para o conhecimento de outra, como acontece com a nossa inteligência, quando raciocina. O discurso realiza-se em nossa inteligência quando, partindo das coisas conhecidas, chegamos ao conhecimento das desconhecidas, ou daquilo que não consideramos atualmente. Tal coisa não pode acontecer na inteligência divina.


CAPÍTULO XXX

DEUS CONHECE POR MEIO DA SUA
ESSÊNCIA, NÃO POR MEIO
DE ALGUMA ESPÉCIE

Evidencia-se, pelo que foi dito, que Deus não conhece por meio de espécie, mas pela sua essência.
1 — Toda inteligência que conhece por uma espécie distinta de si refere-se a essa espécie como potência a ato, pois a espécie inteligível é a perfeição que a faz ter a intelecção. Se, portanto, em Deus nada há de potência, pois Ele é ato puro, convém que Deus conheça não por meio de espécie, mas pela Sua própria essência.
2 — Daí se infere que Deus primeira e diretamente conhece a Si mesmo. A essência não leva própria e diretamente ao conhecimento de alguma coisa, senão daquilo mesmo de que é essência. Assim é que, pela definição de homem, se conhece propriamente o homem; pela definição de cavalo, o cavalo. Se, por conseguinte, Deus conhece pela sua própria essência, convém que o objeto da sua intelecção seja direta e principalmente o próprio Deus.
3 — Como Deus é sua própria essência, conclui-se que n’Ele a inteligência, aquilo por meio de que conhece, e a coisa conhecida são absolutamente uma só realidade.


CAPÍTULO XXXI

DEUS É A SUA PRÓPRIA INTELECÇÃO

Convém também que Deus seja sua própria intelecção.
1 — Como toda intelecção é ato segundo, ao considerarmos as inteligências que não se identificam com a própria intelecção (já que o ato primeiro é a mesma inteligência, ou ciência), elas referem-se às suas intelecções como potência a ato. Na ordem das potências e dos atos, sempre o que vem antes está em potência para o que vem em seguida, e o último ato completa a série. Isso, quando se trata de uma só e mesma coisa. Quando, porém, trata-se de coisas distintas, dá-se o contrário: o movente e o agente referem-se ao movido e atualizado, como ato que atualiza a potência. Em Deus, porém, como Ele é ato puro, nada há que se refira a outra coisa como potência a ato. Convém, pois, que Deus seja sua própria intelecção.
2 — Ademais, a inteligência, de certo modo, refere-se à intelecção como a essência refere-se ao ser. Mas Deus conhece por sua própria essência, e esta identifica-se com o seu ser. Por conseguinte, a inteligência identifica-se com a própria intelecção, e, justamente por ser inteligente, não se pode supor em Deus composição alguma: n’Ele não há distinção entre inteligência, intelecção e espécie inteligível. Eis porque tais coisas em Deus nada mais são que sua própria essência.


CAPÍTULO XXXII

CONVÉM QUE EM DEUS HAJA VOLIÇÃO

Continuando, esclarece-se por que é necessário haver volição em Deus.
1 — Vimos acima que Deus conhece a si mesmo, e que se identifica com o bem perfeito. Ora, o bem, quando conhecido, torna-se necessariamente amado. Como esse amor é ato da vontade, é necessário que haja volição em Deus.
2 — Ademais, também vimos que Deus é o primeiro motor. Como a inteligência não pode mover alguma coisa senão mediante o apetite, e como o apetite que segue à inteligência é a vontade, convém que em Deus haja volição.


CAPÍTULO XXXIII

CONVÉM QUE A VONTADE DE DEUS
NÃO SEJA DISTINTA DA SUA INTELIGÊNCIA

É claro que a vontade de Deus não é distinta da sua inteligência.
1 — O bem conhecido pela inteligência, sendo o objeto da vontade, move a vontade e leva-a à última perfeição. Ora, como em Deus não há distinção entre movente e movimento, entre ato e potência, entre perfeição e perfectível (como já foi anteriormente demonstrado), deve a vontade divina ser o próprio bem conhecido. Logo, como a inteligência divina identifica-se com a essência divina, a vontade de Deus outra coisa não é que a sua própria inteligência e que a sua própria essência.
2 — Ademais, a inteligência e a vontade têm a preeminência entre as perfeições das coisas, pois elas existem, como verificamos, nas coisas mais nobres. Ora, as perfeições de todas as coisas são, em Deus, uma só realidade, isto é, constituem a sua essência, como vimos acima. Logo, a inteligência e a vontade divina identificam-se com a essência divina.


CAPÍTULO XXXIV

A VONTADE DE DEUS É
A SUA PRÓPRIA VOLIÇÃO

Pelo exposto, também se esclarece por que a vontade divina é o próprio querer de Deus.
1 — Ficou demonstrado que a vontade, em Deus, identifica-se com o bem por Ele desejado. Isso não é possível senão identificando-se a volição com a vontade, pois, na vontade, a volição nasce do desejo. Logo, a vontade de Deus é a sua volição.
2 — Ademais, a vontade divina identifica-se com a inteligência e com a essência divina. Como a inteligência divina é a sua intelecção e a essência divina é o ser de Deus, convém do mesmo modo que a vontade divina seja a própria volição divina.
3 — Fica também, por isso, evidenciado que o fato de Deus ter vontade não repugna à sua simplicidade.


CAPÍTULO XXXV

TUDO QUE ATÉ AQUI FOI DITO ESTÁ
COMPREENDIDO EM UM SÓ ARTIGO DE FÉ

Podemos concluir, de tudo que acima foi dito, que Deus é uno, simples, perfeito, infinito, dotado de inteligência e de vontade. Tudo isto, com efeito, está contido em um breve artigo de fé, que professamos, dizendo: “Creio em um só Deus, Todo-Poderoso.”
Como se julga que o nome de Deus deriva do termo grego THEÓS, o qual, por sua vez, vem de STEASTHAI, que significa ver, considerar, da própria significação do nome, deduz-se que Deus é inteligente e, conseqüentemente, é dotado de vontade.
Quando se diz que Deus é uno, exclui-se toda pluralidade de deuses, e toda composição. Ora, também não pode ser simplesmente uno o que não é simples.
Ao afirmarmos que Deus é onipotente, dizemos também que a sua potência é infinita, de cujo poder nada pode ser subtraído. Ora, se assim é, está implícito nesta afirmação que Deus é infinito perfeito, porque o poder de uma coisa é proporcional à sua essência.


CAPÍTULO XXXVI

TODAS ESSAS VERDADES FORAM
CONSIDERADAS PELOS FILÓSOFOS

1 — Tudo o que acima foi dito a respeito de Deus, muitos filósofos dos gentios consideraram com sutileza, embora alguns o tenham feito com erro. Os que disseram coisas verdadeiras sobre tais assuntos, a elas chegaram com dificuldade, após longa e trabalhosa procura.
2 — Há, porém, outras verdades, a respeito de Deus, expostas na doutrina cristã, às quais eles não puderam chegar, quais sejam as verdades que conhecemos pela fé, e que ultrapassam a capacidade do entendimento humano.
Foi demonstrado que Deus é uno e simples. Mas é também Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo, embora esses Três não sejam três deuses, mas um só Deus. Essas coisas é que pretendemos agora considerar, na medida das nossas possibilidades.


II — A TRINDADE DE PESSOAS EM DEUS


CAPÍTULO XXXVII

COMO HÁ UM VERBO EM DEUS

Resumindo o que já foi dito: Deus se conhece a Si mesmo e se ama a Si mesmo. A sua intelecção e a sua volição não se distinguem realmente do seu próprio ser. Ora, como Deus, pela sua inteligência, se conhece a Si mesmo, e como a coisa conhecida pela inteligência nela está, convém que Deus esteja em Si mesmo, como a coisa conhecida está na inteligência. A coisa conhecida enquanto está na inteligência é um certo verbo (ou palavra) da inteligência. Aquilo que interiormente conhecemos pela inteligência significamos pela palavra exterior, pois, conforme o Filósofo[27], as vozes são sinais das coisas conhecidas pela inteligência. Convém, por conseguinte, colocar em Deus o Seu próprio Verbo.


CAPÍTULO XXXVIII

O VERBO EM DEUS É UMA CONCEPÇÃO

Aquilo que está dentro da inteligência, como verbo interior, conforme a maneira comum de se falar, é uma concepção (conceito) da inteligência.
Considera-se como concebido corporalmente aquilo que é formado no útero do ser vivo pela potência vivificante, funcionando o macho como elemento ativo e a fêmea, em cujo útero dá-se a concepção, como elemento passivo, de modo que o ser concebido participa da natureza de ambos, quase conformando-se a eles segundo a espécie.
Assim, também, aquilo que a inteligência compreende, nela se forma, como se o ser inteligível fosse o agente, e a inteligência, o paciente. E aquilo mesmo que é compreendido pela inteligência, existindo no interior dela, é conforme quer ao ser inteligível movente, do qual é uma certa semelhança, quer à inteligência que está quase como paciente, enquanto nela tem ser inteligível. Portanto, o que é compreendido pela inteligência, não sem motivo, chama-se sua concepção.


CAPÍTULO XXXIX

COMO O VERBO É COMPARADO AO PAI

Torna-se agora necessária uma distinção.
1 — Como aquilo que é concebido na inteligência é uma imagem da coisa conhecida, representante da sua forma, aparece como se fosse um filho desta. Quando a inteligência conhece algo distinto de si, a coisa conhecida é como um pai do verbo concebido na inteligência. A inteligência, neste caso, exerce mais a função de mãe, enquanto deve dar-se para que nela se realize a concepção.
2 — Quando, porém, a inteligência se conhece a si mesma, o verbo nela concebido é comparado como o filho ao pai. Como estamos nos referindo ao Verbo que se forma quando Deus se conhece a Si mesmo, convém que este Verbo seja também comparado a Deus, de quem é Verbo, como o filho, ao pai.


CAPÍTULO XL

COMO SE ENTENDE A GERAÇÃO EM DEUS

Essa a razão pela qual a regra da Fé Católica nos ensina a confessar que há, em Deus, um Pai e um Filho, quando ela diz: “Creio em Deus Pai e em seu Filho.”
Para que ninguém, ao ouvir os nomes de Pai e Filho, pense que se trata de geração carnal, quando nós, católicos, falamos de Pai e Filho, o Evangelista São João, a quem foram revelados os mistérios celestes, em lugar do nome Filho, pôs o nome Verbo, para que soubéssemos que se trata de uma geração realizada na inteligência.


CAPÍTULO XLI

O VERBO, QUE É FILHO, TEM, COM O PAI,
A MESMA ESSÊNCIA E O MESMO SER

1 — Devemos, entretanto, considerar que, como em nós o ser natural não se identifica com o ato da inteligência, torna-se necessário que o verbo concebido em nossa inteligência (o qual, por sua vez, tem apenas ser inteligível) seja de outra natureza que a dela, que tem ser natural.
2 — Em Deus, porém, há identidade entre o ser e a intelecção. Por conseguinte, o Verbo de Deus, que está em Deus, cujo ser é inteligível, possui o seu ser idêntico ao de Deus, de Quem é Verbo. Por isso, também é necessário que Ele tenha a mesma essência e a mesma natureza de Deus.
3 — Assim, tudo que é atribuído a Deus, deve ser também atribuído ao Verbo de Deus.


CAPÍTULO XLII

ESSA VERDADE É ENSINADA
PELA FÉ CATÓLICA

Daí se infere o motivo por que a Regra da Fé Católica nos ensina a professar que o Filho é consubstancial ao Pai, e, assim, dois erros são excluídos.
1 — Em primeiro lugar, para que não se entenda pai e filho como existem na geração carnal, na qual o filho origina-se da substância do pai como que por uma separação: se assim fosse, o Filho não poderia ser consubstancial ao Pai.
2 — Em segundo lugar, para que também não consideremos o Pai e o Filho conforme a geração que se processa na inteligência humana, como o Verbo é concebido em nossa inteligência, vindo a ela acidentalmente, e existindo nela como não vindo da própria essência.


CAPÍTULO XLIII

EM DEUS NÃO HÁ DIFERENÇA, ENTRE
O PAI E O FILHO, DE TEMPO, DE
ESPÉCIE E DE NATUREZA

Quando as coisas não se distinguem realmente pela essência, é impossível que haja entre elas distinção de espécie, de tempo e de natureza. Como o Verbo é consubstancial, essas três distinções não se realizam entre o Verbo e o Pai.
1 — Assim é que não pode haver distinção de tempo. Como este Verbo esteja em Deus conforme Deus se conhece a Si mesmo, concebendo assim um Verbo inteligível, conviria que, se em algum tempo o Verbo não existisse, Deus, nesse tempo, não se conheceria. Como Deus sempre existe, também sempre se conhece a Si mesmo. Como a sua intelecção se identifica com o seu próprio ser, o seu Verbo também sempre existe.
Por isso dizemos, seguindo a Regra da Fé Católica: “Nascido do Pai, antes de todos os séculos.”
2 — É também impossível que o Verbo se distinga de Deus como sendo de uma espécieinferior, porque Deus se conhece a Si mesmo totalmente como existe. Tem perfeita espécie o Verbo que é perfeitamente conhecido pela inteligência que o concebe. Por conseguinte, é necessário que o Verbo de Deus seja absolutamente perfeito, como a espécie divina.
Há coisas que procedem de outras, mas delas não recebem a espécie perfeita. Acontece isso, em primeiro lugar, nas gerações equívocas, como o sol que não gera outro sol, mas alguns animais[28]. Para que, da geração divina, essa imperfeição seja excluída, confessamos que o Verbo é nascido como “Deus de Deus”. Aquilo que procede de outra coisa, distingue-se dela, em segundo lugar, por um defeito de pureza.
Assim, aquilo que em si mesmo é simples e puro, quando é aplicado a uma matéria estranha, produz um efeito defeituoso com relação à espécie do ser de que procede. Isso acontece, por exemplo, com a casa enquanto está planejada na mente do artista, e enquanto é realizada na construção; com a luz recebida em um corpo delimitado, que se modifica em cores; com o fogo, quando aquece elementos simples, e os transforma em compostos; e com os raios luminosos, quando diante deles se põem corpos opacos, e surge sombra. Para que tal não se diga da geração divina, é acrescentado: “Luz de Luz.” Em terceiro lugar, aquilo que procede de outras coisas pode não conservar a mesma espécie devido a um defeito de verdade, porque, então, não recebe a sua verdadeira natureza, mas somente alguma semelhança, como a imagem, no espelho; a pintura, a escultura, ou, em outra ordem, as imagens das coisas, na inteligência ou nos sentidos. Ora, a imagem do homem não pode ser chamada de verdadeiro homem, mas de semelhança do homem; a pedra não está na alma, como diz o Filósofo, mas, a forma da pedra. Para que isto seja excluído da geração divina, é acrescentado: “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro.”
3 — É impossível também que, pela natureza, o Verbo distinga-se de Deus, pois é natural a Deus conhecer-se a Si mesmo. Há coisas que a inteligência as conhece por ato que lhe é natural, como a nossa conhece os primeiros princípios. Com muito mais razão, Deus, cuja intelecção se identifica com o próprio ser, conhece-se naturalmente.
O Verbo de Deus vem de Deus por processo natural, não como algo que proceda de outrem, por origem não natural, como as coisas artificiais vêm de nós, e, nesse caso, afirmamos que as fazemos. As coisas, porém, que naturalmente procedem de nós, afirmamos que as geramos, como dizemos dos filhos. Para que não se entenda que o Verbo de Deus não procede do Pai por natureza, mas que procede por poder de vontade, acrescentou-se “Gerado, não feito.”


CAPÍTULO XLIV

CONCLUSÃO DESSAS PREMISSAS

Como dessas premissas, evidentemente, infere-se que as condições acima relacionadas, referentes à geração divina, ajustam-se à consubstancialidade do Pai e do Filho, acrescenta-se, finalmente, como compêndio de todas essas verdades: “Consubstancial ao Pai.”



CAPÍTULO XLV

DEUS ESTÁ EM SI MESMO,
COMO O AMADO NO AMANTE

1 — Como o ser inteligente tem em si a coisa conhecida enquanto ela é objeto da intelecção, assim também a coisa amada está no amante, enquanto é amada. O amante é, de certo modo, movido pelo amado por algum impulso intrínseco. Como o movente deve estar em contato com a coisa que recebe o movimento, assim é necessário também que o amado esteja intrinsecamente no amante.
2 — Como Deus se conhece a Si mesmo, é necessário que também se ame a Si mesmo, pois o bem conhecido pela inteligência é amável por si mesmo. Por conseguinte, Deus está em Si mesmo como o amado no amante.


CAPÍTULO XLVI

O AMOR EM DEUS CHAMA-SE ESPÍRITO

Vimos como a coisa conhecida está no ser inteligente, e como a coisa amada está no amante. Consideremos, agora, nestes dois casos, como uma coisa pode estar de modos diversos em outra.
1 — Como a intelecção faz-se por uma certa assimilação da inteligência com a coisa conhecida, é necessário que a coisa conhecida esteja na inteligência por uma imagem sua.
2 — O ato de amar realiza-se segundo um certo movimento do amante para o amado, pois o amado atrai para si o amante. Por isso, o ato de amar não se efetua por semelhança com a coisa amada, como a intelecção se realiza pela semelhança com a coisa conhecida, mas todo ele consiste na atração que o amado exerce sobre o amante.
3 — A origem de semelhança com o princípio realiza-se pela geração unívoca, segundo a qual, nos seres vivos, chama-se ao princípio generativo de pai, e, ao ser gerado, de filho. Também nela, o primeiro movimento faz-se por semelhança específica.
Como, no Ser divino, a maneira segundo a qual Deus está em Deus denominamos Filho, que é o Verbo de Deus, assim também a maneira segundo a qual o amado está no amante expressamos pelo nome Espírito, que é o Amor de Deus. Eis porque, conforme a Regra Católica, devemos crer no Espírito.


CAPÍTULO XLVII

O ESPÍRITO QUE ESTÁ EM DEUS É SANTO

Devemos agora considerar que como o bem que é amado é motivado pela finalidade, do mesmo modo o movimento da vontade torna-se bom ou mau, de acordo com o fim que o atrai.
1 — É necessário, portanto, que o amor pelo qual o Sumo Bem, que é Deus, é amado tenha uma eminente bondade. Esta bondade eminente é designada pelo nome de santidade,quer se tome o termo santo na acepção de puro, como na língua grega, porque em Deus há puríssima bondade imune de qualquer defeito, quer se tome na acepção de firme, como na língua latina, porque Deus é a bondade imutável. Por esse motivo, tudo que tem relação com Deus é também chamado de santo, como um templo, os seus vasos sagrados e todos os objetos destinados ao culto divino.
2 — Por conseguinte, o Espírito que nos infunde o amor pelo qual Deus se ama é convenientemente chamado de Espírito Santo.
Eis porque a Regra da Fé Católica denomina Santo ao supradito Espírito, ao dizer: “Creio no Espírito Santo”.


