quarta-feira, 29 de dezembro de 1999

cruzada2

O Superior geral da
Fraternidade São Pio X convida a uma
nova “Cruzada de Terços
cruzada de oração e penitência

Um buquê espiritual de 12 milhões de Terços
Na Carta aos Amigos e Benfeitores n. 78, Dom Fellay nos convida a rezar de novo, da Páscoa de 2011 ao Pentecostes de 2012.
“Contamos com a vossa generosidade, para reunir, novamente, um buquê de, pelo menos, doze milhões de Terços:
* para que a Igreja seja libertada dos males que a oprimem ou que a ameaçam em um futuro próximo;
* para que a Rússia seja consagrada e venha logo o Triunfo da Imaculada”.
Declare as suas intenções, nos Terços, com estas palavras: “para que
* esta prova terrível seja abreviada;
* a capa modernista que cerca a Igreja – pelo menos desde o Vaticano II – seja rasgada;
* as Autoridades cumpram seu papel salvífico junto às almas;
* a Igreja encontre novamente o seu esplendor e a sua beleza espiritual;
* as almas do mundo inteiro possam ouvir a Boa Nova que converte, receber os Sacramentos que salvam, reencontrando o único redil”.
Baixe o folheto para marcar suas dezenas recitadas:
* De 01 de Setembro a 31 de dezembro de 2011 (mais atual), clique no botão abaixo para baixar o folheto:
Baixar o folheto da Cruzada de Rosários
* Se você precisa contabilizar dezenas antes de 01 de Setembro, baixe o folheto mais antigo que vai da Páscoa a 31 de agosto 2011 – Clique aqui.
Envie-nos seus folhetos preenchidos diretamente por e-mail: contato@fsspx.com.br ou para o endereço físico indicado no arquivo.
O LIMBO: UMA DOUTRINA INCONTESTÁVEL CONFUNDIDA PELA 
“NOVA TEOLOGIA”

Depois do nosso artigo “Magistério desprezado — o Batismo das crianças e o limbo” (Sim sim Não não de abril de 1996 p.1), recebemos a seguinte correspondência do Rev. Pe. Sulmont ? carta publicada no Boletim Paroquial de Domqueur de novembro de 1995 (suplemento do Boletim n°287, p. 1):
Domqueur, 25 de outubro de 1995
Senhores,
Li seu artigo em SiSiNoNO do mês de outubro..

Sem dúvida, estou inteiramente de acordo com sua posição sobre a necessidade de batizar as crianças, como ensinam o Magistério infalível da Igreja, todos os Concílios, toda a tradição, inclusive o Credo de Paulo VI, de 30 de junho de 1968.

Entretanto, permitam-me ser menos categórico a respeito do limbo e da sorte das crianças mortas sem Batismo.

O limbo das crianças é uma conclusão teológica que não é de Fé divina mas somente de Fé eclesiástica, segundo a classificação que me foi outrora ensinada no Seminário.

Dito de outra forma, o limbo não faz parte da Revelação contida no Evangelho. Quando Cristo diz a Nicodemo ‘ninguém, se não renasce da água e do Espírito Santo, pode entrar no reino de Deu´ (Jo. III, 5), funda o Batismo, mas Ele fala a pessoas que não são ainda batizadas e os próprios apóstolos não o estavam ainda, como se acredita.

