quarta-feira, 27 de outubro de 1999


Considerações libertadoras sobre a Infalibilidade
por Dom Richard Williamson

                Depois de muito tempo, sabemos que os liberais[1] e os sedevacantistas[2] chegaram a exagerações, respectivamente à esquerda e à direita, partindo das mesmas premissas. Eis o raciocínio que eles fazem (mais ou menos conscientemente):
   Maior[3] :          o papa é infalível.
   Menor:                ora, os últimos papas são liberais.
   Conclusões:   - (liberal) então é preciso fazer-se liberal
                               -(sedevacantista) então estes últimos “papas” não são verdadeiros papas.
                Aqui, a lógica é boa e a “menor” também é; então, se as conclusões deixam a desejar, devemos buscar o problema na premissa maior, raiz comum das duas conclusões opostas, e que explica como um fiel liberal do Novus Ordo ao chegar à Tradição pode ser tentado de se tornar sedevacantista, e como um sedevacantista feroz, depois de anos defendendo a sua posição, pode de um dia para o outro tornar-se liberal. Isso é porque os liberais compartem com os sedevacantistas uma noção da infalibilidade muito difundida a partir de 1870 (concílio Vaticano I), noção, no entanto, falsa.
                Não é que a definição do magistério solene ou extraordinário infalível do Papa fosse uma coisa má per se, ao contrário; mas per accidens[4], pela malícia dos homens, ela contribuiu muito a uma desvalorização da Tradição no sentido usado por São Paulo dizendo aos Gálatas: “Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie um Evangelho diferente daquele que vos temos anunciado, seja anátema!” (Gal 1, 8). Quem compreende, ainda hoje, todo o alcance desta impressionante exclamação!
                A definição de 1870 foi boa per se, porque ela permitiu ancorar os espíritos católicos naquilo onde os liberais faziam tudo o possível para deixá-los à deriva. Mas, depois que a definição foi realizada, os maliciosos liberais mudaram imediatamente a sua tática: “Sim, de acordo, sem dúvida, nós sempre acreditamos (hipócritas!) que existe um magistério a priori infalível no cume do ensino da Igreja, mas, abaixo desse cume quem não vê agora que nada é absolutamente seguro?” E assim os liberais deliberadamente começaram a pôr em dúvida toda verdade abaixo deste cume constituído pelo corpo de verdades definidas infalivelmente segundo as quatro condições da nova definição de 1870.
                E os católicos a partir desse tempo, mesmo dizendo que não, que a definição não cria a verdade, que o cume não faz a montanha, que existe no magistério da Igreja todo um conjunto - uma montanha - de verdades certas abaixo daquele cume, mesmo assim nada mudou. A partir de 1870, no espírito das pessoas, pouco a pouco era o cume que criava cada vez mais a montanha e não era mais a montanha que criava o cume.
                Mas reflitamos um momento. Não é a definição que faz a verdade. Ela não causa senão a nossa certeza da verdade. A ordem real é a seguinte: 1º) O objeto real, a realidade. 2º) A verdade da proposição que enuncia essa realidade. 3º) Adefinição que vem reforçar o nosso conhecimento dessa verdade. 4º) A certezano espírito do católico piedoso a partir de quando ele sabe que tal verdade é objeto de uma definição.
                Repito: 1º) Objeto. 2º) Verdade. 3º) Definição. 4º) Certeza.
                Mas o efeito acidental da definição de 1870 foi de inverter esta ordem no espírito dos católicos e de colocar a definição antes da verdade, como se fosse a definição que criasse a verdade. É evidentemente falso, por pouco que pensemos, mas a prova que os católicos chegaram a pensar assim são os livros de teologia escritos entre 1870 em 1950, que para estabelecer uma verdade não solenemente definida, se sentem - visivelmente - na necessidade de construir como um magistério ordinário infalível a priori, copiado do magistério extraordinário infalível a priori, somente com três condições, ou três condições e meia, no lugar de quatro[5]. Mas precisamente não é assim! São necessárias quatro condições e não somente três e meia para que haja a priori uma infalibilidade. Mas este magistério com três condições e meia era como necessário para assentar uma verdade católica nos espíritos falsamente deslumbrados pelo magistério solene com quatro condições.
                Expliquemos a nossa comparação: (1) a montanha cria (2) o cume, ao qual (3) a neve acrescenta só (4) a visibilidade. Quem pensaria em dizer que é a neve que cria o cume, ou que é o cume que cria a montanha? Do mesmo modo, é a Tradição que no momento da morte do último dos apóstolos, constituía já todo o corpo da doutrina revelada da Igreja; as diversas definições de várias verdades neste corpo de doutrina não acrescentaram nada mais a essas verdades que a sua certeza para os católicos. No entanto, à medida que a caridade se resfria, a camada de neve no cume avança cada vez mais.
                Mas daí a dizer que, posto que não há neve, não há montanha, ou que, onde não existe definição com as quatro condições, não há verdades certas, seria perder todo o sentido da montanha, todo o sentido da verdade, é a doença do subjetivismo que não pode conceber nenhuma verdade objetiva sem certeza subjetiva.
                Então os “bons” autores dos livros começaram a entrar em certo modo no jogo dos liberais, sem dúvida inconscientemente, eclipsando a verdade objetiva atrás da certeza subjetiva, e dessa forma eles contribuíram a preparar a catástrofe do Vaticano II, e deste “magistério ordinário supremo”[6] de Paulo VI graças ao qual, de fato, ele agrediu gravemente a Igreja! Eis aqui o problema de Michael Davies[7], por exemplo, que nega toda nocividade intrínseca ao missal da missa nova, pelo fato que teria sido promulgado “solenemente” pelo supremo Legislador.
                Bem ao contrário, eis aqui a grandeza de Dom Lefebvre, que soube guardar o sentido católico da montanha, como São Paulo na sua epístola aos Gálatas, quando quase todo o universo católico se deixou cegar pelo brilho da neve. Kyrie eleison!