CAPÍTULO XLVIII

O AMOU EM DEUS NÃO É UM ACIDENTE

Como a intelecção divina identifica-se com o seu Ser, assim também, o seu amor. Deus não se ama a Si mesmo mediante algo acrescido à sua essência, mas por ela mesma. Como Deus se ama estando em Si mesmo como o amado no amante, Deus, como amado, não está em Deus como amante de modo acidental. As coisas que amamos estão acidentalmente em nós, enquanto as amamos. Mas Deus está em Si mesmo como o amado no amante, substancialmente.
O Espírito Santo, pelo qual nos é infundido o amor divino, não é algo acidental em Deus, mas realidade subsistente na essência divina, como o Pai e o Filho o são.
Por isso, a Regra da Fé Católica no-Lo apresenta juntamente adorado e glorificado com o Pai e o Filho.

CAPÍTULO XLIX

O ESPÍRITO SANTO PROCEDE
DO PAI E DO FILHO

1 — Deve-se também considerar que a intelecção procede da virtude intelectiva da inteligência. Quando a inteligência conhece em ato, nela está aquilo que por ela é conhecido. Assim, aquilo que faz o objeto da intelecção estar na inteligência procede da virtude intelectiva, e esse é justamente o seu verbo, como vimos acima.
2 — De modo semelhante, também aquilo que é amado está no amante, enquanto este ama em ato. Todavia, aquilo que faz alguma coisa ser amada em ato procede da virtude amativa do amante e do bem amável, enquanto este é conhecido pela intelecção. Por conseguinte, aquilo que faz o amado estar no amante procede de duas coisas: do princípio amativo e do objeto inteligível apreendido pela inteligência, que nela é o verbo concebido do objeto amável.
Como em Deus, enquanto se conhece pela inteligência e se ama, o Verbo é Filho; e Aquele de Quem é Verbo é Pai do Verbo, como se conclui do que foi dito — é necessário que o Espírito Santo, que é amor enquanto Deus está em Si mesmo como o amado no amante, proceda do Pai e do Filho. Por isso é dito no Símbolo: “Que procede do Pai e do Filho”.


CAPÍTULO L

EM DEUS, A TRINDADE DE PESSOAS
NÃO REPUGNA À UNIDADE DE ESSÊNCIA

1 — De tudo que foi dito, pode-se concluir que se há na divindade algo de ternário, embora isso não repugne à unidade e à simplicidade da essência, deve-se também conceder estar Deus como existente em Sua natureza, como conhecido por Si mesmo e como amado por Si mesmo.
2 — Contudo, realiza-se isso, de modo diferente, em Deus e em nós.
No homem, este na sua natureza é uma substância, mas a sua intelecção e o seu amor não se identificam com a substância. Ora, o homem, considerado na sua natureza, é uma determinada realidade subsistente. Considerado, porém, enquanto está na própria intelecção, ele não é uma realidade subsistente, mas uma certa imagem da coisa subsistente. Também não é, se considerado em si mesmo, como o amado no amante.
Conseqüentemente, pode-se considerar no homem três coisas: o homem existindo na sua natureza; o homem existindo na sua inteligência; e o homem existindo no seu amor. Todavia, essas três coisas não formam uma só coisa, porque a sua intelecção não é a sua existência, nem o seu amor. Assim, das três, uma só é realidade subsistente, qual seja, o homem existindo na sua natureza.
Em Deus, porém, identificam-se o ser, a intelecção e o amor. Conseqüentemente, Deus existindo no seu ser natural, Deus existindo na sua inteligência e Deus existindo no seu amor formam uma só coisa, mas em cada uma dessas maneiras de existir Ele é subsistente.
3 — Os latinos denominavam pessoa às naturezas intelectuais subsistentes; os gregos, porém, hipóstases. Eis porque aqueles falam de três pessoas em Deus; estes, de três hipóstases. São elas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo[29].

CAPÍTULO LI

PARECE REPUGNAR A RAZÃO
A TRINDADE DE PESSOAS EM DEUS

Surge, do que foi dito, uma aparente contradição.
1 — Pondo-se em Deus algo de ternário, e como o número acarreta divisão, dever-se-ia também pôr em Deus alguma diferenciação, segundo a qual as três realidades diferenciar-se-iam. Ora, se assim fosse, não haveria em Deus a suma simplicidade.
2 — Realmente, se três coisas convém em algo, e em algo se diferenciam, há aí, necessariamente, composição. Mas tal composição é conflitante com o que foi dito acima.
3 — Além disso, se necessariamente há um só Deus, como vimos acima, e se nenhuma natureza una origina-se, ou procede, de si mesma, é impossível existir Deus gerado e Deus procedente. É falso, portanto, atribuírem-se a Deus os nomes de Pai, de Filho e de Espírito Santo procedente.


CAPÍTULO LII

SOLUÇÃO DA DIFICULDADE PELA
DISTINÇÃO DAS PESSOAS,
CONFORME A RELAÇÃO

Para vencer essa dificuldade, devemos considerar que, variando conforme a diversidade da natureza, há muitas maneiras pelas quais as coisas originam-se ou procedem de outras.
1 — Nas coisas sem vida, que não se movem por si mesmas, mas que intrinsecamente são sempre movidas, uma origina-se de outra por uma espécie de mutação, ou alteração, provocada por um agente externo, como o fogo é gerado pelo fogo; o ar, pelo ar.
2 — Os seres vivos, porém, cuja propriedade é moverem-se por si mesmos, cada um é gerado em outro, no genitor: como nos animais, o feto; e, nas plantas, o fruto. Contudo, neles as diversas maneiras de procedência variam conforme as diferentes potências.
Há potências cujas operações não se estendem senão aos corpos, pois elas são materiais, como as da alma vegetativa, isto é, as potências nutritiva, aumentativa e generativa. Nesses tipos de potências da alma só pode originar-se algo de corpóreo, com distinção corpórea, mas, de certo modo, ficando ligado ao ser do qual procede.
Há outras potências da alma, cujas operações não transcendem à ordem corpórea, mas se estendem às semelhanças dos corpos que são recebidos sem matéria, como acontece com todas as potências da alma sensitiva. O sentido é, conforme o Filósofo, uma potência receptiva das espécies sem matéria. Essas potências, apesar de receberem, de certo modo, materialmente, as formas das coisas, contudo não nas recebem sem um órgão corpóreo. Se é por intermédio deles que há, nessas potências da alma, uma processão, o ser que procede não é algo de corpóreo, nem distinto por diferença corpórea, nem corporalmente unido a elas, mas, de certo modo, distinto incorporal e imaterialmente, sem, contudo, dispensar o auxílio de um órgão corpóreo. É assim que na imaginação dos animais procedem e formam-se as imagens das coisas, coisas que, todavia, não estão na imaginação como um corpo dentro de outro corpo, mas, de certo modo, espiritualmente. Por esse motivo, Santo Agostinho qualificou a visão imaginativa como sendo sentido espiritual.
3 — Ora, se nas operações da imaginação algo procede incorporalmente, com muito mais razão isso acontece na parte intelectiva da alma, que para as suas operações nem necessita de um órgão corpóreo, pois essas operações são inteiramente imateriais. O verbo formado pela operação da inteligência, dela procede; mas nela, que o pronuncia, existe, não como contido localmente, nem como corporalmente dela separado, mas conforme a ordem de origem. O mesmo acontece com a processão existente na operação da vontade, enquanto a coisa amada existe no amante, como vimos acima.
4 — Embora as potências intelectivas e sensitivas sejam em si mais nobres que as potências da alma vegetativa, todavia, no homem e nos outros animais, nada procede das potências sensitivas e imaginativas que subsistam na natureza da mesma espécie, só podendo isso acontecer em processão que se efetue em operação da alma vegetativa.
Isso acontece porque, em todos os compostos de matéria e forma, a multiplicação dos indivíduos da mesma espécie efetua-se conforme a divisão da matéria. Assim é que, no homem e nos outros animais, que são compostos de matéria e forma, os indivíduos da mesma espécie multiplicam-se por divisão corpórea resultante de processão conforme a operação da alma vegetativa, e não conforme operação de outras potências.
5 — Nas coisas, porém, que não são compostas de matéria e forma, não se pode encontrar senão distinção formal. Mas se a forma, segundo a qual é feita a distinção, é a própria substância da coisa, tal distinção é feita pelas próprias coisas subsistentes. O mesmo não acontece se a forma não se identifica com a substância.
É comum a toda inteligência, como se esclareceu acima, e necessário que aquilo que é concebido na inteligência como concepção dela mesma, isto é, a idéia enquanto contida na intelecção, dela se distinga, da qual, de certo modo, procede pelo ato do conhecimento. Distingue-se o conceito da inteligência de que procede, justamente pelo modo de proceder dela.
6 — Convém também que, por motivo semelhante, a afeição do amante, pela qual o amado nela está, proceda do amante enquanto este ama em ato.
7 — A inteligência divina, porém, porque a sua intelecção se identifica com o seu próprio ser, tem como próprio que a concepção que nela se efetua, isto é, a idéia contida na intelecção, identifique-se com a própria substância. Coisa semelhante acontece com a afeição de Deus, enquanto amante.
Resta, portanto, que a idéia formada na inteligência divina, que é o seu Verbo, não se distinga substancialmente de quem o produz: a distinção é feita enquanto um procede do outro.
8 — Coisa semelhante acontece em Deus, com a afeição de amor, enquanto Ele ama, e isto pertence ao Espírito Santo.
9 — Do exposto, pode-se claramente concluir que nada impede que o Verbo de Deus, que é seu Filho, seja um com o Pai, segundo a substância, mas que do Pai se distinga, segundo a relação de processão, como foi dito. Fica também demonstrado que, em Deus, uma coisa não nasce nem procede de si mesma, porque é enquanto procede do Pai que o Filho distingue-se d’Ele. A mesma razão vale para o Espírito Santo, enquanto comparado com o Pai e o Filho[30].


CAPÍTULO LIII

AS RELAÇÕES PELAS QUAIS O PAI,
O FILHO E O ESPÍRITO SANTO
DISTINGUEM-SE ENTRE SI
SÃO RELAÇÕES REAIS E
NÃO RELAÇÕES DE RAZÃO

As relações, pelas quais o Pai, o Filho e o Espírito Santo distinguem-se entre si são relações reais, e não relações só de razão.
São relações só de razão aquelas que não correspondem a algo existente na natureza das coisas, mas só a algo que somente existe em nosso entendimento. Eis porque, quando atribuímos direita ou esquerda a uma pedra, não nos referimos a alguma relação real, mas a uma relação só de razão, porque esses atributos não correspondem a qualidades reais existentes na pedra, mas às que existem somente no entendimento de quem apreendia a pedra como tendo esquerda, porque estava à esquerda de algum animal. Todavia, tais atribuições — esquerda ou direita — feitas a um animal são relações reais, porque derivam de algumas qualidades existentes em determinadas partes dos animais. Com efeito, como as relações supramencionadas, segundo as quais o Pai, o Filho e o Espírito Santo distinguem-se entre si, existem realmente em Deus, elas são relações reais, e não relações de razão.


CAPÍTULO LIV

AS RELAÇÕES NÃO INEREM
A DEUS ACIDENTALMENTE

Também não é possível que as relações existentes em Deus sejam acidentalmente inerentes, já porque as operações das quais elas, diretamente, derivam são a própria substância de Deus, já porque, como foi demonstrado acima, nenhum acidente pode haver em Deus. Por conseguinte, se as preditas relações existem em Deus, não podem elas, n’Ele, estar inerentes como acidente, mas devem ser subsistentes. Não é necessário explicar aqui porque algo, que nas outras coisas é acidente, possa existir em Deus substancialmente, porque já o demonstramos acima.


CAPÍTULO LV

PELAS PREDITAS RELAÇÕES EFETUA-SE,
EM DEUS, A DISTINÇÃO DE PESSOAS

Porque no Ser divino a distinção é feita por relações que não são acidente, mas por relações subsistentes, e como a distinção das coisas subsistentes em qualquer natureza intelectual é uma distinção pessoal, necessariamente efetua-se em Deus, pelas preditas relações, também distinção pessoal. Por conseguinte, o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três pessoas, ou três hipóstases, porque o termo hipóstase significa algo subsistente e completo[31].

CAPÍTULO LVI

É IMPOSSÍVEL HAVER EM DEUS
MAIS QUE TRÊS PESSOAS

1 — É impossível haver em Deus mais que três pessoas, porque é impossível que as pessoas divinas se multipliquem por divisão de substância. Elas somente podem se multiplicar por relação de determinada processão; não de qualquer processão, mas somente daquela cujos termos não estejam fora da divindade. Se o termo estiver fora da divindade, ele não é de natureza divina, e, como tal, não pode ser pessoa (ou hipóstase) divina. Uma processão cujo termo não seja extrínseco à divindade não pode realizar-se em Deus senão por via de operação da inteligência, como procede o Verbo, ou por via de operação da vontade, como procede o Amor, como já foi esclarecido acima. Por isso, não pode haver algo em Deus como pessoa divina procedente, a não ser como Verbo ao qual denominamos Filho, ou, como Amor, ao qual denominamos Espírito Santo.
2 — Ademais, como Deus conhece todas as coisas por uma só intuição da sua inteligência, e, de modo semelhante, ama todas as coisas por um só ato da sua vontade, é impossível existir em Deus muitos verbos e muitos amores. Se o Filho procede como verbo, e o Espírito Santo procede como amor, é impossível haver em Deus muitos filhos e muitos espírito santos.
3 — Ademais, perfeito é aquilo que nada do seu ser tem fora de si. Por conseguinte, não é simplesmente perfeito aquilo que admite fora de si alguma coisa que pertença ao seu gênero. Por essa razão, os seres que são simplesmente perfeitos na sua natureza não se multiplicam numericamente, como Deus, o sol, a lua, etc.[32] É conveniente que o Filho e o Espírito Santo sejam simplesmente perfeitos, pois cada um d’Eles é Deus, como já foi esclarecido. Por esse motivo, é impossível haver muitos filhos e muitos espíritos santos.
4 — Ademais, é impossível multiplicar-se numericamente aquilo que faz a coisa subsistente ser ela mesma e distinta das outras coisas, porque o que é individualizado não pode ser predicado de muitas coisas. Ora, é pela Filiação que o Filho é esta pessoa divina em si, subsistente e distinta das outras, assim como é pelos princípios de individuação que Sócrates é determinada pessoa humana. Como os princípios de individuação, que fazem Sócrates ser este homem, não podem convir senão a um só, assim também a Filiação, em Deus, não pode convir senão a um. Coisa análoga acontece na relação entre o Pai e o Espírito. É impossível, portanto, haver em Deus muitos pais, muitos filhos e muitos espíritos santos.
5 — Finalmente, as coisas que têm unidade de forma não se multiplicam numericamente senão em muitos sujeitos. Ora, em Deus não há matéria. Logo, o que em Deus tem unidade de espécie e de forma não pode multiplicar-se numericamente, como as têm a Paternidade, a Filiação e a Processão do Espírito Santo. Por isso é impossível haver em Deus muitos pais, muitos filhos e muitos espíritos santos.


CAPÍTULO LVII

SOBRE AS PROPRIEDADES (OU NOÇÕES)
EM DEUS. QUANTAS HÁ NO PAI

Existindo, pois, em Deus, distinção numérica de pessoas, como vimos, é necessário que haja também um certo número de propriedades que diferenciem as pessoas entre si.
Ao Pai devem ser atribuídas três propriedades.
Uma, pela qual o Pai distingue-se só do Filho: denomina-se esta Paternidade.
Outra, pela qual distingue-se das outras duas Pessoas, isto é, do Filho e do Espírito Santo: denomina-se esta Inascibilidade, porque o Pai, enquanto Deus, não procede de outra pessoa.
A terceira propriedade é aquela pela qual o Pai, juntamente com o Filho, distingue-se do Espírito Santo: denominase Comum Expiração. Não se deve, porém, atribuir ao Pai uma outra propriedade pela qual Ele se diferenciaria só do Espírito Santo, porque o Pai e o Filho são um único princípio do Espírito Santo, como acima ficou esclarecido.


CAPÍTULO LVIII

QUANTAS E QUAIS SÃO AS PROPRIEDADES
DO FILHO E DO ESPÍRITO SANTO

1 — Necessariamente convém ao Filho duas propriedades.
A primeira, pela qual distingue-se do Pai, e se chama Filiação.
Outra, pela qual, juntamente com o Pai, distingue-se do Espírito Santo, e se chamaComum Expiração.
Não se deve atribuir ao Filho uma propriedade que o distinguisse somente do Espírito Santo, porque, como foi dito, o Pai e o Filho são um único princípio do Espírito Santo. Do mesmo modo, não se poderia pensar numa outra propriedade pela qual o Espírito Santo, juntamente com o Filho, se distinguisse do Pai. O Pai, porém, distingue-se das outras duas Pessoas por uma só propriedade, a Inascibilidade, enquanto não procede de outra pessoa. Mas porque o Filho e o Espírito Santo não procedem por uma só processão, pois procedem por mais de uma, distinguem-se do Pai por duas propriedades.
2 — O Espírito Santo tem uma só propriedade, pela qual se distingue do Pai e do Filho, que se chama Processão. Do que foi dito acima, conclui-se que não se pode atribuir ao Espírito Santo outra propriedade pela qual se distinguisse só do Pai, ou, só do Filho.
3 — Cinco são, portanto, as propriedades atribuídas às pessoas: Paternidade, Inascibilidade, Comum Expiração, Filiação e Processão.


CAPÍTULO LIX

POR QUE ESSAS PROPRIEDADES
CHAMAM-SE NOÇÕES

1 — Essas cinco propriedades podem ser chamadas de noções das pessoas, enquanto por elas a distinção destas faz-se conhecida. Todavia, se fosse levado em consideração o sentido exato do termo propriedade, que significa aquilo que convém a uma só coisa, essas cinco propriedades não deveriam ser chamadas de propriedades, já que a Comum Expiração convém ao Pai e ao Filho juntos. Levando-se, porém, em consideração que algo pode ser dito próprio de diversos que juntamente se opõem a uma terceira coisa, como o termo bípede é atribuído ao homem e às aves em oposição aos quadrúpedes, nada impede que também a Comum Expiração seja chamada de propriedade.
2 — Porque em Deus as pessoas distinguem-se somente pelas relações, e porque é pelas noções que a distinção das pessoas divinas nos é conhecida, faz-se também necessário que as noções, de certo modo, pertençam às relações. Mas somente quatro delas são verdadeiras relações, segundo as quais as pessoas divinas referem-se entre si. A quinta noção, isto é, a Inascibilidade, pertence à relação como negação de relação, já que as negações se reduzem ao gênero das afirmações, e as privações, ao gênero dos hábitos: como não-homem reduz-se ao gênero de homem, e não-branco, ao gênero de brancura.
3 — Deve-se também saber que das relações pelas quais as pessoas divinas referem-se umas às outras, algumas têm nome, como Paternidade e Filiação, nomes que significam por si mesmos relação; e que algumas não têm nome, isto é, aquelas pelas quais o Pai e o Filho referem-se ao Espírito Santo, e o Espírito Santo, a ambos. Nesse caso, para designar as relações, usamos os nomes das origens dessas relações.
4 — É evidente que os termos comum expiração processão significam origem, mas não significam as relações decorrentes da origem. Isso pode ser mais bem observado nas relações do Pai e do Filho: a Geração significa a origem ativa, da qual decorre a relação de paternidade; a Natividade significa a origem passiva do Filho, da qual decorre a relação de filiação. Do mesmo modo, da Comum Expiração deve surgir alguma relação, bem como da Processão. Mas como essas relações não receberam um nome, atribuímos a elas os nomes dos atos que lhes dão origem.