Necessita-se, assim, um certo tempo para que o sacramento do Batismo seja generalizado: o reino de Deus se instaurará aqui, pouco a pouco.
O limbo, ou melhor, as franjas do reino de Deus, existe na terra, para a Igreja, antes que a evangelização se tenha realizado plenamente em seus fiéis.
Guardei a lembrança da morte de parto de uma mãe há alguns anos, e vejo ainda o pequeno caixão da sua filhinha, chamada Aurora, posto ao lado da mãe, que era boa cristã.
O senhor pensa que Deus possa abrir o céu à mãe, dar-lhe a bem-aventurança, e fechar a porta ao seu bebê, enviando-o a algum outro lugar?
Ainda que uma mãe pudesse esquecer seu filhinho, Deus não esquece os seus.
Parece-me que a solução do limbo não leva suficientemente em conta o dogma da Comunhão dos Santos que está no Credo.
Em todos os tempos, e desde o Antigo Testamento, os fiéis admitem que a morte permite o reencontro com seus pais. Os laços naturais da família não são definitivamente rompidos. Os méritos dos santos não podem ser atribuídos, com prioridade, aos membros de sua família natural e àqueles que eles amaram na terra? Senão a caridade seria uma virtude descontínua.
Eis o que sugiro: talvez os senhores possam dar-me sua opinião sobre esse assunto difícil do limbo.
De qualquer maneira, estou de acordo com os senhores em combater, o mais energicamente possível, o retorno da heresia de Pelágio e a inadmissível teoria da escolha pessoal do Batismo unicamente para os adultos.
O pelagianismo é hoje uma praga: a negação do pecado original, o culto do Homem, os sacramentos laicizados, o desprezo da graça de Deus em benefício de truques; ignora-se o texto do Evangelho: “Não foram vós que me escolheram, mas eu, diz Jesus, que vos escolhi” (Jo, XV, 16).
Cordialmente,
Pe. Sulmont
Por seu lado, uma leitora nos escreve:
Rev. Pe.,
[...] o artigo a respeito do Batismo das crianças e o limbo, no seu último número, fez-me refletir de novo.
Minha cunhada, por ocasião de uma intervenção cirúrgica, estando grávida de quatro meses, pediu que o feto fosse batizado, no caso de... Tendo sido mudada a equipe cirúrgica (durante a noite), não se fez o que ela tinha pedido.
À uma pergunta feita a [...] me responderam que não havia, nesse caso, Batismo de desejo, porque não se podia intervir da mesma maneira para um adulto, que deveria acusar seus pecados.
Permita-me refazer a pergunta ao mesmo tempo em que formulo esta outra: Como encarar, nesse particular, a questão do Juízo Final?
Espero que o senhor me esclareça sobre esse ponto delicado, sabendo que no fm do mundo haverá aqueles que terão (feito...) e os que não terão (feito...) em função de sua vontade livre e esclarecida, e lhe peço que aceite, com meus agradecimentos antecipados, a expressão do meu respeito.
Carta assinada
Respondemos aqui a essas duas cartas.
UMA “DOUTRINA COMUM DA IGREJA”
“... permitam-me ser menos categórico a respeito do limbo e da sorte das crianças mortas sem Batismo”. (Pe. Sulmont).
Não se trata aqui de ser mais ou menos “categórico”. Trata-se, ao contrário, de manter a doutrina ensinada durante séculos, até às vésperas do Concílio Vaticano II, pela maioria dos Pastores, doutrina adotada pela maioria dos teólogos, acreditada por todo o povo cristão. Separar-se dela significa separar-se da doutrina comum para aderir a essas vozes discordantes e isoladas, que não faltaram em diversos períodos, no curso dos séculos, mas que se mostraram inconciliáveis com a Revelação divina ou que permaneceram como hipóteses, piedosas e caritativas, se quiserem, mas que não são fundadas sobre qualquer revelação.
Em 1935, padre J. Webert, O.P. escrevia: “Se, no curso dos tempos, houve entre os teólogos certas hesitações ou obscuridades, a doutrina da Igreja está doravante bem determinada sobre a existência do Limbo, como lugar onde repousarão eternamente as almas daqueles que morreram somente com o pecado original” (L’au dela, notas e apêndices à tradução francesa da Suma Teológica de São Tomás de Aquino, ed. Desclée). O próprio Häring, que nega o limbo das crianças, reconhece que se trata de “uma doutrina comum da Igreja” (Famiglia Christiana 27 de maio de 1975) e todos os teólogos a reconhecem como tal.
Ora, um padre deve estimar no seu justo valor o peso — no domínio doutrinário — de um consenso tão longamente mantido e tão unânime na Igreja, consenso que, por sua aceitação tranqüila e sua duração, compromete a própria infalibilidade da Igreja tanto “in docendo” quanto “in credendo”.