                                               Winona, 9 de agosto de 1997.

 
[1] O liberalismo tende a exagerar o lugar da liberdade humana. Veja o livro deDon Sardá y SalvaniO Liberalismo é pecado.
[2] O sedevacantismo consiste em pensar que os Papas atuais não são verdadeiramente Papas e que, por conseguinte, não se deve rezar por eles no Cânon da Missa nem publicamente, como acontece no período de Sé vacante (sede vacante).
[3] Num raciocínio em forma escolástica, chamamos maior à primeira proposição, menor à segunda. A maior e a menor são as “premissas”.
[4] As expressões per se e per accidens significam aqui que, no primeiro caso, a conseqüência deriva da essência da coisa, e no segundo caso, esta mesma conseqüência se origina por causa de circunstâncias em si independentes da coisa (aqui, a circunstância determinante é a “malícia dos homens” atuais).
[5] O Concílio Vaticano I definiu que o Papa é infalível quando fala ex cathedra, ou seja, quando cumpre as quatro condições:
- no seu cargo de ensinar à Igreja (portanto, não como doutor privado), com a sua autoridade suprema,
- definindo,
- uma doutrina sobre a fé e os costumes,
- devendo de ser sustentada por toda a Igreja (DS 3074).
O Concílio Vaticano I expôs também que os católicos devem crer, além dos juízos solenes, no ensino do magistério ordinário universal (DS 3011). Mas não precisou as condições em que esse magistério ordinário é infalível.
[6] Expressão empregada pelo Papa Paulo VI em audiência no dia 12/01/1966 para qualificar o magistério do Concílio: “Há quem se pergunte que autoridade, que qualificação teológica o Concílio quis atribuir aos seus ensinamentos, pois bem se sabe que ele evitou dar solenes definições dogmáticas envolventes da infalibilidade do Magistério Eclesiástico. A resposta é conhecida, se nos lembrarmos da declaração conciliar de 6 de março de 1964, confirmada a 16 de novembro desse mesmo ano: dado o caráter pastoral do Concílio, evitou este proclamar em forma extraordinária dogmas dotados da nota de infalibilidade. Todavia, conferiu a seus ensinamentos a autoridade do supremo Magistério ordinário” (cf. Frei Boaventura Kloppenburg, OFM, Compêndio do Vaticano II, Petrópolis, Vozes, 18° edição, 1986).
[7] Michael Davies é um autor inglês que escreveu muitos livros para defender a Tradição e particularmente Dom Lefebvre. Porém, não seguia completamente todas as suas posições, especialmente sobre a missa nova.

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