CAPÍTULO LX

EMBORA HAJA EM DEUS QUATRO RELAÇÕES
SUBSISTENTES, TODAVIA NÃO HÁ SENÃO
TRÊS PESSOAS

Devemos também saber que, apesar de as relações subsistentes serem as próprias Pessoas divinas, como se disse acima, as Pessoas não podem ser quatro ou cinco, conforme o número das relações.
1 — O número, com efeito, sempre determina alguma distinção. Assim como a unidade é indivisível, e, de fato, é um todo sem partes, também assim a pluralidade é em si divisível e formada de partes. É necessário, para que haja pluralidade de pessoas, que a razão distintiva das relações venha da oposição, pois é a oposição que lhes dá a formalidade distintiva.
Se, agora, com atenção, observarmos as relações acima mencionadas, a Paternidade e a Filiação mantêm entre si oposição relativa, e, por esse motivo, não podem subsistir no mesmo suposto. É também por esse motivo que a Paternidade e a Filiação são duas pessoas subsistentes. A Inascibilidade, porém, opõe-se somente à Filiação, mas não se opõe à Paternidade. Podem, portanto, a Paternidade e a Inascibilidade coexistir na mesma Pessoa.
A expiração também não se opõe nem à Paternidade nem à Filiação nem à Inascibilidade. Nada impede, portanto, que a comum expiração convenha tanto à Pessoa do Pai quanto à do Filho. Fica assim esclarecido por que a comum expiração não é uma Pessoa subsistente distinta da Pessoa do Pai e da Pessoa do Filho.
A Processão, porém, tem oposição relativa à comum expiração. Conseqüentemente, convindo toda expiração ao Pai e ao Filho, torna-se necessário que a Processão seja uma Pessoa distinta da Pessoa do Pai e da Pessoa do Filho.
Está, pois, esclarecido, por que não se pede dizer que haja em Deus qüintuplicação de pessoas, mas que Deus é Trino, devido ao número de Pessoas, não obstante haver o número de cinco noções. Nem todas as cinco noções, com efeito, são realidades subsistentes, mas as três Pessoas o são.
2 — Desenvolvamos mais o nosso raciocínio. Se bem que muitas noções ou propriedades convenham a uma só pessoa, uma só delas é constitutiva da pessoa. A pessoa, por conseguinte, não é constituída pelas propriedades todas, mas somente a propriedade relativa manifesta-se como pessoa subsistente. Se as diversas propriedades fossem tomadas como subsistindo por si mesmas, haveria em cada Pessoa muitas pessoas, e não uma só. Devemos, pois, saber que das muitas noções ou propriedades que convém a uma só Pessoa, aquela que precede às outras por ordem de natureza seja a que constitui pessoa. As outras são conhecidas como inerentes à pessoa já constituída.
É evidente, portanto, que a Inascibilidade não pode ser a primeira noção do Pai, de modo a constituir a sua Pessoa, já porque por uma negação nada pode ser constituído, já porque, naturalmente, a afirmação precede à negação.
A Comum Expiração pressupõe, por ordem de natureza, a Paternidade e a Filiação, como também a processão de Amor pressupõe a processão do Verbo. Por isso, nem a Comum Expiração pode ser a primeira noção, quer do Pai, quer do Filho.
Nada mais resta senão aceitar que a primeira noção do Pai é a Paternidade, que a primeira noção do Filho é a Filiação, e, a do Espírito Santo, somente a Processão. Assim, pois, as três noções constitutivas das pessoas são a Paternidade a Filiação e a Processão.
3 — Essas noções devem ser também propriedades das respectivas Pessoas, porque aquilo que constitui uma pessoa só a ela deve convir, e porque os princípios da individuação não podem convir a muitas coisas. Essas três noções, por conseguinte, são denominadaspropriedades pessoais, como se constituíssem as pessoas, pela maneira que expusemos. As outras são denominadas propriedades ou noções de pessoas; não são denominadas propriedades ou noções pessoais, porque não constituem as Pessoas.


CAPÍTULO LXI

REMOVIDAS PELA INTELIGÊNCIA AS
PROPRIEDADES PESSOAIS, NÃO
PERMANECEM AS HIPÓSTASES

Desenvolvendo-se mais o raciocínio, verifica-se que, removidas pela inteligência as propriedades pessoais, também não se salvam mais as hipóstases. Na decomposição, que é feita pela inteligência, removida a forma, permanece o sujeito da forma: assim, removida a cor branca, permanece a superfície; removida a superfície, permanece a substância; removida desta a forma substancial, permanece a matéria-prima. Quando, porém, se remove o próprio sujeito, nada mais permanece. Ora, as propriedades pessoais são as próprias pessoas subsistentes. Elas não constituem as pessoas como se fossem acrescidas aos supostos já existentes, porque nada que é afirmado de Deus, de um modo absoluto, pode ser realmente distinto, mas somente o que é afirmado de modo relativo. Conclui-se, pois, que, removidas as propriedades pessoais pela inteligência, não mais permaneçam as hipóstases distintas. Mas, removidas as noções não-pessoais, permanecem as hipóstases distintas.


CAPÍTULO LXII

COMO A ESSÊNCIA DIVINA PERMANECE TENDO SIDO REMOVIDAS PELA INTELIGÊNCIA AS PROPRIEDADES PESSOAIS

Se alguém, agora, perguntasse como poderia permanecer a essência divina após a remoção, pela inteligência, das propriedades pessoais, responderíamos que ela, de um certo modo, permanece. Mas de outro, não.
1 — A decomposição feita pela inteligência é dupla. A primeira, que se processa abstraindo-se a forma da matéria, numa seqüência na qual se parte do que é mais formal para o que é mais material, pois é o primeiro sujeito que permanece por último. A última forma, porém, é removida antes das outras. A segunda, é feita abstraindo-se o universal do particular, e segue uma ordem de certo modo contrária à anterior, porque primeiramente são removidas as condições materiais individualizantes, para ficar-se, após, com o que é comum.
2 — Sabemos que em Deus não há matéria, nem forma; não há universal, nem particular. Mas há o que é comum e o que é próprio, e o suposto à natureza comum. Conforme a nossa maneira de compreender, as Pessoas divinas referem-se à essência divina como supostos próprios à natureza comum. Considerando-se, pois, a primeira decomposição feita pela inteligência, removidas as propriedades pessoais, que são as próprias Pessoas subsistentes, não permanece a natureza comum. Considerando-se a segunda, a natureza comum permanece.


CAPÍTULO LXIII

DA ORDEM DOS ATOS PESSOAIS
COM RELAÇÃO ÀS PROPRIEDADES
PESSOAIS

1 - Pelo exposto, fica esclarecida também a ordem lógica existente entre os atos pessoais e as propriedades pessoais.
As propriedades pessoais identificam-se com as pessoas subsistentes. Sabemos que uma pessoa subsistente, de qualquer natureza, age comunicando a sua natureza em virtude dessa própria natureza: a forma de uma espécie é o princípio generativo de um ser semelhante a si, conforme essa mesma espécie. Ora, como os atos pessoais referem-se à comunicação da natureza divina, convém que cada Pessoa divina subsistente comunique a natureza comum em virtude da própria natureza.
2 — Dessa afirmação, pode-se tirar duas conclusões:
Primeira: que a potência generativa no Pai é a própria natureza divina, já que a potência ativa é o princípio de ação.
Segunda: que o ato pessoal, quer dizer, a geração, conforme é conhecida pela nossa razão, pressupõe a natureza divina e a propriedade pessoal do Pai, que se identifica com a hipóstase do Pai, embora a propriedade, enquanto se identifica com a relação, suceda ao ato. Por isso, se considerarmos no Pai o que seja a pessoa subsistente, podemos dizer: porque é Pai, gera.
Se, porém, considerarmos o que seja, no Pai, relação, podemos inverter a frase e dizer: porque gera, é Pai.


CAPÍTULO LXIV

A GERAÇÃO CONSIDERADA NO PAI E NO FILHO

1 — Deve-se saber que a ordem da geração, enquanto vem da Paternidade e enquanto refere-se à geração passiva, ou seja, à natividade relacionada com a Filiação, tem considerações diversas.
A geração ativa, com efeito, pressupõe, por ordem de natureza, a pessoa do que gera; mas a geração passiva, ou natividade, precede, por ordem de natureza, a pessoa gerada, porque a pessoa gerada existe pelo nascimento. Por conseguinte, a geração ativa, conforme é conhecida pela razão, pressupõe a Paternidade enquanto é constitutiva da pessoa do Pai. Mas a natividade não pressupõe a Filiação enquanto é constitutiva da pessoa do Filho. Entretanto, conforme é conhecida pela razão, precede-a, quer enquanto é constitutiva da pessoa, quer enquanto é relação.
2 — Assim também se deve entender as coisas referentes à processão do Espírito Santo.


CAPÍTULO LXV

A DISTINÇÃO ENTRE OS ATOS NOCIONAIS
E AS PESSOAS É DISTINÇÃO DE RAZÃO

Não desejávamos afirmar, ao estabelecermos a ordem existente entre os atos nocionais e as propriedades pessoais, que os atos nocionais diferem realmente das propriedades pessoais. Pelo contrário, há entre eles distinção só de razão.
Assim como a intelecção em Deus é o mesmo Deus enquanto é ser inteligente, assim também a geração no Pai é o próprio Pai enquanto é princípio de geração, não obstante haver diversidade de significação. Do mesmo modo, apesar de haver em uma só pessoa muitos atos nocionais, nelas não há composição alguma. As duas relações pertinentes à pessoa do Pai, isto é, a Paternidade e a Comum Expiração, identificam-se realmente enquanto pertencem à pessoa do Pai. Assim como a Paternidade identifica-se com o Pai, do mesmo modo a Comum Expiração, enquanto pertence ao Pai, identifica-se com Ele. Mas a Comum Expiração, enquanto está na pessoa do Filho, identifica-se com o Filho. A distinção é feita, pois, pela referência aos diversos termos da relação: o Pai refere-se ao Filho pela Paternidade, e, pela Comum Expiração, ao Espírito Santo. O Filho, semelhantemente, refere-se ao Pai pela Filiação, e, ao Espírito Santo, pela Comum Expiração.


CAPÍTULO LXVI

AS PROPRIEDADES RELATIVAS
IDENTIFICAM-SE REALMENTE
COM A ESSÊNCIA DIVINA

Convém que as propriedades relativas sejam a mesma essência divina.
1 — As propriedades relativas identificam-se com as pessoas subsistentes. Ora, em Deus, uma pessoa subsistente outra coisa não pode ser que a essência divina, e a essência divina é, como vimos, o próprio Deus. Conclui-se, portanto, que as propriedades relativas identificam-se realmente com a essência divina.
2 — Ademais, o que está em alguma coisa que não é a sua essência, nela existe acidentalmente. Como já foi visto, em Deus não há acidente. Logo, as propriedades relativas não se distinguem realmente da essência divina.



CAPÍTULO LXVII

AS RELAÇÕES NÃO SÃO EXTERIORFS.
COMO AFIRMARAM OS PORRETANOS

Não se pode dizer que as preditas propriedades não estejam nas pessoas, nem que, nelas, juntem-se exteriormente, como afirmaram os porretanos[33].
1 — É necessário que as relações reais estejam no sujeito da relação. Verifica-se isso claramente nas criaturas, pois nelas as relações reais existem como acidente de substâncias. Ora, aquelas relações que estabelecem distinção entre as Pessoas são relações reais, como verificamos acima. Logo, convém que estejam também nas Pessoas divinas, mas não como acidente. Não como acidente, porque outras realidades que nas criaturas são acidente, ao serem transferidas para Deus perdem a natureza de acidente (como a sabedoria, a justiça, etc.), como acima vimos.
2 — Além disso, em Deus não pode haver distinção, senão pelas relações, pois tudo que é dito de modo absoluto, em Deus é comum. Se, portanto, as relações fossem exteriores às Pessoas, nenhuma distinção se salvaria entre elas. Por conseguinte, as propriedades relativas estão nas Pessoas, identificam-se com Elas e também com a essência divina, como a bondade e a sabedoria são ditas existirem em Deus, identificando-se com Deus e com a essência divina.



III — OS EFEITOS DA AÇÃO DIVINA


CAPÍTULO LXVIII

DO SER

Tendo considerado até aqui o que pertence à unidade da essência divina e à Trindade das Pessoas, devemos agora considerar os efeitos da ação divina. O primeiro efeito de Deus nas coisas é o próprio ser, pressuposto por todos os outros efeitos, e sobre o qual eles se fundamentam.
1 — É necessário, com efeito, que tudo o que de algum modo existe receba de Deus o ser. Em todas as coisas ordenadas verifica-se, em geral, que aquilo que é primeiro e perfeitíssimo em determinada ordem é causa das coisas restantes e existentes nesta ordem. Assim é que o fogo, no qual se concentra o máximo de calor, é causa do calor dos outros corpos quentes. Sabemos, também, que sempre as coisas imperfeitas originam-se de outras perfeitas, como o sêmen e as sementes, respectivamente, dos animais e das plantas. Ora, acima já foi demonstrado que Deus é o Ser Primeiro e perfeitíssimo. Logo, convém que Ele seja a causa primeira da existência de todas as coisas que têm ser.
2 — Ademais, tudo que tem algo por participação reduz-se àquilo que possui este algo por essência, como a seu princípio e à sua causa. Desse modo, o ferro em brasa participa do calor daquilo que é fogo por essência. Ora, como acima foi demonstrado, Deus é o próprio ser. Por conseguinte, o ser convém a Ele por essência. Mas, a todas as outras coisas, por participação.
3 — Convém notar também que a essência das coisas não é o seu ser, porque o ser absoluto e por si mesmo subsistente não pode ser senão um só, como vimos acima. Logo, convém que Deus seja a causa da existência de todas as coisas que são.


CAPÍTULO LXIX

DEUS, PARA CRIAR, NÃO PRESSUPÕE
A MATÉRIA

Vê-se, daí, que Deus, para criar as coisas, não necessita de matéria alguma para nela operar.
1 — Nenhum agente preexige para a sua ação o que produz por essa mesma ação, mas necessita daquilo que não pode ser produzido por ela. O construtor, com efeito, necessita de pedras e de madeira para poder edificar, porque não as pode produzir. Contudo, pela sua atividade, ele constrói a casa, mas não a pressupõe. É necessário que a matéria seja produzida pela ação de Deus, pois, conforme já o demonstramos, tudo que de algum modo existe, tem Deus como causa da sua
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existência. Daí concluir-se que Deus não pressupõe a matéria para agir.
2 — Ademais, o ato naturalmente é anterior à potência. Por isso, a razão de princípio convém a ele em primeiro lugar. Além disso, a razão de princípio convém posteriormente a todo princípio que, ao criar, pressuponha um outro princípio. Ora, como Deus, enquanto ato puro, é princípio de todas as coisas, e a matéria é princípio enquanto ser que está em potência, é impossível que Deus, ao operar, pressuponha a matéria.
3 — Ademais, quanto mais uma causa é universal, tanto mais o seu efeito é universal. As causas particulares limitam os efeitos das causas universais por alguma determinação, determinação esta que se compara ao efeito universal, como o ato à potência. Toda causa, por conseguinte, que faz existir algo que pressuponha um ato que o complete, justamente porque está em potência para este ato, é causa particular com relação a uma causa mais universal. Ora, tal causalidade não convém a Deus, porque, como vimos acima, Ele é causa primeira. Portanto, a matéria não pode preexistir à sua ação. Logo, pertence a Deus produzir do nada as coisas no ser, denominando-se esse ato criação. Eis porque a Fé Católica confessa “Criador”.


CAPÍTULO LXX

SÓ A DEUS CONVÉM CRIAR

Conclui-se também, do que se disse, que só Deus pode ser criador.
1 — Criar convém àquela causa que não pressupõe outra mais universal, como se viu. Ora, isso só a Deus compete. Por conseguinte, somente Ele é criador.
2 — Ademais, quanto mais a potência está remota do ato, tanto maior virtude necessita para ser reduzida a ato. Qualquer que seja, porém, a distância da potência para o ato, haverá cada vez maior distância se a própria potência for subtraída. Por essa razão, criar alguma coisa do nada exige uma virtude infinita. Mas como só Deus possui uma virtude infinita, porque a sua essência é infinita, somente Deus pode criar.


CAPÍTULO LXXI

A DIVERSIDADE DE MATÉRIA NÃO É
CAUSA DA DIVERSIDADE DAS COISAS

Torna-se claro, pelo que foi dito, que a causa da diversidade existente nas coisas não é a diversidade de matéria.
1 — Foi demonstrado que a matéria não é pressuposta pela ação divina, que dá existência às coisas. A causa da diversidade das coisas não provém da matéria, senão enquanto a matéria é exigida para a produção delas, já que é de acordo com a diversidade de matéria que são introduzidas as diversas formas. Portanto, a causa da diversidade existente nas coisas produzidas por Deus não é a matéria.
2 — Ademais, as coisas, enquanto têm ser, têm também pluralidade e unidade, pois cada coisa enquanto é ser é também una, mas não têm o ser da forma devido à matéria. Ao contrário, têm mais o ser da matéria devido às formas, pois o ato é melhor que a potência, porque aquilo pelo que uma coisa existe convém que seja melhor que ela. Por isso, as formas não são diversas para que convenham a diversas matérias, mas as matérias são diversas para que convenham às diversas formas.


CAPÍTULO LXXII

COMO DEUS PRODUZIU COISAS
DIVERSAS, E COMO FOI CAUSADA
A PLURALIDADE DAS COISAS

1 — Se as coisas referem-se à unidade e à multiplicidade como se referem ao ser, e, como vimos acima, se todo o ser das coisas depende de Deus, é necessário que a pluralidade das coisas tenha a Deus como causa. Devemos agora considerar como isso seja verdadeiro.
2 — É necessário que todo agente produza algo semelhante a si, na medida do possível. Não seria, porém, possível que as coisas produzidas por Deus repetissem a bondade divina naquela mesma simplicidade em que ela existe em Deus. Foi, portanto, conveniente que aquilo que em Deus é uno e simples fosse representado nas coisas causadas por vários e dessemelhantes modos. É, pois, necessário que haja diversidade nas coisas produzidas por Deus, para que essa diversidade imitasse a perfeição divina, de acordo com o modo de cada coisa.
3 — Ademais, tudo que é causado é finito, pois, como foi demonstrado, só a essência de Deus é infinita. Sabemos também que o que é finito torna-se maior pela adição de outra coisa. Foi, portanto, melhor que existisse diversidade nas coisas criadas, havendo, conseqüentemente, também maior número de bens, que apenas existisse um só gênero de coisas produzidas por Deus. É, com efeito, próprio das coisas ótimas produzir coisas ótimas. Foi, por conseguinte, conveniente a Deus que fosse produzida a diversidade nas coisas.