A isto, deve-se acrescentar o favor, tácito ou expresso, do Magistério Pontifício que, pela boca de Pio VI, defendeu como ortodoxa a crença no limbo contra o concílio herético de Pistóia: “O papa declara falsa, temerária, injuriosa às escolas católicas, a proposição segundo a qual deve ser rejeitado como uma fábula pelagiana o lugar dos infernos, chamado vulgarmente limbo das crianças, no qual as almas daqueles que morrem somente com o pecado original são punidas com a pena de dano [privação da visão de Deus] sem a pena do fogo” (DB 1526).
Assim, em 1954, nas vésperas do Vaticano II, os padres jesuítas espanhóis na sua Sacrae Theologiae Summa (BAC, Madri) escreviam que “etsi de limbo plures sunt quaestiones, ejus existentia certo tenenda est [em itálico no texto] quamvis non sit doctrina de fide definita”. “Apesar de haver várias questões [a resolver] sobre os limbos, sua existência deve ser tida por certa, conquanto não haja uma fé definida” (vol. II De sacramentis p. 150). E depois de ter examinado e refutado as diversas objeções e hipóteses sobre o destino das crianças mortas sem Batismo, estes padres jesuítas lembravam o gravíssimo julgamento de Santo Agostinho: “Noli credere nec docere infantes antequam baptizantur morte praeventos pervenire posse ad originalium indulgentiam peccatorum, si vis esse catholicus [em itálico no texto]”. “Quem quer ser católico, não creia, nem diga, nem ensine que as crianças colhidas pela morte antes de serem batizadas podem obter a remissão do pecado original” (Ibid.)
UM ERRO
“O limbo das crianças é uma conclusão teológica que não é de Fé divina mas somente de Fé eclesiástica, segundo a classificação que me foi outrora ensinada no Seminário” (Pe. Sulmont).
Sentimos muito ter que dizer que o Pe. Sulmont é aqui “categórico” e que está em erro, e isso por vários motivos. O limbo é, realmente, uma conclusão teológica, mas não uma conclusão teológica de Fé eclesiástica, sem que a Igreja tenha ainda se pronunciado sobre a questão (e veremos por que) de maneira solene e definitiva. Contudo, fosse a doutrina sobre o limbo de Fé eclesiástica, como crê nosso leitor, sua certeza seria “infalível como nos casos dos verdadeiros dogmas” (L. Ott Compendio di teologia dogmatica, Marietti 1955 p.22) e, portanto, o argumento segundo o qual o Limbo “não seria de Fé divina mas somente de Fé eclesiástica” não tem nenhum peso, em realidade.
SENTENTIA AD FIDEM PERTINENS
“Dito de outra forma, o limbo não faz parte da Revelação contida no Evangelho” (Pe. Sulmont).
Infelizmente, não estamos de acordo com nosso reverendo leitor. O limbo é uma conclusão teológica como, aliás, ele mesmo o diz e, por conseguinte, justamente por ser uma conclusão teológica, é uma verdade virtualmente ou implicitamente revelada, como o ensina qualquer manual de teologia: “Chama-se conclusão teológica uma verdade religiosa deduzida de duas premissas, das quais uma é formalmente revelada e a outra é conhecida unicamente pela razão. Sendo tais verdades derivadas de uma raiz da Revelação, são ditas virtualmente reveladas (virtualiter revelatae)” (Bartmann Manuale di teologia dogmática, vol. I, ed. Paoline 1949, p. 20).
Por esta relação teológica com a Revelação divina, a conclusão teológica, antes mesmo de ter sido pronunciada definitivamente pela Igreja, é chamada "sententia ad fidem pertinens”, sentença que pertence à Fé. Não seremos, portanto, tão categóricos para concluir como nosso leitor que “o limbo não faz parte da Revelação, contida no Evangelho”.
UMA OPINIÃO “MUITO SINGULAR”
“O limbo, ou melhor, as franjas do reino de Deus, existe na terra, para a Igreja, antes que a evangelização se tenha realizado plenamente em seus fiéis” (Pe. Sulmont).
E é assim que os limbos são completamente negados. Não se trata aqui, de fato, do destino das crianças mortas sem Batismo e que seus pais tenham desejado batizá-las, trata-se sim da própria existência do limbo. Não vemos como essa opinião totalmente pessoal, que situa o limbo “aqui em baixo”, sobre a terra, possa conciliar-se com o Evangelho: “Ninguém, se não renasce da água e do Espírito Santo, pode entrar no Reino de Deus” (Jo. 3,5), e com dois mil anos de reflexão teológica “in eodem sensu et eadem sententia” sobre a sorte das crianças mortas sem Batismo e com os documentos do Magistério infalível da Igreja. Se o limbo existe somente “aqui em baixo” e não existe depois da morte, quer dizer que jamais haverá o caso de almas que morrem unicamente com o pecado original, mas somente almas dignas ou do Céu (com seu anexo, o Purgatório) ou do Inferno, por terem morrido não somente com o pecado original, mas também com pecados pessoais. As definições infalíveis da Igreja, ao contrário — todas sem exceção — consideram certo que existem almas que morrem somente com o pecado original: na profissão de Fé de Michel Paleólogo e em todas as profissões de Fé impostas aos orientais (Dz. 387, 588, 870, 875), no Concílio de Lyon e no de Florença (DB 464) distingue-se sempre entre os que morrem em estado de pecado mortal e os que morrem “somente com o pecado original” (isto é, as crianças e os dementes não batizados). Daí a conclusão lógica, tirada pelos teólogos, da existência de um lugar especial que acolhe essas almas depois da morte.