CAPÍTULO LXXIII

DA DIVERSIDADE DAS COISAS
EM GRAU E ORDEM

Foi conveniente que a diversidade das coisas tivesse sido instituída com certa ordem, de modo que umas fossem melhores que outras.
Pertence à abundância da bondade divina, enquanto possível, levar a semelhança da sua bondade às coisas causadas: Deus não é bom só em Si, mas, excedendo em bondade a todas, as coisas, leva-as também à bondade. Para que a semelhança, das coisas criadas, com Deus fosse mais perfeita, foi necessário que umas fossem constituídas melhores que as outras, e que umas agissem nas outras, para levá-las à perfeição. A primeira diversidade das coisas, consiste, principalmente, na diversidade das formas. A diversidade formal realiza-se por contrariedade. O gênero, com efeito, divide-se pelas diversas espécies de diferença contrária. Ora, onde há contrariedade, é necessário que também exista ordem, porque sempre um dos contrários é mais perfeito que o outro. Foi, portanto, necessário que a diversidade das coisas fosse instituída em certa ordem, de modo que umas fossem melhores que as outras.


CAPÍTULO LXXIV

COMO NAS COISAS CRIADAS UMAS TÊM MAIS
DE POTÊNCIA E MENOS DE ATO; OUTRAS,
MENOS DE POTÊNCIA E MAIS DE ATO

Porque as coisas são mais nobres e mais perfeitas enquanto se aproximam da semelhança divina, e sendo Deus ato puro, sem mistura de potência, é necessário que aquelas que são supremas entre os seres estejam mais em ato e tenham menos de potência. Como isso se realiza, vejamos agora.
1 — Sendo Deus eterno e imutável no seu ser, são as ínfimas entre as coisas, justamente porque têm menos de semelhança com Deus, aquelas que estão sujeitas à geração e à corrupção, isto é, que existem durante algum tempo e durante outro tempo não existem. E porque o ser segue a forma das coisas, elas existem quando possuem forma e deixam de existir quando privadas da forma. Deve, portanto, existir nelas algo que em um tempo possa receber a forma e, em outro tempo, possa ser privado dela: a esse algo denominamos matéria. Por conseguinte, as coisas ínfimas entre as outras necessariamente se compõem de matéria e forma. As coisas supremas entre os seres criados aproximam-se ao máximo da semelhança divina, e nelas não há potência para serem e não serem, mas recebem de Deus, por criação, o ser para sempre duradouro. Como, porém, a matéria, pela sua própria natureza é potência para o ser que segue a forma, aqueles seres em que não há potência para serem e não serem não se compõem de matéria e forma, mas há neles somente forma subsistente, no próprio ser, ser que receberam de Deus. É necessário, por isso, que essas substâncias sejam incorpóreas e incorruptíveis.
2 — Ademais, nada pode ser corrompido senão quando se faz a separação da forma, porque o ser segue a forma. Aquelas substâncias, porque são formas subsistentes, não podem ser separadas das próprias formas. Logo, não podem perder a existência. Logo, são incorruptíveis.
3 — Há, todavia, entre as duas espécies de substância acima vistas, algumas intermediárias, nas quais, apesar de não haver potência para o ser e para o não-ser, há potência para o lugar. Tais são os corpos celestes, que não estão sujeitos à geração e corrupção[34], porque neles não há contrariedade, mas são mutáveis com relação ao lugar. Em alguns deles encontram-se, pois, matéria e movimento. Por conseguinte, esses corpos possuem matéria que não está sujeita à geração e à corrupção, mas somente à mudança local.


CAPÍTULO LXXV

ALGUMAS SUBSTÂNCIAS, TAMBÉM
CHAMADAS DE IMATERIAIS,
SÃO INTELIGENTES

É necessário que as substâncias, das quais acima falamos e consideramos imateriais, sejam de natureza inteligente.
1 — Uma coisa é dita inteligente enquanto está imune de matéria. Pode-se perceber isso na própria natureza da intelecção, pois nela identificam-se o que é inteligível em ato e o que é conhecido em ato por ela. É claro que uma coisa é inteligível em ato porque está separada da matéria, já que não podemos ter conhecimento intelectual das coisas materiais, a não ser fazendo abstração da matéria. Convém estender o mesmo raciocínio aos seres inteligentes: as coisas imateriais são também inteligentes.
2 — Ademais, as substâncias imateriais são as primeiras e supremas na ordem do ser, porque o ato é naturalmente anterior à potência. A inteligência, com efeito, apresenta-se como sendo superior a todas as coisas, pois a inteligência usa os corpos como seus instrumentos. Convém, portanto, que as substâncias imateriais sejam também de natureza inteligente.
3 — Ademais, as coisas, quanto mais inferiores são na escala dos seres, tanto mais se aproximam de escala divina. Vemos, no ínfimo grau, umas coisas participarem da semelhança divina só quanto ao ser, como os seres inanimados; outras, quanto ao ser e ao viver, como as plantas; outras, quanto também ao sentir, como os animais; e, finalmente, à suprema maneira e à mais conveniente participação da semelhança divina, pela inteligência. Por conseguinte, as criaturas inteligentes são as supremas.
E, porque entre as demais criaturas são as que mais se aproximam da semelhança divina, diz-se que foram constituídas à imagem de Deus.


CAPÍTULO LXXVI

COMO AS SUBSTÂNCIAS INTELIGENTES
SÃO DOTADAS DE LIVRE ARBÍTRIO

Os raciocínios seguintes mostrarão como as substâncias de natureza inteligente são dotadas de livre arbítrio.
1 — A inteligência não opera ou apetece algo sem o juízo, o que não acontece com os seres inanimados. O juízo elaborado pela inteligência também não surge de um ímpeto natural, como acontece no conhecimento dos animais, mas se origina de uma apreensão feita pela própria inteligência. Tal se dá porque a inteligência conhece também o fim, os meios que levam ao fim, e a relação mútua de fins e meios. Por isso ela pode ser a causa do próprio juízo, pelo qual apetece algo, e faz algo em vista do fim. Ora, denominamos livre o que é causa de si. A inteligência apetece algo e age por juízo livre, ao qual convém a liberdade de arbítrio. As supremas substâncias, portanto, são dotadas de liberdade de arbítrio.
2 — Ademais, é livre o que não está obrigado a fazer algo determinado. Ora, o apetite da substância inteligente não está obrigado a desejar um só bem determinado, porque segue a apreensão do bem universal, que é feita pela inteligência. Logo, o apetite da substância inteligente é livre, justamente porque se refere de modo comum a qualquer bem.


CAPÍTULO LXXVII

NAS SUBSTÂNCIAS INTELIGENTES HÁ
ORDEM E GRAUS, CONFORME
A PERFEIÇÃO DA NATUREZA

Como as substâncias inteligentes antepõem-se às outras substâncias por grau, é também necessário que elas mesmas se diferenciem entre si por graus diversos. Não podem elas diferenciar-se entre si por diferença material, porque carecem de matéria. Eis porque, se nelas se encontra pluralidade, é necessário que esta seja causada pela distinção formal, que estabelece a diversidade das espécies. Nas coisas em que se encontra diversidade de espécie, deve-se também considerar nelas grau e ordem. Isso porque, como a espécie dos números varia pela adição ou pela subtração da unidade, assim também as coisas naturais diferenciam-se especificamente pela adição ou pela subtração das diferenças. Assim é que, o que é somente animado diferencia-se do que é animado e sensível, e o que é somente animado e sensível diferencia-se do que é animado, sensível e racional. Logo, é necessário que as supracitadas substâncias imateriais distingam-se de acordo com os graus e com a ordem.



CAPÍTULO LXXVIII

DA ESPÉCIE DE GRAU E ORDEM QUE
HÁ NAS COISAS INTELIGENTES,
CONFORME A INTELECÇÃO

Porque o modo da operação segue o modo da substância da coisa, é necessário que as substâncias superiores sejam dotadas de intelecção mais nobre, possuidoras que são de formas inteligíveis e de virtudes mais universais e mais unificadas; e que as substâncias inferiores tenham percepção intelectual mais fraca, e formas mais diversificadas e menos universais.


CAPÍTULO LXXIX

A SUBSTÂNCIA INTELIGENTE DO HOMEM
É A ÍNFIMA DAS SUBSTÂNCIAS INTELIGENTES

Como na ordem dos seres não se deve proceder até o infinito, deve-se encontrar nas substâncias inteligentes uma que, ao máximo possível, se aproxime de Deus. É também necessário que haja uma ínfima, que se aproxime, ao máximo possível, da matéria corpórea. Essas asserções ficam evidenciadas pelos raciocínios seguintes.
1 — A intelecção pertence ao homem, e ela o coloca acima de todos os animais. Éevidente que só o homem considera as coisas de modo universal, bem como as relações existentes entre as coisas e as coisas imateriais, pois só por ato da inteligência isso tudo é conhecido. É impossível também que a intelecção seja ato de um órgão corpóreo, como a visão o é pelos olhos. É ainda necessário que o instrumento de uma potência cognoscitiva não possua em si o gênero das coisas que, por ele, são conhecidas, como, por exemplo, a pupila que, por sua natureza, não possui as cores: as cores são conhecidas por meio das espécies das cores que são recebidas na pupila. Por conseguinte, nesses casos, o recipiente deve estar vazio daquilo que vai receber. A inteligência, com efeito, conhece todas as naturezas sensíveis. Ora, se as conhecesse por meio de um órgão corpóreo, este órgão deveria estar vazio de toda natureza sensível. Mas isso é impossível.
2 — Ademais, toda potência cognoscitiva conhece colocando-se na mesma ordem de ser em que a espécie do objeto conhecido está, pois essa espécie é para ela o princípio do conhecimento.
A inteligência conhece imaterialmente as coisas, mesmo aquelas que são, por natureza, materiais, abstraindo as formas universais das condições individualizantes. É, por conseguinte, impossível que a espécie de uma coisa conhecida esteja materialmente na inteligência. Logo, não é recebida em órgão corpóreo, porque todo órgão corpóreo é material.
3 — Ademais, podemos apresentar de modo mais claro o argumento anterior. Um sentido fica debilitado e até obstruído ao receber objetos sensíveis que excedam de muito à sua capacidade, como, por exemplo, a audição, por efeito de um grande som; a vista, pelos objetos muito luminosos. Isso acontece porque desfaz-se o funcionamento normal do órgão.
A inteligência, pelo contrário, fica mais fortalecida pela excelência dos objetos inteligíveis, porque a potência que conhece os objetos inteligíveis mais perfeitos pode conhecer, não menos que os sentidos, mas muito mais, as coisas menos perfeitas. Ora, aquilo que por si mesmo pode operar sem o corpo, também a sua substância não depende de corpo. Todas as virtudes e formas que por si mesmas não podem subsistir sem o corpo, também não podem operar sem ele. O calor, por exemplo, não aquece a si mesmo, mas ao corpo em que atua. Logo, a substância incorpórea, pela qual o homem tem a intelecção, é ínfima no gênero das substâncias inteligentes; é a que mais se aproxima da matéria.



CAPÍTULO LXXX

DA DIFERENÇA ENTRE A INTELIGÊNCIA
E OS MODOS DE INTELECÇÃO

1 — O ser inteligível é superior ao ser sensível, como a inteligência é superior aos sentidos. Os seres inferiores imitam, nos limites da capacidade de cada um, os seres superiores. Assim é que os corpos sujeitos à geração e à corrupção imitam, de algum modo, a circulação dos corpos celestes. Logo, é necessário que as coisas sensíveis, de certo modo, assemelhem-se às inteligíveis. É ainda devido a essa semelhança existente nas coisas sensíveis que podemos, de algum modo, chegar ao conhecimento das coisas inteligíveis. Há nas coisas sensíveis algo que é quase supremo: o ato, que é a forma. Há algo que é ínfimo, e que está só em potência: a matéria. Há, por fim, algo intermediário: o composto de matéria e forma.
2 — Consideremos, agora, essas três coisas na ordem do ser inteligível. O supremo inteligível, Deus, é ato puro. Das substâncias inteligentes, umas existem tendo algo de ato e de potência, quanto ao ser inteligível. Mas a ínfima das substâncias inteligentes, pela qual o homem tem a intelecção, está quase só em potência quanto ao ser inteligível.
3 — Isso é também confirmado ao considerarmos que o homem, inicialmente, no ato do conhecimento, é uma inteligência apenas em potência, e, só depois, lentamente, é que essa potência é reduzida a ato. Por esse motivo é que aquilo pelo qual o homem conhece intelectualmente chama-se intelecto possível[35].


CAPÍTULO LXXXI

NO HOMEM, O INTELECTO POSSÍVEL RECEBE
DAS COISAS SENSÍVEIS AS FORMAS INTELIGÍVEIS

1 — Porque, como foi dito, quanto mais elevada é uma substância inteligente, tanto mais tem formas inteligíveis mais universais, disso se conclui que o intelecto humano, que denominamos possível, tem, entre as substâncias inteligentes, formas menos universais, já que recebe das coisas sensíveis as formas inteligíveis.
2 — Esclareçamos isso por outro argumento. Porque o intelecto possível humano encontra-se, entre todas as substâncias inteligentes, mais próximo da matéria corpórea, é necessário que as suas formas inteligíveis sejam também as que mais se aproximem das coisas materiais.


CAPÍTULO LXXXII

O HOMEM NECESSITA DAS POTÊNCIAS
SENSITIVAS PARA A INTELECÇÃO

Deve-se considerar, porém, que as formas, nas coisas corpóreas, são individualizadas e possuem ser material, mas que na inteligência são universais e imateriais.
1 — própria natureza do conhecimento intelectual o comprova: sabemos que a nossa inteligência conhece as coisas universalmente e imaterialmente. É necessário, também, que a natureza da nossa intelecção corresponda às espécies inteligíveis por meio das quais a nossa inteligência conhece. Como não se pode ir de um extremo a outro a não ser passando por coisas intermediárias, é também necessário que as formas venham das coisas corpóreas para a inteligência, passando por intermediários. Esses intermediários são as potências sensitivas que recebem as formas das coisas materiais, sem a matéria: nos olhos há, por exemplo, a espécie (a forma) da pedra, mas não a sua matéria. Todavia, as formas das coisas são recebidas nas potências sensitivas de modo individualizado, pois por essas potências não conhecemos senão coisas individuais.
2 — Foi, portanto, necessário que o homem, para poder conhecer pela inteligência, fosse também dotado de sentidos. O sinal disto está em que, quanto falta um dos sentidos, falta também o conhecimento das coisas sensíveis correspondentes a ele, como, por exemplo, o cego de nascença, que não pode conhecer as cores.


CAPÍTULO LXXXIII

É NECESSÁRIO HAVER O INTELECTO AGENTE

Daí fica esclarecido que o conhecimento das coisas, na nossa inteligência, não é causado pela participação ou pela influência de algumas formas inteligíveis em ato e por si mesmas subsistentes, como ensinaram os platônicos e outros que os seguiram, mas que a inteligência adquire aquele conhecimento nas coisas sensíveis por meio dos sentidos.
1 — Como, porém, nas potências sensitivas as formas das coisas são particulares, como vimos, elas não são inteligíveis em ato, mas só em potência. A inteligência, com efeito, não conhece senão universais. Ora, o que está em potência não é reduzido a ato senão por algum agente. Deve, por conseguinte, existir algum agente que reduza a ato inteligível as espécies existentes nas potências sensitivas. Isso o intelecto possível não pode fazer, pois ele está mais em potência que em ato para as espécies inteligíveis. Logo, é necessário a colocação de outro intelecto que reduza as espécies inteligíveis em potência a espécies inteligíveis em ato, como a luz torna as cores em potência visíveis em ato. Denominamos esta potênciaintelecto agente. Não haveria, por conseguinte, necessidade de sua existência se as formas das coisas fossem inteligíveis em ato por si mesmas, como ensinaram os platônicos.
2 — Para a nossa intelecção é necessária, em primeiro lugar, o intelecto possível, que é receptivo das espécies inteligíveis; em segundo lugar, o intelecto agente, que as torna inteligíveis em ato.
Quando o intelecto possível já está aperfeiçoado pelas espécies inteligíveis, denomina-se intelecto em hábito, pois já possui de tal modo as espécies inteligíveis que as pode usar quando desejar, e está também de certo modo em situação intermediária, entre a pura potência e o ato completo. Quando, finalmente, tem em ato completo as preditas espécies, chama-se intelecto em ato, pois o intelecto possível conhece em ato as coisas quando a espécie da coisa torna-se a sua forma. Por essa razão, diz-se que o intelecto em ato é a coisa conhecida em ato.


CAPÍTULO LXXXIV

A INTELIGÊNCIA HUMANA É INCORRUPTÍVEL

Conclui-se, necessariamente, das premissas postas, que a inteligência, potência que faz o homem conhecer as coisas, é incorruptível.
1 — Cada coisa opera conforme o seu modo de ser. Ora, a inteligência possui uma operação de tal natureza que nela nada há de corpóreo, como vimos acima. Por isso, ela opera por si mesma. Conseqüentemente, ela subsiste no seu próprio ser. Vimos também, anteriormente, que as substâncias intelectuais são incorruptíveis. Logo, a inteligência, potência pela qual o homem tem intelecção, é incorruptível.
2 — Ademais, o sujeito próprio da geração e da corrupção é a matéria. Por conseguinte, quanto mais uma coisa é menos susceptível de corrupção, tanto mais ela se distancia da matéria. Assim, as coisas compostas de matéria e forma são por si mesmas corruptíveis. As formas das substâncias materiais são corruptíveis acidentalmente, isto é, não por si mesmas. As formas imateriais, que ultrapassam as exigências da matéria, são absolutamente incorruptíveis. Ora, a inteligência humana, por sua própria natureza, eleva-se totalmente acima da matéria, conforme se verifica na sua operação, pois não se pode ter intelecção de alguma coisa senão enquanto a separamos da matéria. Logo, a inteligência é, por sua própria natureza, incorruptível.
3 — Ademais, não há corrupção sem contrariedade, pois nada se corrompe a não ser pelo que lhe é contrário. Por isso, como nos corpos celestes não há contrariedades, eles são incorruptíveis. A contrariedade está fora da natureza da inteligência. Aquelas coisas que são entre si contrárias, na inteligência não o são, porque nela o motivo inteligível dos contrários é uno, já que ela por um dos contrários conhece o outro. Logo, é impossível que a inteligência seja corruptível.


CAPÍTULO LXXXV

A UNIDADE DO INTELECTO POSSÍVEL

Talvez alguém possa dizer que a inteligência é incorruptível, mas que é uma só para todos os homens, e que, por isso, após a corrupção de todos os homens, não permanece senão uma só inteligência[36].

 (TRÊS ARGUMENTOS AVERROÍSTAS)

De muitas maneiras pode-se considerar como a inteligência é uma só em todos os homens.
1 — Em primeiro lugar, sob o aspecto da espécie inteligível. Se a minha inteligência for outra que a tua, haverá uma espécie inteligível em mim e outra em ti. Conseqüentemente, uma será a inteligência pela qual eu conheço, e, outra, pela qual tu conheces. Será, também, a intenção intelectual multiplicada conforme o número dos indivíduos. Assim sendo, ela não será universal, mas individual. Isso nos leva a deduzir que ela não é conhecida em ato, mas só em potência, porque as intenções individuais são inteligíveis em potência, não em ato.
2 — Além disso, como já foi demonstrado acima, a inteligência é uma substância subsistente no seu ser, e as substâncias intelectuais não são muitas numericamente numa só espécie, como também já foi demonstrado. Conclui-se, então, daí, que se numericamente uma é a inteligência em mim, e outra em ti, será também esta especificamente outra. Conseqüentemente, eu e tu não somos de mesma espécie.
3 — Ademais, como todos os indivíduos têm de comum a natureza da espécie, é necessário colocar-se algo fora da natureza da espécie que faça a distinção dos indivíduos entre si. Se, com efeito, em todos os homens há unidade específica da inteligência, e pluralidade numérica, dever-se-á colocar algo que faça uma inteligência diferenciar-se numericamente da outra. Esse elemento diferencial não pode ser da substância da inteligência, pois a inteligência não se compõe de matéria e forma. Daí se conclui que toda diferença que se coloque com relação à substância da inteligência é diferença formal e diversificadora da espécie. Logo, a inteligência de um homem não pode ser numericamente outra que a inteligência do outro homem, senão devido à diversidade dos corpos. Logo, corrompidos os diversos corpos, é claro que não permanecem muitas inteligências, mas, uma só.

(REFUTAÇÃO GERAL DOS ARGUMENTOS SUPRA)

4 — É evidente que todos esses argumentos são impossíveis.
Para manifestar essa impossibilidade, deve-se proceder como se procede contra os que negam os princípios: pondo-se algum que é absolutamente inegável. Consideremos, pois, que este homem (chamemo-lo de Sócrates ou de Platão) conheça pela sua inteligência. Isso o nosso adversário não pode negar, a não ser que ele também conheça pela sua própria inteligência que está negando. Assim, ele, negando, concede aquilo que nega, pois só pode afirmar ou negar algo quem tenha intelecção.
Se, portanto, aquele homem conhece pela inteligência, é necessário que aquilo pelo que ele formalmente conhece seja a sua forma, porque nada age senão enquanto está em ato. Aquilo, por meio de que um agente atua, é o seu ato: como o calor é o ato de um corpo quente enquanto aquece outro. A inteligência, pois, pela qual o homem tem a intelecção, é a forma deste homem, e, pelo mesmo motivo, lhe pertence. É impossível, ainda, que a forma única numericamente pertença também numericamente a diversos sujeitos, porque as coisas numericamente diversas não têm o mesmo ser, já que cada coisa tem o ser pela forma.
É, por conseguinte, impossível que a potência cognoscitiva, pela qual o homem tem a intelecção, seja uma só em todos os homens.


(INSTÂNCIA DOS AVERROÍSTAS)

5 — Alguns, aproveitando-se da dificuldade desse argumento, esforçam-se por encontrar um caminho para dele fugir.
Dizem, então, que o intelecto possível, do qual acima tratamos, recebe as espécies inteligíveis e é por elas reduzido a ato. As espécies inteligíveis existem de certo modo nos fantasmas. A espécie inteligível, com efeito, está no intelecto possível e nos fantasmas, na medida em que o (único) intelecto possível continua em nós a sua ação, e se une a nós para que, por meio dele, possamos ter a intelecção.

(REFUTAÇÃO DO ARGUMENTO DA INSTÂNCIA)

6 — Mas esse raciocínio é totalmente vazio.
Em primeiro lugar, porque a espécie inteligível, enquanto está nos fantasmas, é pela inteligência conhecida em potência, e enquanto está no intelecto possível é conhecida em ato. Não pode ela, do mesmo modo que está no intelecto possível, estar nos fantasmas. Nele ela está desligada dos fantasmas pela abstração. Logo, nenhuma união poderá haver do único intelecto possível conosco.
7 — Em segundo lugar, supondo-se que houvesse alguma união, contudo, isso não seria suficiente para que tivéssemos conhecimento intelectivo. Não se pode, com efeito, concluir da existência da espécie inteligível de alguma coisa na inteligência, que essa coisa se conheça a si mesma. Mas, sim, que é conhecida: a pedra, porque tem a sua espécie na inteligência, não quer dizer que tenha intelecção.
8 — Também não se pode concluir que, porque as espécies dos nossos fantasmas estão no intelecto possível, nós sejamos inteligentes; mas é mais concludente afirmar que somos nós o objeto da intelecção, ou, melhor ainda, que são os nossos fantasmas esse objeto. Torna-se isso ainda mais evidente se considerarmos a comparação que é feita por Aristóteles (De Anima, 3), ao dizer que a inteligência refere-se aos fantasmas como a vista às cores. É evidente que, devido a estarem na vista as espécies das cores que estão na parede, não se pode concluir que a parede veja, mas sim que ela é vista. Assim também nem eu posso concluir que, devido a estarem no meu intelecto possível as espécies dos fantasmas, somos inteligentes, mas sim que somos objeto da intelecção.
9 — Em terceiro lugar, se é pela inteligência que se faz formalmente a intelecção, convém que essa intelecção seja um ato de inteligência próprio deste homem que o produz, assim como um mesmo aquecimento pertence ao fogo e ao calor. Se, por conseguinte, é numericamente única a mesma inteligência em mim e em ti, necessariamente se deve disso concluir que, com relação ao mesmo objeto inteligível, haverá um único ato de conhecimento meu e teu, enquanto apreendemos simultânea e identicamente o mesmo objeto. Mas isso é impossível, porque a operação de agentes diversos não pode ser numericamente única e idêntica.
É, pois, impossível que exista uma só inteligência para todos os homens.
10 — De tudo isso que até agora afirmamos, conclui-se que, se a inteligência é incorruptível, como acima foi demonstrado, permanecem tantas inteligências quantos são os homens, quando os corpos são destruídos.

(REFUTAÇÃO DOS TRÊS ARGUMENTOS INICIAIS)

11 — As objeções que se podem apresentar contra essa afirmação, podem ser facilmente destruídas (as quais, aliás, coincidem com as três razões apresentadas pelo adversário, no início deste capítulo).
A primeira razão é falha, por muitos motivos.
Primeiro: concedemos que o conhecimento intelectual é o mesmo para todos os homens. Mas quando me refiro aqui a um só conhecimento intelectual, refiro-me ao objeto do conhecimento intelectual: esse objeto não é a espécie inteligível da coisa, mas a própria essência da coisa. Todos os conhecimentos intelectuais não são só conhecimento das espécies inteligíveis, mas da natureza das coisas. Assim também o objeto da vista não são as espécies das cores que estão nos olhos, mas a própria cor. Embora as inteligências multipliquem-se de acordo com o número dos homens, contudo não há senão um só objeto conhecido por todos, como só há um objeto colorido visto por quantos para ele olham.
12 — Segundo: não é necessário que todas as coisas individualizadas sejam conhecidas só em potência, e não, em ato. Isso é verdadeiro, sem dúvida, para as coisas que são individualizadas pela matéria. Mas é necessário que aquilo que é conhecido em ato pela inteligência seja imaterial. Portanto, as substâncias imateriais, embora algumas existam individualizadas por si mesmas, são conhecidas em ato pela inteligência. Por conseguinte, as espécies inteligíveis que são imateriais, apesar de estarem em número diverso em mim e em ti, por isso não deixam de ser inteligíveis em ato. Mas a inteligência, conhecendo o seu objeto por meio delas, reflete sobre si mesma e conhece, assim, o seu próprio conhecimento e a espécie pela qual conhece as coisas.
13 — Deve-se considerar também que se é posta uma só inteligência para todos os homens, a dificuldade será a mesma, porque ainda permanece uma multidão de inteligências, já que há muitas inteligências separadas. Concluir-se-á, seguindo a argumentação do adversário, que as espécies inteligíveis são, em número, diversas e, por conseguinte, individualizadas. Ora, sendo individualizadas, não podem ser conhecidas em ato primo.
14 — É claro, também, que, se a primeira razão apresentada para defesa da unidade de inteligências fosse verdadeira, necessariamente não haveria simplesmente pluralidade de inteligência, e, não só, das inteligências dos homens. Mas como isso é falso, torna-se evidente que a razão apresentada não conclui necessariamente.
15 — A segunda razão é facilmente destruída, se se considera a diferença que existe entre a alma intelectual e as substâncias separadas. A alma intelectiva, devido à sua natureza específica, une-se, como forma, a um determinado corpo. Por conseguinte, o corpo entra na definição de alma, e, por esse motivo, já que elas relacionam-se com os diversos corpos, elas são numericamente diversificadas. Ora, tal não pode acontecer com as substâncias separadas.
16 — A terceira razão, continuando-se essa argumentação, é também desfeita. A alma intelectiva, por natureza específica, não tem o corpo como parte de si mesma, mas aptidão para unir-se a ele. Resulta daí que é essa aptidão que a faz unir-se a diversos corpos, que a diversifica numericamente. Ora, essa aptidão permanece nas almas, embora os corpos sejam destruídos. Elas conservam a aptidão de se unirem aos diversos corpos, mesmo não estando em ato unidas a eles.


CAPÍTULO LXXXVI

O INTELECTO AGENTE NÃO É UM SÓ
PARA TODOS OS HOMENS

Houve alguns que, embora admitissem a multiplicação nos homens do intelecto possível, afirmaram, contudo, a existência de um só intelecto agente para todos. Essa opinião, bem que mais tolerável que a vista anteriormente, pode também ser refutada por argumentos semelhantes.
1 — A ação do intelecto possível consiste em receber as espécies inteligíveis que devem ser conhecidas e em conhecê-las. A ação do intelecto agente, porém, consiste em reduzir as espécies inteligíveis a ato, e abstraí-las (da imaginação). Ambas essas ações convém a cada homem, pois este homem (chamemo-lo de Sócrates ou Platão) recebe as espécies inteligíveis, abstrai-as, e as conhece, depois de abstraídas. Convém, portanto, que tanto o intelecto agente quanto o intelecto possível unam-se a este homem como forma, e que, conseqüentemente, os dois multipliquem-se numericamente de acordo com o número dos homens.
2 — Ademais, convém que o agente e o paciente sejam mutuamente proporcionados, como, por exemplo, a matéria e a forma, pois a matéria é reduzida a ato pelo agente (que é a forma). Conseqüentemente, a toda potência passiva corresponde uma potência ativa do mesmo gênero: o ato e a potência são do mesmo gênero. Ora, o intelecto ativo refere-se ao intelecto possível, como a potência ativa, à passiva, e isso se conclui do que foi dito acima. Logo, ambos devem ser do mesmo gênero.
3 — Ademais, como o intelecto possível não está, quanto ao ser, separado de nós, mas a nós unido como forma, e como se multiplica conforme a pluralidade dos homens, como foi visto acima, é também necessário que o intelecto agente seja algo reunido a nós formalmente e, assim, seja multiplicado conforme o número dos homens.


CAPÍTULO LXXXVII

O INTELECTO POSSÍVEL E O
INTELECTO AGENTE RADICAM-SE
NA ESSÊNCIA DA ALMA

Como o intelecto agente e o intelecto possível estão unidos formalmente a nós, é necessário também afirmar que eles estão unidos na própria essência da alma.
1 — Aquilo que se une formalmente a alguma coisa, une-se a ela como forma substancial, ou como forma acidental.
Por conseguinte, se o intelecto possível e o intelecto agente unem-se ao homem como forma substancial, e como em uma só coisa não há senão uma só forma substancial, é necessário afirmar que o intelecto possível e o intelecto agente unem-se a uma só essência de forma, que é a alma.
2 — Se, porém, unem-se ao homem como forma acidental, é evidente que nenhum dos dois pode ser acidente do corpo. Partindo-se do fato de que as suas operações realizam-se independentes de órgão corpóreo, como acima foi dito, deve-se concluir que cada um deles é acidente da alma. Ora, não há em cada homem senão uma alma. Logo, é necessário que o intelecto agente e o intelecto possível unam-se na mesma essência da alma.
3 — Ademais, a ação própria de alguma espécie vem dos princípios que seguem a forma que dá a espécie. Ora, a intelecção é a operação própria da espécie humana. Logo, é necessário que o intelecto agente e o intelecto possível, que são os princípios dessa operação, como se viu, sigam a alma humana, da qual o homem recebe a sua espécie.
4 — Não a seguem, porém, como se dela se originassem no corpo, porque, como se viu, a supracitada operação efetua-se sem órgão corpóreo. Ora, como o que possui a potência possui também a ação, conclui-se que o intelecto agente e o intelecto possível unem-se na mesma essência da alma.


CAPÍTULO LXXXVIII

COMO ESSAS DUAS POTÊNCIAS UNEM-SE
NA PRÓPRIA ESSÊNCIA DA ALMA

1 — Deve-se agora considerar como isso possa ser, porque parece surgir aqui uma dificuldade. O intelecto possível está em potência para todas as coisas inteligíveis. O intelecto agente faz que as coisas inteligíveis em potência tornem-se inteligíveis em ato, e, assim, convém que ele com elas se relacione como ato e potência. Ora, não parece possível que uma coisa esteja em potência e em ato, com relação a si mesma. Eis porque torna-se impossível que em uma só substância da alma unam-se o intelecto possível e o intelecto agente.
2 — Essa dúvida pode ser facilmente desfeita se considerarmos como o intelecto possível está em potência para as coisas inteligíveis, e como o intelecto agente as reduz a ato. O intelecto possível está em potência para as coisas inteligíveis, enquanto não possui na sua natureza alguma determinada forma das coisas sensíveis, como também a pupila está em potência para todas as coisas.
Enquanto os fantasmas, abstraídos das coisas sensíveis, são semelhanças de determinadas coisas sensíveis, eles referem-se ao intelecto possível como o ato à potência. Mas os fantasmas estão também em potência para algo que a alma intelectiva tem em ato, isto é, o ser abstraído das condições materiais. Quanto a isso, portanto, a alma refere-se a si mesma como o ato à potência. Não é, com efeito, inconveniente que uma coisa esteja com relação a si mesma em ato e em potência, mas segundo considerações diversas. Por isso, os corpos materiais exercem influxo ativo e passivo entre si, porque cada um desses influxos está em potência com relação ao outro. Logo, não é inconveniente que a mesma alma intelectiva esteja em potência com relação a todas as coisas inteligíveis, enquanto nela se considera só o intelecto possível, e a elas se refira como ato, enquanto nela se considera só o intelecto agente.
3 — Evidencia-se isso, ainda mais, considerando-se como a inteligência torna a espécie inteligível em ato. O intelecto agente não as faz inteligíveis em ato como se elas dele emanassem para o intelecto possível. Se assim fosse, não teríamos, para a intelecção, necessidade dos fantasmas e dos sentidos. Ele as faz inteligíveis em ato, abstraindo-as dos fantasmas, como a luz faz, de certo modo, as cores em ato. Não como se tivesse as coisas dentro de si, mas enquanto lhes dá, de certo modo, a visibilidade.
Por conseguinte, deve-se considerar que há uma só alma intelectiva, que carece, sim, da natureza das coisas sensíveis, mas as pode receber de modo inteligível, e que torna os fantasmas inteligíveis em ato, abstraindo-se deles as espécies inteligíveis.
Por isso, a potência, pela qual é ela receptiva das espécies inteligíveis, chama-se intelecto possível; e a potência, pela qual ela abstrai as espécies inteligíveis dos fantasmas, chama-se intelecto agente. Este é quase uma certa luz intelectual, da qual a alma intelectiva participa, à semelhança das substâncias intelectuais superiores.


CAPÍTULO LXXXIX

TODAS AS POTÊNCIAS RADICAM-SE
NA ESSÊNCIA DA ALMA

Não somente o intelecto agente e o intelecto possível unem-se na mesma essência da alma, mas também todas as outras potências, que são os princípios das operações da alma. Todas essas potências, pois, radicam-se de certo modo na alma.
Algumas, como as potências da parte vegetativa e sensitiva, estão na alma como no seu princípio.
No órgão corpóreo conjunto, porém, como no seu sujeito, porque as suas operações são realizadas no órgão corpóreo. A quem pertence a ação, com efeito, pertence também a potência.
Outras, estão na alma como em seu princípio e em seu sujeito, porque as suas operações são da alma sem o órgão corpóreo, e essas são as potências da parte intelectiva.
Como não é possível haver muitas almas no homem, necessariamente todas as potências da alma pertencem a uma só alma.


CAPÍTULO XC

HÁ UMA SÓ ALMA NO CORPO[37]

Os argumentos seguintes provam que é impossível haver muitas almas em um só corpo.
1 — É evidente que a alma é a forma substancial do ser que a possui, porque pela alma ele é constituído no gênero dos seres animados e em determinada espécie. É impossível haver muitas formas substanciais na mesma coisa.
A forma substancial diferencia-se da acidental, porque a forma substancial faz simplesmente a coisa ser algo determinado, enquanto a forma acidental é acrescentada à coisa já determinada, dando-lhe, porém, qualificação, quantificação e modo de ser.
Se muitas formas substanciais são de uma só e mesma coisa, ou é a primeira delas que faz a coisa ser algo determinado, ou não. Se não a faz ser algo determinado, não é forma substancial. Se, porém, faz a coisa ser algo determinado, todas as formas que lhe seguem acrescentam-se a uma coisa que já é algo determinado. Logo, nenhuma dessas formas que seguem a primeira será forma substancial, mas forma acidental. Se, por conseguinte, é evidentemente impossível que haja muitas formas substanciais de uma só e mesma coisa, também não é possível haver muitas almas em um só e mesmo ser.
2 — Torna-se isso igualmente claro se considerarmos que o homem é chamado de vivente, segundo possui alma vegetativa; de animal, segundo possui alma sensitiva; e, de homem, segundo possui alma intelectiva.
Se, entretanto, há no homem três almas, isto é, uma vegetativa, outra sensitiva e, a terceira, intelectiva, conclui-se daí que o homem, conforme uma alma, é posto no gênero e, conforme a outra, posto na espécie. Isso, porém, é impossível, porque, então, não resultaria do gênero e da diferença a unidade simples: resultaria uma unidade acidental, ou quase um agregado, como acontece, por exemplo, quando chamamos um homem de músico e de branco. Ora, nesse caso, não há um só ser simples. Conseqüentemente, deve haver no homem uma só alma.


CAPÍTULO XCI

RAZÕES QUE APARENTEMENTE PROVAM
QUE NO HOMEM HÁ MUITAS ALMAS

Surgem, porém, algumas dúvidas que parecem conduzir à negação da sentença anterior.
1 — Primeira. Baseia-se esta em que a diferença específica refere-se ao gênero, como a forma, à matéria.
Animal, com efeito, constitui o gênero do homem; racional, a sua diferença específica.
Ora, como o animal é um corpo animado por uma alma sensitiva, parece que esse corpo animado por alma sensitiva esteja em potência para a alma racional. Assim sendo, pois, a alma racional é outra que a alma sensitiva.
2 — Segunda. O intelecto não possui órgão corpóreo. Ora, as potências sensitivas e nutritivas possuem órgão corpóreo.
Torna-se, portanto, impossível que a mesma alma seja intelectiva e sensitiva, porque a mesma coisa não pode ser ao mesmo tempo separada e não-separada.
3 — Terceira. A alma racional é incorruptível, como vimos acima.
Não pode, por conseguinte, a mesma alma ser sensitiva, vegetativa e racional, porque é impossível que a mesma coisa seja, ao mesmo tempo, corruptível e incorruptível.
4 — Quarta. Na geração do homem, a vida aparece como efeito da alma vegetal, antes que o ser concebido manifeste-se como animal pelos sentidos e pelos movimentos, e, também, antes que possua a inteligência, manifesta-se como animal, pelos sentidos e pelos movimentos.
Ora, se houver uma só alma com maior amplitude pela qual o ser concebido viveprimeiramente a vida de planta, em segundo lugar, a vida de animal e, em terceiro lugar, a vida de homem, dever-se-ia concluir que as almas vegetativa, sensitiva e racional teriam a sua origem em um princípio exterior, e que a alma intelectiva surgiria de uma virtude existente no sêmen. Mas ambas as conclusões parecem ser inconvenientes, porque, como as operações das almas vegetativa e sensitiva não se realizam sem o corpo, nem os seus princípios podem ser incorpóreos, assim também, porque a operação da alma intelectiva realiza-se sem o corpo, é impossível que alguma virtude existente no corpo seja a sua causa.
Parece, portanto, impossível que a mesma alma seja vegetativa, sensitiva e racional.


CAPÍTULO XCII

REFUTAÇÃO DAS RAZÕES ANTERIORES

1 — Para desfazermos essas dúvidas, deve-se considerar que assim como nos números as espécies diversificam-se pelo acréscimo de uma à outra, assim também nas coisas materiais uma espécie excede a outra em perfeição. Tudo que de perfeição têm os corpos inanimados, têm-no também as plantas, e com algo a mais; continuando, na ordem dos seres, vê-se que o que possuem as plantas, possuem-no os animais, e com algo a mais; chega-se, por fim, ao homem, que é a mais perfeita das criaturas corpóreas.
Tudo que é imperfeito comporta-se, com relação ao mais perfeito, como matéria. Torna-se isso evidente observando-se as diversas ordens de seres: os elementos são a matéria dos corpos de partes semelhantes; continuando, os corpos constituídos por corpos semelhantes são materiais com relação aos animais.
2 — Verifica-se o mesmo se considerarmos, de per si, as diversas ordens de seres. Entre as coisas materiais, a que atinge um mais alto grau de perfeição, pela sua forma possui a perfeição que convém à natureza inferior, e, pela mesma forma, possui a perfeição que lhe é acrescida; assim também a planta, pela sua alma, é constituída como substância, como ser corpóreo e, finalmente, como ser animado. É pela sua alma que o animal possui tudo isso e é constituído como sensível. O homem, pela sua alma, além de tudo isso, possui uma natureza inteligente.
3 — Se, com efeito, em alguma coisa considera-se o que pertence a um grau de perfeição inferior, isso será material com relação àquilo que pertence ao grau de perfeição superior, isto é, se se considerar no animal o que tem a vida da planta, esse elemento é, de certo modo, material com relação àquilo que pertence à vida sensitiva, própria do animal.
O gênero, contudo, não é matéria, pois refere-se ao ser como o predicado ao sujeito; mas tem sua origem na matéria. A denominação, porém, de uma coisa por aquilo que nela é material, faz-se pelo seu gênero. Como o gênero é proveniente da matéria, assim também a diferença o é da forma.
Por esse motivo, um corpo como ser vivo, ou animado, tem animal como gênero; como ser sensível, tem sensível como diferença. Assim, animal constitui o gênero de homem, e racional, a sua diferença.
Porque a forma de um grau superior tem em si todas as perfeições do grau inferior, ela não se torna uma forma realmente distinta da forma da coisa, da qual esta coisa receberia o gênero e a diferença, mas é da mesma forma enquanto possui a perfeição de um grau inferior, que a coisa recebe o gênero; e, enquanto a mesma forma possui a perfeição de um grau superior, a coisa recebe dela a diferença.
Fica, assim, manifesto que, embora animal seja o gênero do homem e racional a sua diferença, não é necessário que nele haja uma alma sensitiva e outra intelectiva, como afirmou a primeira objeção. Pelo mesmo raciocínio desfaz-se a segunda objeção.
4 — Foi dito acima que uma forma de espécie superior tem em si todas as perfeições das espécies inferiores. Deve-se ainda considerar que quanto mais elevada for uma espécie material, tanto menos será sujeita à matéria, e, por isso, quanto mais uma forma é nobre, tanto mais deve ela elevar-se acima da matéria. Por conseguinte, a alma humana, que é a mais nobre das formas materiais, alcança um sumo grau de elevação, tendo, por isso, a sua operação independente da matéria corpórea. Todavia, porque a mesma alma compreende as perfeições dos graus inferiores, ela possui também operações que se comunicam com a matéria corpórea.
Fica, desse modo, claro que a operação procede de uma coisa conforme a virtude desta. Deve, pois, a alma humana possuir algumas forças ou potências que são princípios das operações corpóreas. E, tais operações, devem ser atos de certas partes do corpo, e aquelas forças são as potências das partes vegetativa e sensitiva.
A alma também possui algumas potências que são princípios das operações que se realizam independentes do corpo. São essas as potências da parte intelectiva e que não são atos de órgãos. Por isso o intelecto, quer o agente, quer o possível, é dito separado, porque não possui órgãos pelos quais operaria, como os possuem a visão e a audição, mas estão apenas na alma, que é a forma do corpo. Logo, porque o intelecto é dito separado, carecendo que é de órgãos corpóreos (tendo-os, porém, os sentidos), não é necessário que no homem a alma intelectiva seja realmente distinta da alma sensitiva.
5 — Onde também se evidencia que não somos forçados a aceitar a existência, no homem, de uma alma intelectiva e, de outra sensitiva, conforme afirma a terceira objeção, porque esta é corruptível e aquela incorruptível. Ora, ser incorruptível convém à parte intelectiva, enquanto é separada. Como, com efeito, na mesma essência da alma fundamentam-se, como foi dito, as potências separadas e as não separadas, assim também nada impede que algumas potências da alma sejam desfeitas juntamente com o corpo, e que outras sejam incorruptíveis.
6 — De acordo com as razões até aqui expostas, chega-se também à solução da quarta objeção. Todo movimento natural, com efeito, desenvolve-se, lentamente, do que é imperfeito para o ser perfeito, de modo diferente, porém, na alteração e na geração.
Ora, a mesma qualidade recebe mais e menos. Por conseguinte, a alteração, que é o movimento da qualidade, que é uniforme e continua da passagem da potência para o ato, desenvolve-se do imperfeito para o perfeito.
A forma substancial, porém, não recebe mais e menos, porque o ser substancial de cada coisa realiza-se de modo indivisível. Donde a geração natural não proceder do imperfeito para o perfeito de modo contínuo, passando por muitas etapas intermediárias, mas é necessário que para cada grau de perfeição exista nova geração e corrupção. Assim é que, na geração humana, o ser concebido primeiramente vive a vida da planta pela alma vegetal; após, removida esta forma pela corrupção, adquire a alma sensitiva por uma outra geração, vivendo, então, a vida animal; finalmente, removida esta alma pela corrupção, é introduzida a forma última e completa, que é a alma racional e que possui em si tudo que havia de perfeição nas formas que a precederam[38].


CAPÍTULO XCIII

A PRODUÇÃO DA ALMA RACIONAL
NÃO SE FAZ POR TRADUÇÃO

Esta última e completa forma, isto é, a alma racional, não recebe o ser de uma virtude existente no sêmen, mas de um agente superior.
1 — A virtude existente no sêmen é virtude de algum corpo. Ora, a alma racional excede toda natureza e toda virtude corpórea, porque nenhum corpo, por si mesmo, pode atingir a sua operação intelectiva. Logo, como nada age além da sua espécie, porque o agente é mais nobre que o paciente, e o que faz algo é mais nobre que a coisa feita, é impossível que a virtude de um corpo produza a alma racional. Conseqüentemente, nem a virtude existente no sêmen o produz.
2 — Ademais, cada coisa que recebe novo ser deve ser novamente feita, porque ser feita compete à coisa que vai ter o ser: uma coisa só é feita para ser.
Às coisas que têm o ser em si mesmas, compete serem feitas por causa de si mesmas, como acontece com as coisas subsistentes. Aquelas coisas que não têm o ser em si mesmas, elas não podem ser feitas por causa de si mesmas, como acontece com os acidentes e com as formas materiais. Mas a alma racional tem o ser em si mesma, porque por si mesma opera, como vimos acima. Logo, compete à alma racional ser feita por causa de si mesma.
3 — Como essa alma não é composta de matéria e forma, como já o demonstramos, segue-se que não pode vir ao ser a não ser por criação. Ora, como somente Deus pode criar, como se viu acima, somente Deus pode dar o ser à alma.
4 — Mediante uma razão natural pode-se também chegar a essa conclusão. Vemos, com efeito, nas artes ordenadas entre si, que a arte suprema introduz a última forma, e que as artes inferiores dispõem a matéria para a última forma. É evidente que a alma racional é a última e perfeitíssima forma que pode receber a matéria das coisas sujeitas à geração e à corrupção. É, pois, conveniente que os agentes naturais inferiores produzam as disposições e formas precedentes, mas que o Supremo Agente, isto é, Deus, cause a última forma, que é a alma racional.


CAPÍTULO XCIV

A ALMA HUMANA NÃO É TIRADA
DA SUBSTÂNCIA DE DEUS

Não se deve crer que a alma humana seja da substância de Deus, conforme o erro de muitos.
1 — Demonstrou-se acima que Deus é simples e indivisível. Logo, Deus não pode unir a alma racional ao corpo humano, como que separando-a de sua própria substância.
2 — Ademais, demonstrou-se também acima, é impossível Deus ser forma de algum corpo. Ora, a alma racional une-se ao corpo como sua forma. Logo, não é tirada da substância de Deus.
3 — Finalmente: ficou também demonstrado que Deus não se move, nem por si, nem por acidente. Ora, o contrário acontece com a alma racional, pois nela há mudança, como, por exemplo, da ignorância para a ciência, do vício para a virtude. Logo, ela não pode ser tirada da substância de Deus.


CAPÍTULO XCV

AS COISAS QUE SÃO DITAS EXISTIREM
POR UMA VIRTUDE EXTRÍNSECA
VÊM IMEDIATAMENTE DE DEUS

Do que acima foi demonstrado, necessariamente conclui-se que as coisas que não podem ser produzidas no ser, senão por criação, originam-se imediatamente de Deus.
1 — Foi demonstrado que os corpos celestes não podem ser produzidos no ser senão por criação. Não se pode dizer que foram feitos de matéria preexistente, porque, desse modo, estariam sujeitos à geração e à corrupção, e, também, à contrariedade, o que não pode acontecer, devido ao movimento deles. Eles se movem, com efeito, circularmente. Ora, no movimento circular não há contrário. Resta, pois, que os corpos celestes sejam produzidos no ser imediatamente por Deus[39].
2 — Além disso, os elementos na natureza não se originam totalmente de matéria precedente, porque, se assim o fosse, aquilo que preexistira teria tido alguma forma, e, desse modo, deveria algum corpo distinto dos elementos ser-lhes preexistente na ordem da causalidade material. Ora, se a matéria preexistente dos elementos tivesse tido outra forma, deveria um deles ser anterior ao outro na mesma ordem, isto é, se a matéria precedente tivesse tido forma de elemento. É necessário, pois, que também os elementos sejam imediatamente produzidos por Deus no ser.
3 — É ainda muito mais impossível que as substâncias incorpóreas e invisíveis tenham sido criadas por outro ser, que não Deus. Ora, todas elas são substâncias imateriais. Não podem as substâncias imateriais originarem-se de uma só matéria, pois toda matéria existe sujeita à dimensão, dimensão que também a multiplica. Logo, é impossível que as substâncias imateriais sejam causadas por uma matéria precedente, e, por conseguinte, resta que só por Deus são produzidas no ser, por criação. Por essa razão a Fé Católica confessa que “Deus é criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e, também, das invisíveis.”


CAPÍTULO XCVI

DEUS NÃO AGE POR NECESSIDADE
NATURAL, MAS PELA VONTADE

Do que foi dito, pode-se também concluir que Deus produziu as coisas no ser, não por necessidade natural, mas pela vontade.
1 — De um agente natural não pode vir senão uma coisa. O agente voluntário, porém, pode produzir diversas coisas. A razão disso é que todo agente age por sua forma. A forma natural, pela qual uma coisa naturalmente age, é uma só para cada coisa. Mas as formas intelectivas, pelas quais um ser age voluntariamente, são muitas. Ora, como muitas coisas são imediatamente produzidas no ser por Deus, como vimos, é claro que Deus as produz no ser pela vontade, e não por necessidade natural.
2 — Ademais, o agente que pela inteligência e pela vontade é anterior, na ordem da ação, ao agente que age por necessidade da natureza, pois o agente pela vontade predetermina para si o fim em função do qual agirá, ao passo que o agente natural age em função de um fim predeterminado por outrem. Ficou acima estabelecido que Deus é o primeiro agente. É, pois, agente pela vontade, e não por necessidade da natureza.
3 — Ademais, foi também esclarecido acima que Deus possui virtude infinita. Por conseguinte, não está condicionado para produzir este ou aquele efeito, mas refere-se indiferentemente a todos. Aquilo que de modo indeterminado refere-se a diversos efeitos, produz um efeito por determinação do desejo ou da própria vontade: o homem, por exemplo, que pode andar ou não andar, quando não anda. Os efeitos devem, pois, ser causados por Deus por determinação da vontade. Portanto, Deus não age por necessidade da sua natureza, mas pela vontade.
4 — Eis porque a Fé Católica chama a Deus de “Onipotente” e não somente de “Criador”, mas também de “Fazedor”: fazercom efeito, é próprio de quem opera pela vontade.
5 — O agente voluntário age por uma forma concebida na sua inteligência, que se chama o seu verbo, como acima foi demonstrado. Ora, o Verbo de Deus é o Filho. Por isso a Fé Católica confessa, a respeito do Filho, que “por Ele todas as coisas foram feitas”.


CAPÍTULO XCVII

DEUS É IMUTÁVEL NA SUA AÇÃO

Estabelecido que Deus produz as coisas no ser pela vontade, deve-se concluir que Ele, sem sofrer mudança no próprio ser, pode produzir outra coisa no ser.
A diferença entre o agente natural e o agente voluntário consiste em que o agente natural age sempre do mesmo modo, enquanto permanece no mesmo modo de ser, porque conforme a qualidade de uma coisa assim ela age, ao passo que o agente voluntário produz, pelo seu querer, coisas diferentes.
Pode também acontecer que, sem sofrer mudança, queira agora agir, mas antes não o quis. Nada proíbe, com efeito, que alguém tenha vontade de operar no futuro, sem sofrer mudança no próprio ser no presente. Por isso, pode acontecer que Deus, sem mudança no ser, tenha produzido as coisas no ser não desde a eternidade, embora seja eterno.


CAPÍTULO XCVIII

RAZÃO QUE PROVA A ETERNIDADE
DO MOVIMENTO. A SUA REFUTAÇÃO

1 — Parece que, se Deus pela sua vontade eterna e imutável pode produzir um novo efeito, deveria também algum movimento preceder esse novo efeito. Ora, não vemos a vontade retardar o que quer fazer senão ou devido a algo que agora existe e que deixará de existir no futuro, ou devido a algo que agora não existe, mas que, no futuro, possa existir, como, por exemplo, o homem que no verão quer usar determinada roupa, mas não a usa, no momento, devido ao calor, esperando fazê-lo quando vier o frio. Se, portanto, Deus desde a eternidade quis produzir algum efeito, mas não o fez desde a eternidade, é porque esperava algo que se realizaria no futuro, que no momento ainda não existia; ou porque esperava que deixasse de existir no futuro, algo que no momento existia. Ora, ambos os termos dessa alternativa não podem efetuar-se sem movimento. Vê-se, pois, que a vontade antecedente não pode produzir algum efeito no futuro, senão precedendo a este algum movimento. Logo, se a vontade de Deus quis eternamente a produção das coisas e estas não foram feitas desde a eternidade, torna-se necessário admitir que a produção das mesmas tenha sido precedida de movimento e de outros seres sujeitos a movimento. Estes, se foram produzidos por Deus, mas não desde a eternidade, foram precedidos pela existência de outros movimentos e de outros seres imóveis, o que nos levaria também a admitir um processo ao infinito.
2 — Essa objeção pode ser facilmente respondida, se considerarmos a diferença que existe entre o agente universal e o agente particular. Ora, o agente particular tem a sua ação proporcionada à regra e à medida estabelecidas pelo agente universal. Assim acontece também na ordem civil: o legislador põe a lei como regra e medida, e, conforme essa lei, o juiz particular julga.
O tempo, com efeito, é a medida das ações que se realizam no próprio tempo[40]. O agente particular tem a ação proporcionada ao tempo, de modo que ele age agora, e não agiu antes, devido a alguma razão determinada.
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Mas o agente universal, que é Deus, instituiu também aquela medida, que é o tempo, e isso fez conforme a própria vontade. Entre as coisas feitas por Deus, está também o tempo. Se a quantidade e a medida de cada coisa são estabelecidas por Deus, também a dimensão do tempo é a que Deus lhes quis dar, de modo que o próprio tempo e as coisas a ele sujeitas tiveram início quando Deus os quis existentes.
3 — A objeção que respondemos refere-se ao agente que pressupõe o tempo e que age no tempo, não ao agente que instituiu o tempo. Ora, uma pergunta que indaga porque a vontade eterna produziu um efeito agora, e não antes, já pressupõe o tempo preexistente, pois agora antes são partes do tempo.
Com relação à produção universal das coisas, entre as quais está o tempo, não se deve perguntar:

“— Por que agora, e não antes?”

Deve-se, sim, perguntar:

“— Por que Deus quis dar medida ao tempo?”

Ora, a vontade divina é indiferente a esta ou àquela dimensão que ela quis dar ao tempo.
4 — A mesma consideração pode ser feita a respeito da quantidade dimensiva do mundo[41].
Não se deve perguntar:

“— Por que Deus constituiu o mundo corpóreo neste lugar, não acima, nem abaixo, nem em outra posição?”

Não se deve fazer tal indagação, porque fora do mundo não há lugar. Tal situação do mundo origina-se da vontade de Deus, que deu ao mundo corpóreo esta sua dimensão, de modo que nada dele estivesse fora do lugar em que está, qualquer diferente posição em que estivesse.
Embora antes do mundo o tempo não existisse, nem fora do mundo existisse lugar, usamos, contudo, deste modo de falar. Antes da criação do mundo, nada existia senão Deus; fora do mundo, não há outro corpo. Nesses casos, não entendemos antes fora; tempo elugar, senão de um modo puramente imaginário.



[1] Cf. Mandonnet O. P., Pedro. Des Écrits Authentiques de Saint Thomas d’Aquin. Revue Thomiste, 1909, p. 158, 257, 274.
[2] “Sem a Fé sobrenatural não há Teologia cristã. (...) Como nos bastaria um assentimento cego, sem o esforço de compreensão do conteúdo da Fé? Não somos papagaios; somos seres dotados de inteligência. Tendo Deus falado, quis comunicar verdades, e não vocábulos sem sentido. Incumbe-nos, portanto, penetrar e assimilar os degraus que a Igreja propõe como revelados por Deus. Elevada pela Fé à ordem de ciência divina, é normal que a inteligência, assim divinizada, queira atuar; ora, para a inteligência, atuar é compreender. Passamos, destarte, sem hiato, do simples assentimento a um saber inteligível; a Fé desabrocha em Teologia. Começamos por crer, e, depois, dentro da Fé, tentamos chegar a uma certa intelecção.” Penido. Pe. M. Teixeira Leite. O Mistério da Igreja. Vozes, 1956, p. 37. Cf. Congar, M. J. — D. T. C, vol. XV, 342. Théologie.
[3] “Um estudo profundo e atento das obras de Aristóteles e de Santo Agostinho, descobriu-lhe (a Santo Tomás), atrás da letra, o verdadeiro estilo de ambos, que não era antitético nem antagônico, mas perfeitamente harmonioso no fundo, como todos os fragmentos da verdade. Apoderou-se, pois, desse espírito, e elevando-o ao máximo com o impulso de seu próprio gênio, conseguiu reunir, numa síntese própria e pessoal, mas muito superior, o quanto de bom e são eles haviam dito, pondo como base a experiência e a técnica aristotélica, e, como remate, as geniais intuições agostinianas, enriquecidas com contribuições pessoais dos melhores quilates. Síntese grandiosa que fez sofrer profundas transformações aos elementos reunidos com não poucas, nem leves, retificações, a que “sempre aspiraram Aristóteles e Santo Agostinho.” Ramirez-Santiago. Introducción a Tomas de Aquino. B. A. C, Madri, 1975, p. 117.
Cf. Gilson-Etienne. Le Thomisme, 5me. ed. Paris, 1944, p. 37 e ss.; Maritain, Jacques.Le paysan de Ia Garonne. Desclée de Brower, Paris, 1966, p. 197, 201.
[4] Cf. Nicolas O. P., J. H. Dieu connu comme inconnu. Desclée de Brower, Paris, 1966, p. 293.
[5] Cf. Toco O. P., Guilherme. Vita Sancti Thomae, Aquinatis. In Acta Sanctorum, João Bossando S. J., Veneza, 1735, VI, p. 657 e ss.; Mandonet O. P., Pedro. Opuscula Omnia. Paris, 1927, vol. I, introduction, IV.
[6] Cf. S. T., I, l, 4c.
[7] P. L., XL, p. 241 e ss. Santo Tomás, no Compêndio de Teologia, não fugiu, pois, da sua filiação a Santo Agostinho, como, aliás, acontece em toda a sua doutrina, escrevendo, a respeito, Santiago Ramirez, um dos mais profundos conhecedores desta em nossos tempos: “Neste sentido profundo e verdadeiro, foi Santo Tomás mais aristotélico e mais agostiniano que os aristotélicos e agostinianos de todos os tempos, e o maior discípulo e continuador de ambos que os séculos conheceram.” (Texto que continua a citação posta na nota 3 supra.).
[8] Cf. Fraille O. P., Guillermo. Historia de la Filosofia. 2.ª ed. Madri, 1956, B. A. C, vol. II, p. 533 e ss.; Grabmann, Mons. Martinho. Introdução à Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino, 2.ª ed., Vozes, 1959.
[9] Cf. Suma Teológica, Prólogo.
[10] Desses sermões há a tradução para o nosso idioma: Santo Tomás de Aquino, Exposição Sobre o Credo. Tradução e notas de D. Odilão Moura, O. S. B., Presença, Rio, 1975.
[11] Há uma antiga tradução um tanto livre desses sermões: Tratado dos Dous Preceitos da Caridade e dos Dez Mandamentos da Lei de Deus por S. Thomás de Aquino. Traduzido pelo Dr. Braz Florentino Henriques de Souza. Garnier, Rio, 1876.
[12] Cf. Biffi, Inos. I Misteri di Cristo nel Compendium Teologiae di S. Tommaso. Divinitas,1974, p. 287, nota 2; Boulogne, Ch. D. Saint Thomas d'Aquin. Essai Biographique. Nouvelles Editions Latines. Paris, 1968, p. 110 e ss.
[13] S. Thomae Aquinatis. Opuscula Omnia. Cura et Studio R. P. Petri Mandonnet. Parisis. P. Lethielleux Bib. Ed, 1927, Tomus Secundus, vol. II.
[14] Santo Tomás de Aquino. Compêndio de Teologia. Editora Cultura, Buenos Aires, 1943. É utilizada a tradução feita por Leon Carbonero (Madri, 1880).
[15] Opuscules de Saint Thomas d'Aquin. Traduits par M. Vaudrine, M. Baudet e M. Fouruet, Paris, Louis Vives, Ed., 1956, Tome Premier.
[16] “O Doutor Angélico considerou as condições filosóficas nas razões e nos próprios princípios das coisas. (...) Ademais, ao mesmo tempo que distingue perfeitamente, tal como convém, a razão e a fé, une-as ambas pelos laços de uma mútua amizade. Conserva, assim, cada uma os seus direitos, salvaguarda-lhe a dignidade, de tal sorte que a razão levada pelas asas de Santo Tomás até ao fastígio da inteligência humana quase não pode subir mais, e dificilmente pode a Fé esperar da razão socorros mais numerosos, ou mais poderosos do que os que Santo Tomás lhe forneceu.” Leão XIII. Enc. Aeterni Patris, 4.8.1879, A. S. S., XII, p. 108.
[17] Sobre Heidegger, assim se expressa Jacques Maritain: “Não se trata, de fato, daquela intuitividade de que anteriormente falei bastante e que ao olhar para as coisas busca a pura objetividade característica da inteligência que se realiza conforme suas leis estritamente próprias e empenhada nas vias do conhecer. Em Heidegger trata-se da intuitividade poética. (...) Longe de trabalhar sobre as naturezas inteligíveis atingidas no verbo mental (o obscuroDenken heideggeriano), concentra-se sobre o que pode apreender ainda do conteúdo fugitivo de uma intuição quando ele esforça-se por dessubjetivizar esta antes (e a fim) de a conceptualizar ou tornar inteligível em termos metafísicos. Sabemos que agora Heidegger volta-se para os próprios poetas e para os poderes teogônicos da linguagem destes, esperando dela uma espécie de revelação profética cujo desejo parece ter obcecado, desde o princípio, o seu espírito. O mito é a sua verdadeira pátria.” Maritain, Jacques. Approches Sans Entraves. Fayard, Paris, 1973, p. 389, 391.
Em termos críticos semelhantes, assim se refere Maurice Corvez O. P. à posição dissociada da realidade de Heidegger: “Na análise fenomenológica de Heidegger, não aparece jamais a realidade verdadeira. Nenhum juízo é formulado sobre o conhecimento e a unidade do Ser (“sendo”), cuja realidade ontológica se impõe aos nossos sentidos e à nossa inteligência. O real escapa a Heidegger: ele não tem a intuição do real e permanece em estado de abstração: sua filosofia é uma filosofia das essências”. Corvez O. P.. Maurice. La Pensée de L’Etre Chez Martin Heidegger. Revue Thomiste, 1965, p. 552.
[18] “Na realidade”, escreve Charles Journet, “a questão não é saber se se deva ou não fazer teologia. Todos a fazem. A única questão é de saber que teologia se quer fazer, boa ou má, verdadeira ou falsa, franca ou disfarçada.” Journet, Charles. Introduction à Ia Theologie.Desclée de Brower, Ed. Paris, 1947, p. 86.
Sobre o conceito de Teologia, ver Santo Tomás: S. T., I, 1, 1 e ss; Super Boetium de Trinit. II,2; in Sent, III, 33, 1, 2.
[19] Paulo VI. Carta Lumen Ecclesiae, 3, A. A. S., LXVi, p. 675.
[20] A expressão “A Igreja fez sua a doutrina de Santo Tomás” encontra-se nos seguintes pronunciamentos pontifícios: Bento XV. Encíclica Fausto Appetente, 29.6.1921. A. A. S.,XIII, p. 332; Pio XI. Encíclica Studiorum Ducem, 29.6.1923. A. A. S., XV, p. 314; João XXIII.Alocução de 16.9.1960. A. A. S. LII, p. 821.
[21] “Este capítulo, que aparece em muitas edições latinas, talvez não seja autêntico Cf. A. Motte O. P. Un Chapitre inauthentique dans le Compendium Theologiae de S. Thomas (Revue Thomiste, T. XLV, 4, 1939, p. 749 e ss.).
[22] 2 a) O primeiro argumento fundamenta-se na doutrina de Ato e Potência, e conserva toda a sua validez metafísica. O segundo argumento também a conserva considerada sota o aspecto metafísico. O terceiro argumento, fundamentado na Física da época de Santo Tomás, que seguia ainda a visão do universo de Empédocles e de Aristóteles, bem que bom quanto à forma, à ilação, evidentemente está desatualizado quando ao conteúdo.
b) Observando atentamente a realidade, Aristóteles descobriu e formulou a teoria do Ato e da Potência. Por meio dela, ele encontrou a explicação do problema, insolúvel para Parmênides e para Heráclito, que as tentativas de conciliação entre a unidade e a multiplicidade, entre o repouso e o movimento dos seres criaram. Procurada para esclarecer as questões da ordem física (matéria e forma), Aristóteles estendeu-a, posteriormente, à ordem metafísica chegando ao conceito do Ato Puro. Santo Tomás aceita como verdadeira a teoria aristotélica do Ato e da Potência, e, após a ter aprofundado e completado, levá-la-á às últimas conseqüências, e utilizá-la-á nas questões fundamentais da sua Filosofia. Para muitos, essa teoria dá a fisionomia própria ao tomismo. Manser, em exaustiva obra, defende essa posição, escrevendo: “No desenvolvimento e aperfeiçoamento, rigorosamente lógicos e conseqüentes, da doutrina aristotélica do Ato e da Potência, nós vemos a mais íntima essência e o ponto central do tomismo.” (Manser O. P. La Esencia del Tomismo, tradução espanhola de Valentín G. Yebra, 2.ª ed. Madri, 1953, p. 119.)
Dias antes de morrer, o Papa S. Pio X aprovou a resposta da Sacra Congregatio Studiorum referente a vinte e quatro teses, propostas para o exame da referida Congregação, que resumiam os princípios e as teses principais da doutrina de Santo Tomás, que deverão ser fielmente seguidas nas escolas católicas. As duas primeiras teses são:
“I — A potência e o ato dividem o ser de tal maneira que tudo o que é, ou é ato puro, ou é composto de potência e ato, como de princípios primeiros e intrínsecos.
“II — O ato, como perfeição, somente é limitado por uma potência que seja capacidade de perfeição. Donde se segue que na ordem em que o ato é puro, este não pode existir senão único e ilimitado; e onde, pelo contrário, ele é finito e múltiplo, permanece em um verdadeiro estado de limitação com a potência.” (Acta Apostolicae Sedis, vol. VI, nº 11, 1914, p. 383 e ss.).
[23] a) Por fidelidade ao pensamento tomista, traduziu-se, o mais literalmente possível este texto. Exige, evidentemente, uma leitura atenta, para ser compreendido.
b) Está aqui exposta uma das teses fundamentais do tomismo (para muitos, a fundamental). como seja a que apresenta a distinção primeira entre o Criador e as criaturas. Não pode haver dúvida a respeito do pensamento de Santo Tomás, que, desde as primeiras obras, vinha afirmando a tese da distinção real entre a essência e a existência. Escreve, a respeito, o insigne intérprete de Santo Tomás, Cardeal González:
“Admitindo-se que a essência e a existência das criaturas são uma só e mesma coisa, logicamente se conclui que elas existem pela sua essência (...) conforme a observação profunda de Santo Tomás, é precisamente porque a existência das criaturas depende de Deus como de sua causa eficiente, que ela não pode ser idêntica à sua essência. Suposta, com efeito, esta identidade, a essência realizada não seria senão a existência atual da criatura. Seria, portanto, impossível que ela fosse produzida por outro ser. Por que dizemos que Deus existe necessariamente, absolutamente e independente de toda causa? Não é por que a sua essência é existir? Dever-se-ia também admitir que seria assim para a criatura, se a sua essência fosse absolutamente idêntica à sua existência, porque, em tal hipótese, a sua essência realizada seria a sua existência atual como em Deus. Se o ser de Deus não é, nem pode ser, causado, e porque Ele existe por Si mesmo, pela sua essência, ou, em outros termos, porque a sua essência é absolutamente idêntica à sua existência, e não é outra coisa que o seu próprio ato de existir.” (González, Zeferino, Cardeal. Estudios Sobre la Filosofía de Santo Tomas, I. 2, 6.) A tese da distinção real entre a essência e a existência, nas criaturas, é também conseqüência da doutrina do Ato e da Potência. Defendem-na todos os autênticos seguidores do Doutor Angélico.
Sacra Congregatio Studiorum, em continuação às duas primeiras teses tomistas (cf., supra, nota 1 ao cap. IX), assim enuncia a terceira: “III — Donde um só subsiste na absoluta razão do próprio Ser, Deus, uno e simplicíssimo; todos os demais seres têm natureza que limita o Ser, e constam de essência e ser, como princípios realmente distintos.”
[24] Este segundo argumento é baseado na consideração científica da época de Santo Tomás. Está, naturalmente, em discordância com os princípios da física moderna. Salva-se, porém, a lógica do raciocínio, e é de se notar a analogia entre o infinito de Deus e o da inteligência humana, no terceiro argumento.
[25] As perfeições divinas distinguem-se por distinção de razão, Isto é, apenas pelos conceitos que delas temos, não por distinção real. Isto é, como se distinguem entre si a potência e o ato, a essência e a existência, a substância e o acidente, as substâncias entre si e os acidentes entre si. Contudo, a natureza divina possibilita-nos afirmar que os conceitos que temos das perfeições divinas não são puras ficções da nossa inteligência. O conhecimento que delas temos é, além disso, um conhecimento analógico, isto é. proporcional ao conhecimento que temos das coisas criadas. (.Cf., infra, cap. XXVII.)
[26] Neste capítulo está implícita a divisão dos termos. Estes podem ser unívocos ouequívocos. Os equívocos, por sua vez, dividem-se em equívocos por acaso (simplesmente equívocos) e equívocos de conselho (equívocos de certo modo). Os termos equívocos de conselho são usualmente chamados de termos análogos. Os conceitos, que são representados pelos termos, podem também ser unívocos ou análogos. Nunca, porém, equívocos por acaso. Para mais ampla e melhor compreensão da analogia dos termos e dos conceitos, leia-se este texto de Santo Tomás: “Deve-se saber que algo pode ser atribuído a diversos sujeitos de várias maneiras: ora conforme uma só razão, e então diz-se que lhes é atribuído univocamente (por exemplo: a atribuição do termo animal ao boi e ao cavalo); ora conforme razões totalmente diversas, e diz-se então que lhe são atribuídos equivocamente (por exemplo: o termo cão atribuído à constelação e ao animal); ora conforme razões que são em parte diversas e, em parte, não diversas: diversas, na medida em que implicam maneiras de ser diferentes; não diversas, conforme se referem a uma mesma e única coisa. Diz-se. então, que a atribuição aos sujeitos é feita analogicamente, isto é, proporcionalmente, enquanto cada sujeito é referido ao mesmo termo de acordo com a sua maneira de ser.” (In Metaph. IV, 1, I, n.° 535.)
[27] O Filósofo, para Santo Tomás, é Aristóteles. Denominando assim ao Estagirita, o Doutor Angélico manifesta o respeito que tem pelo filósofo que considera o maior de todos, do qual assumiu e depurou a filosofia.
[28] Geração equívoca, nas teorias científicas antigas, realizava-se na matéria inorgânica por influência dos corpos celestes, que eram de natureza superior. Não se admitia, já naquele tempo, como se vê, a chamada geração espontânea. Santo Tomás segue, aqui, a ciência do seu tempo.
[29] A profissão de fé denominada Símbolo de Santo Atanásio, apesar de trazer o nome do grande Doutor oriental, consta ser de origem latina, talvez divulgada por Santo Ambrósio. Opina-se também que foi elaborada na Espanha. Embora a origem não seja conhecida com certeza, o Símbolo de Santo Atanásio, desde o século IV, goza de grande autoridade, tendo sido incluído na Liturgia, e é considerado autêntica profissão de fé. Como, com exatidão, analisa, em termos claros e compreensíveis, o conteúdo do mistério da Santíssima Trindade, para melhor delimitar-se o que seja de fé neste mistério, e o que seja de especulação teológica, transcrevemo-lo aqui. É o seguinte:
“Quem quer que queira salvar-se, antes de tudo deve professar a Fé Católica, pois se alguém não a conservar íntegra e inviolável, sem dúvida, perecerá para sempre.
A Fé Católica é esta; que veneremos um Deus na Trindade, e a Trindade na unidade, sem confundir as pessoas, nem dividir-lhes a substância.
Uma é a Pessoa do Pai, outra, a do Filho, outra, a do Espírito Santo. Mas o Pai, o Filho e o Espírito Santo têm uma só divindade, uma mesma glória e coeterna majestade.
Qual é o Pai, tal é o Filho, e tal é o Espírito Santo; incriado o Pai, incriado o Filho e incriado o Espírito Santo; imenso o Pai, imenso o Filho e imenso o Espírito Santo; eterno o Pai, eterno o Filho e eterno o Espírito Santo. Contudo, não são três eternos, mas um sóeterno; como também não são três incriados, nem três imensos, mas um só incriado e um só imenso.
Igualmente, onipotente o Pai, onipotente o Filho, onipotente o Espírito Santo. Contudo não são três onipotentes, mas um só onipotente.
Assim também, Senhor é o Pai, Senhor é o Filho, e Senhor é o Espírito Santo. Entretanto, não são três senhores, mas um só Senhor. Porque assim como somos obrigados pela verdade cristã a confessar que cada uma das Pessoas é singularmente Deus e Senhor, também somos proibidos, pela religião católica, de afirmar que há três deuses ou três senhores.
O Pai por nenhuma coisa foi feito, nem criado, nem gerado. O Filho vem só do Pai, não como criado, nem feito, mas sendo gerado. O Espírito Santo vem só do Pai e do Filho, não como feito, nem como criado, nem como gerado, mas procedendo.
Por conseguinte, há um só Pai, não três pais. Há um só Filho, não três filhos. Há um só Espírito Santo, não três espíritos santos. E nesta Trindade nada há antes ou depois, nada maior ou menor. Mas todas as três Pessoas são coeternas e coiguais, de sorte que, como já se disse acima, em tudo deve ser venerada a unidade na Trindade e a Trindade na unidade.
Mas é necessário, para a eterna salvação, que se creia fielmente também na Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo: pertence à reta fé acreditarmos e confessarmos que Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, é Deus e Homem.
É Deus, gerado da substância do Pai, antes dos séculos; e Homem, nascido da substância da mãe, no tempo.
Perfeito Deus, perfeito Homem — subsistente de alma racional e carne humana.
Igual ao Pai, segundo a divindade; menor que o Pai, segundo a humanidade.
Embora Ele seja Deus e Homem, contudo, não são dois, mas um só Cristo. Um só, com efeito, não pela conversão da divindade na carne, mas pela assumpção da humanidade em Deus.
Absolutamente um só, não pela confusão da substância, mas pela unidade da Pessoa. Pois assim como há um só homem de alma racional e de carne, também um só é Cristo: Deus e Homem.
O qual padeceu pela nossa salvação, desceu aos infernos, ao terceiro dia ressurgiu dos mortos. Subiu aos céus, está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso, donde virá julgar os vivos e os mortos.
A sua vinda todos os homens devem ressurgir com os seus corpos e deverão dar contas das suas ações. Os que agiram bem irão para a vida eterna; os que agiram mal, para o fogo eterno.
Esta é a Fé Católica, na qual se alguém não crer fiel e firmemente não poderá ser salvo.”
[30] O conceito de relação, proposto por Aristóteles, foi explicitado por Santo Tomás. O seguinte texto do filosofo José Gredt resume a doutrina tomista sobre o assunto:
“A relação considerada em seu sentido latíssimo é a ordem de uma coisa para outra. Essa ordem pode estar incluída ou em alguma existência absoluta ou ser uma pura referência advinda à essência absoluta.
A ordem incluída na essência absoluta chama-se relação  quanto ao nome(“secundum dici”). É o ser verdadeiramente absoluto, que, não obstante, essencialmente conota algo extrínseco, em ordem de que deve ser definida. Assim, a relação da alma para o corpo é uma relação só quanto ao nome.
A ordem advinda que consiste na pura referência, ou cujo todo ser consiste em se referir à outra coisa, chama-se relação quanto ao ser (“secundum esse”). Por exemplo: a relação de paternidade, que é uma pura referência advinda ao homem.
A relação quanto ao ser pode ser ou relação real, ou relação de razão.
Relação real é a que tem ser na natureza das coisas, independente da consideração da nossa mente.
Relação de razão é a que subsiste só na inteligência, como a referência do predicado ao sujeito.
relação só quanto ao nome é também chamada relação transcendental, porque é um ente real que não se prende a um determinado gênero de coisas, mas perpassa todos os predicamentos. Por exemplo, no gênero da substância: a matéria, que se refere transcendentalmente à forma, e a forma, à matéria; no gênero da qualidade: a potência e a ciência, que se referem transcendentalmente aos objetos.
relação real quanto ao ser é também chamada de relação predicamental e se define “acidente real cujo todo ser consiste em se referir a outra coisa”. Nisso ela se distingue da relação transcendental, cujo todo ser não é referir-se a outra coisa, sendo, como é, entidade absoluta, na qual, contudo, está incluída a ordem à outra coisa. A entidade da relação predicamental, porém, consiste em pura referência, ou em “ser para a outra coisa' (“esse ad aliud”). É, por isso, um acidente de mínima entidade.” (Gredt, Josephus. Elementa Philosophiae. Frib. Bisgoviae, 1937, I, p. 154. Cf. Joannis e Sancto Thoma OP. Ars Logica.Taurini, Itália, 1930, p. 573 e ss.).
Por ser acidente de “mínima entidade”, a relação transcendental pode ser analogicamente transferida para o ser divino, “única, entre as categorias — escreve o padre Maurílio Penido —, ela (a relação predicamental) não se define pelo modo de possuir o ser; única, dentre os acidentes, ela não conota a substância em que se radica; como tal, ela se refere tão-somente ao correlativo.” “... a oposição relativa não implica, como tal, para os termos em presença, nenhuma privação ou negação, numa palavra, imperfeição qualquer. A relação como que se desforra de ser a derradeira das categorias, no que toca à existência, pois que ela chega às raízes do nada (“habet esse debilissimum” — De Pot. 8, 1 ad 4; In Sent. 2, 2, 2. 3;) sua fraqueza constitui-lhe, justamente, a glória: nada tendo de absoluto, não afirma em um termo imperfeição de que careça o outro, e se alguma realidade lhe advém é unicamente na e pela substância a que adere (I Sent. 26,2, 2). Tão tênue, não poderá prejudicar à simplicidade divina, e não atribuirá a uma das pessoas uma perfeição que falte à outra.” (Penido, Maurílio. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. Trad., Vozes,1946, p 323-324).
[31] A doutrina das relações subsistentes na Trindade, esboçada nas especulações dos Padres gregos e desenvolvida, posteriormente, por Santo Agostinho, recebeu a sua última perfeição da genial inteligência de São Tomas. Com clareza, a expõe, em síntese, o Teólogo Cardeal Journet: “Considerada a sua propriedade singular, a relação, ou respectus ad, PRÓS TI, pode ser concebida, pode manter-se, em três condições totalmente diversas:
1.ª — Sem ser realizada, sem estar enriquecida ou sustentada no ser por nenhum esse in, por nenhum respectus in. Então, a relação é de razão; não, real. Ela resulta unicamente da atividade do espírito. Por exemplo, as relações do ser com o nada, ou a relação entre duas abstrações: animalidade e humanidade.
2.ª — Sendo realizada, estando presa e sustentada no ser por um esse in, por um respectus in.Temos, então, uma relação real. Ela é totalmente relação (real) pelo seu respectus ad; e ela é totalmente (relação) real pelo seu respectus in. Existe, na realidade, anteriormente à consideração do meu espírito, que nada faz senão na descobrir. Por exemplo, a relação de igualdade entre duas linhas, a relação de semelhança entre duas bolas de marfim, etc. Existem na realidade não somente as duas bolas, nem só duas brancuras (fundamentos da relação), mas também a igualdade e a semelhança dessas duas bolas.
3.ª — Sendo realizada, estando presa e sustentada no ser por um esse in infinito, por umrespectus ad incriado, a saber, pelo próprio ser divino, absoluto, ilimitado, subsistente. Ela é inteiramente relação (por exemplo: Paternidade ou Filiação) pelo respectus ad, e ela é totalmente real devido ao seu esse in, ao seu respectus in, que é o Ser divino, a Asseidade divina, o Absoluto. Desse modo, a Paternidade é real e subsistente, a Filiação é real e subsistente; elas se opõem realmente uma à outra, mas é identicamente a mesma Realidade que as faz a ambas reais e subsistentes. Temos aqui a noção de relação subsistente, para a qual já os Padres gregos deviam se elevar, para, de um lado, fugirem da contradição; e, de outro, manterem todo o realismo e o esplendor da revelação evangélica. De então ficou firmado que uma pluralidade de relações reais no seio do Absoluto era um mistério revelado, mas não um absurdo ou uma contradição. Ficou firmado que a distinção que opunha entre Eles o Pai e a divindade, o Filho e a divindade, era de razão. Há a objeção: duas realidades idênticas a uma terceira são idênticas entre si; ora, o Pai é idêntico à divindade e o Filho também é idêntico à divindade; logo, o Pai e o Filho são idênticos entre Si. A tal objeção Santo Tomás (Suma Teol.,I, 28, 3 ad 1) responderá que, conforme o próprio Aristóteles já o havia ressaltado, o princípio invocado na maior não é necessariamente verdadeiro, quando há entre as duas primeiras realidades uma oposição de relação.” (Journet, Charles Card. L´Église du Verbe lncarnée. Desclée de Brower et Cie., Paris, 1951, n, p. 352.).
[32] Segue, ainda, aqui, o Doutor Angélico, os esquemas científicos do seu tempo, ao considerar os astros como seres completos na sua espécie, incorruptíveis e mais perfeitos que os corpos terrestres. Santo Tomás, que não era cientista nem matemático, mas filósofo e teólogo, recorre, para esclarecer a sua doutrina metafísica, as idéias da física contemporânea sua, que faziam parte do harmonioso sistema cósmico elaborado por Aristóteles, que corrigiu o sistema platônico, fundamentado na observação dos sentidos. Quando, no séc. XVI, os instrumentos de observação se foram aperfeiçoando, o sistema aristotélico foi também, em parte, sendo corrigido, e, em parte, rejeitado. Para Aristóteles, o mundo terrestre era formado de substâncias compostas de matéria e forma móveis, alteráveis, corruptíveis, distribuídas em quatro elementos: água, terra, fogo e ar. A terra, imóvel, era o centro do universo, em torno da qual giravam esferas concêntricas, em movimento circular, cheias de matéria sutil, ou éter, nas quais estavam os astros. Estes eram substâncias eternas, incorruptíveis, incriadas, que se aperfeiçoavam na medida que se afastavam da terra. Um primeiro motor comunicava seu movimento às diversas esferas, em processo gradativo, e este primeiro motor era movido pelo Ato Puro, que estava fora do Universo. Evidentemente, Santo Tomás não aceitava, em todos os seus aspectos, essa doutrina aristotélica.
[33] Gilberto Porretano (1076-1154), bispo de Poitiers, aplicando à Santíssima Trindade a sua doutrina de realismo exagerado a respeito dos universais, afirmou:
1.º — que há distinção real entre Deus e a divindade, entre a essência divina e os seus atributos;
2.º — que há distinção real entre a essência divina e as Pessoas;
3.º — que só as Pessoas divinas são eternas, mas não as propriedades e as relações;
4.º — que a natureza divina não se encarnou.
Como essas teses destruíam os mistérios da Trindade e da Encarnação, foram, sábia e veementemente, combatidas por São Bernardo, que conseguiu que o Concílio de Reims (1148) as condenasse. Gilberto reconheceu os seus erros e deles se retratou por escrito.
[34] Ver, acima, nota ao capítulo LVI.
[35] Muitas vezes, como o faz neste capitulo, Santo Tomás usa o termo substânciacomo sinônimo de essência.
Para explicar o conhecimento intelectivo, Aristóteles viu a necessidade de haver na alma humana duas potências (acidentes) distintas e com funções diversas: uma, passiva (o intelecto possível), cujo ato vital é imanente e se limita ao conhecimento; outra, ativa (o intelecto agente), cuja função vital é transitiva e não cognoscitiva, destinando-se a atuar nos fantasmas para possibilitá-los a produzir no intelecto possível a espécie impressa (Cf. Joannes e Sancto Thoma, Cursos Philosophicus. Taurini, Italiae, 1937, IV, p. 303 e ss.).
O ato abstrativo do intelecto agente não é, portanto, cognoscitivo, mas algo prévio e exigido para que a coisa inteligível apresente-se no intelecto possível em estado abstrato e universal. Pela doutrina do intelecto agente, Aristóteles destruiu a doutrina das idéias subsistentes de Platão.
A existência desses dois intelectos na alma humana, a cuja necessidade Aristóteles genialmente chegou aplicando a sua teoria do ato e potência, é assim esclarecida por Santo Tomás:
“Nada é reduzido de potência a ato senão por um ser em ato. ... Convém, portanto, pôr na inteligência alguma virtude que faça as coisas inteligíveis em ato, abstraindo as espécies inteligíveis das suas condições materiais. Daí a necessidade de se pôr o intelecto agente.” (S. T., I, 79, 3, D).
“O intelecto agente e o possível distinguem-se como potências, visto que, com relação a um mesmo objeto, deva existir um princípio que seja potência ativa, que faz o objeto estar em ato; e, outro, que seja potência passiva, que é movida pelo objeto existindo em ato. Desse modo, a potência ativa refere-se ao objeto, como o ente em ato ao ente em potência; a potência passiva, porém, refere-se ao seu objeto, de modo contrário, isto é, como o ente em potência ao ente em ato. Por conseguinte, na parte intelectiva, nenhuma outra diferença de potência pode haver, senão a de intelecto agente e intelecto possível (S. T., I, 79, 7 e O. Ver infra, capítulos LXXXIII e LXXXVI.

[36] Neste capítulo é refutada a doutrina de Averróis (U 1198) a respeito da unidade do intelecto possível, que, com o intelecto agente, para ele, era um só para todos os homens. No capítulo seguinte desfaz o Doutor Angélico a doutrina dos seus contemporâneos que admitiam, seguindo Averróis, unidade de intelecto agente para todos, sendo principal representante destes o teólogo, e mestre da Universidade de Paris, Siger de Brabant (U 1284). Em 1266 publicou Santo Tomás de Aquino o seu célebre trabalho De unitate intelectus contra Averroistas, provando que Averróis interpretou falsamente a doutrina de Aristóteles, e desfazendo, de modo exaustivo, as razões apresentadas por Averróis e pelos averroístas. Este capítulo e o que lhe segue reproduzem de modo sintético as principais partes daquele livro.
O averroísmo foi condenado em 1270 pelo Arcebispo de Paris; em 1277 foi novamente condenado. Devido à infiltração averroísta na teologia do século XIII, a Igreja manteve reservas para a doutrina de Aristóteles, e só após a revisão desta feita por Santo Tomás é que permitiu o ensino do aristotelismo.
Para melhor compreensão do assunto tratado nestes artigos, a síntese da doutrina de Averróis sobre a inteligência humana feita por M. de Wulf (Histoire de la Philosophie Mediévale, Paris, Felix Alcau, Ed., 1905, p. 249-250) é útil: “Forçando o sentido de um texto de Aristóteles, Averróis faz da inteligência humana a última das inteligências planetárias, e forma imaterial, eterna, separada dos indivíduos, dotada de unidade numérica. Esses atributos não afetam apenas o intelecto ativo, mas também o intelecto material ou possível. A razão humana é absolutamente impessoal e objetiva; ela é a chama que ilumina as almas individuais e assegura a inalterável participação da humanidade nas verdades eternas. Posto isto, eis como se opera no homem individual o ato da intelecção: por uma ação sobre as imagens sensíveis, próprias de cada homem, a inteligência separada adquire uma união acidental com o indivíduo, sem que essas uniões múltiplas alterem a sua unidade intrínseca. Esse primeiro grau de posse gera no indivíduo o intelecto adquirido, que pode ser chamado de 'a razão impessoal enquanto participada por um ser pessoal', mas há uniões mais íntimas do homem com o intelecto universal, principalmente a que se realiza na experiência mística. Decorrem desta doutrina o desaparecimento da consciência individual, a impersonalidade da sobrevivência. As almas individuais morrem, mas a humanidade é imortal na eternidade da razão objetiva.”
[37] Essa é uma das teses fundamentais da doutrina de Santo Tomás. Com lógica férrea, o Doutor Angélico (aplicando as doutrinas aristotélicas de matéria e forma, de ato e potência e de que a alma é a forma substancial do corpo, e explicitando-as em muitas questões) conclui que só pode haver uma alma em cada homem. Era doutrina corrente na filosofia medieval, desde os primórdios até a época de Santo Tomás, que no homem há multiplicidade de almas. Tal tese tem suas origens em Plotino (parece Santo Agostinho tê-la aceito), e passou para os pensadores medievais por via do agostinianismo e dos filósofos árabes (Avicebron). Aceitaram-na, Escoto Eriúgena, Gilberto Porretano, Alexandre Hales, São Boaventura, Raimundo Lulo, Roberto Kilwardby, Rogério Bacon, e, talvez, Duns Scoto. A firmeza de Santo Tomás na defesa da sua tese provocou verdadeira tempestade nos meios intelectuais e eclesiásticos, sendo ela condenada por alguns bispos. Furiosamente atacada, a tese tomista é hoje pacificamente aceita na filosofia cristã. É interessante notar que parece ter o Doutor Angélico inicialmente vacilado na afirmação da sua tese, propondo-a assim, com tanta firmeza, só após uma certa evolução doutrinária. O assunto foi tratado em muitas obras de Santo Tomás: Comentário das sentenças (I, 8, 5, 2); De Anima (3); De spiritualibus creaturis(I, 76, 4); Contra Gentiles (II, 57); Suma Teológica (I, 76, 4). O Concílio de Viena (1312) declarou doutrina de fé que a alma intelectiva constitui o corpo em natureza humana, sem outra forma intermediária e essencialmente (Cf. Dz., 481). Contudo, é comum sentença entre os teólogos não ter querido o Concílio dirimir a discórdia doutrinária da pluralidade de almas, nem canonizar a tese tomista. Visou apenas condenar a tese de Pedro Olivi (11298) que afirmava ser a alma intelectiva forma do corpo não diretamente, mas por intermédio das partes vegetativa e sensitiva.
[38] Nessa explicação do desenvolvimento inicial do ser vivo, Santo Tomás argumenta com as teses da biologia da época. Evidentemente essas teses estão ultrapassadas, mas é válida a consideração metafísica de que a geração perfaz-se de modo indivisível, isto é, a recepção da forma substancial é instantânea. Com precisão expõem os tomistas o pensamento de Santo Tomás relativo à maneira segundo a qual uma só alma, que é essencialmente espiritual, possa exercer, além da função intelectiva, que lhe é própria, as duas outras que dependem do corpo: a alma humana contém formalmente, isto é, nas suas determinações específicas, as funções das almas vegetativa e sensitiva, mas de modo eminente, isto é, sem as restrições próprias dessas almas inferiores, mas de modo elevado. Diz-se, em latim, “formaliter — eminenter”. (Cf. Hugon, Phil. Naturalis. Paris, 1934, p. 494; Gredt, Elementa Philosophiae, I,p. 409.).
[39] Ver, supra, nota ao cap. LVI.
[40] Para melhor compreensão do argumento, alguns esclarecimentos sobre o conceito de tempo.
Podemos considerar o tempo como medida, como duração ou como algo permanente em que as coisas sucedem-se. Esclarece-nos o assunto o filósofo tomista José Gredt: “O tempo considerado como medida é formalmente um ser de razão, mas que material e fundamentalmente existe na natureza, como o movimento. O tempo é o próprio movimento, considerado de modo simultâneo por uma ficção da mente, no qual as partes são enumeradas: número do movimento conforme antes e depois, o define Aristóteles. O tempo como medida é um ser de razão com fundamento nas coisas.
O tempo considerado como duração é formalmente um ser real: identifica-se com a existência das coisas.
Aquele tempo que nós criamos em nossa mente, como se fosse um espaço imaginário existindo na natureza, separado de todas as coisas corpóreas, ilimitado e contendo em si todas as outras durações, tal tempo imaginário é um ser de razão sem fundamento na realidade.” (Gredt, Josephus. Elementa Philosophiae, I, p. 246, n.º 904.)
[41] Como o tempo, o lugar pode também ser considerado diversamente. Torna-se ainda mais confuso, para alguns, o conceito de lugar, porque não o distinguem bem do conceito de espaço.
Esclarece-nos o filósofo tomista Eduardo Hugon: “Não são (espaço e lugar) duas realidades distintas, pois ambas referem-se às dimensões do corpo ambiente. São diferentes, contudo, quanto aos modos de serem por nós concebidos:
1°) Lugar refere-se apenas à primeira superfície imóvel, enquanto ela circunscreve a coisa locada; espaço acrescenta ainda a distância entre as diversas superfícies circundantes, ou entre as partes da mesma superfície circundante.
2°) Lugar refere-se só à latitude e à longitude; espaço, à capacidade de três dimensões.
3º) O conceito de espaço é mais amplo que o de lugar e, tomado em toda a sua latitude, pode designar o complexo de todos os lugares: lugar, porém, refere-se a determinado corpo; espaço pode referir-se ainda a diversos corpos, até ao Universo total...” (p. 208).
“O espaço pode ser considerado como real, ideal ou imaginário. O espaço real fundamenta-se na extensão real; o espaço ideal tem existência em nossa inteligência; o espaço imaginário é aquilo que, baseados na fantasia, por ficção, pensamos que existe fora do mundo, com a capacidade para receber todos os corpos. É este uma imitação sensível do espaço ideal: quando a mente cria a ficção de um espaço ideal, a fantasia esforça-se para expressar alguma representação semelhante, na ordem sensível. O chamado espaço absoluto reduz-se ao espaço ideal ou ao imaginário. (...) O espaço possui verdadeira realidade, mas não existe como é concebido. Por conseguinte, o espaço, formalmente considerado e quanto ao modo de ser concebido, é um ser de razão com fundamento na realidade” (p. 209). (Hugon, Edouard. Cursus Philosophiae Thomisticae, II. )

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