Além disso, uma vez negado o limbo depois da morte com a finalidade de salvar as crianças cujos pais desejaram ardentemente o batismo, faltaria estabelecer onde vão terminar as outras crianças, inclusive as dos infiéis, cujos pais não desejaram batizar, nem mesmo vagamente. Não chegaríamos, por este caminho, a negar a própria verdade revelada, da qual o limbo não é senão uma conseqüência lógica, a saber, a necessidade absoluta do Batismo para todos? Ficaremos por aqui. Acrescentemos somente que a Igreja, hoje, sofre com opiniões “muito pessoais”. Evitemos, nós que queremos ser filhos fiéis da Igreja, dela sair.
UMA PERGUNTA DESRESPEITOSA PARA COM O MAGISTÉRIO E A TEOLOGIA CATÓLICA
“Guardei a lembrança da morte de parto de uma mãe há alguns anos, [...] O senhor pensa que Deus possa abrir o céu à mãe, [...] e fechar a porta ao seu bebê, enviando-o a algum outro lugar?” (Pe. Sulmont)
Essa pergunta nos parece, antes de tudo, e é o menos que se pode dizer, desrespeitosa para com tantos grandes teólogos católicos (incluindo Santo Agostinho e São Tomás de Aquino), como para com a Igreja que – como se exprime Pio XII em Humani Generis — “deu com sua autoridade, uma aprovação tão notável a sua teologia”. De fato, esses grandes teólogos — e a Igreja com eles — não se teriam dado conta de que o limbo faz injustiça à ... bondade de Deus! Na realidade, os grandes teólogos bem sabiam que a visão direta de Deus é um dom totalmente gratuito (ninguém tem “direito” à graça e à glória), que ultrapassa infinitamente as exigências e as aspirações da natureza humana (coisa negada pela “nova teologia”) e que não é permitido, portanto, pedir contas a Deus quando Ele não concede a alguém as alegrias do Céu que, apesar de querer dar a todos, não deve a ninguém. Nossa geração orgulhosa parece ter esquecido isso, mas a palavra de Deus está aí para nos lembrar: “Ó homem, quem és para altercar com Deus? Será que o vaso de argila diz a quem lhe deu a forma: Por que me fizeste assim? O oleiro não é dono da sua argila, para fazer da mesma massa um vaso de honra e um vaso de ignomínia?” (Rm 9, 20-21). Ou ainda: “Não fostes vós que me escolheram, mas eu que vos escolhi” (Jo 15, 16) recordado pelo Pe. Sulmont na conclusão de sua carta e que é uma das várias passagens evangélicas que afirmam a soberana liberdade de Deus no plano da salvação. (Lembremo-nos também de: “Não sou livre de fazer dos meus bens o que quero?”, do dono da vinha, na parábola dos operários da última hora).
É certo que Deus quer que todos os homens se salvem, mas o quer com uma vontade condicionada, não absoluta (como o quereria, contrariamente, a “nova teologia”), isto é, Ele o quer com a condição que os homens e as causas segundas, em geral, concorram para a obra de salvação e, se esse concurso falta, Deus não intervém distribuindo milagres, para enviar todos os homens ao Paraíso, a qualquer preço, violando a liberdade humana, mas deixa as causas segundas seguirem seu curso. Por isso muitas crianças morrem sem Batismo por negligência culpável dos pais e de outras pessoas (no caso exposto pela leitora, por falta de equipe médica precedente que não transmitiu à nova equipe a vontade da mãe). E mesmo se a negligencia não é evidente, como nesse caso, sempre se poderia procurar uma responsabilidade — segundo a hipótese plausível de um teólogo — na falta de utilização de todas as graças atuais que Deus distribui aos homens para que se cumpra perfeitamente seu plano de salvação. Com isto, não pretendemos que a questão esteja completamente resolvida: ela permanece sempre misteriosa para o homem porque, no fundo, trata-se de uma desigual repartição de graças, desigualdade da qual Deus se reserva o segredo. O que está dito, no entanto, basta para estabelecer que a existência do limbo não põe em questão a justiça, nem a bondade divina. Tanto é assim que, segundo o julgamento comum dos teólogos, se as alegrias do Céu são recusadas às almas do limbo (elas não lhes são devidas), as alegrias naturais, as mais elevadas, não se lhe são, no entanto, recusadas, alegrias que lhes asseguram uma felicidade pelas quais não cessam de agradecer a Deus.
UMA DOUTRINA CONSOLADORA
Realmente, a reflexão teológica sobre os limbos, se estes são bem conhecidos (o que não parece o caso, segundo as cartas recebidas) oferece vários motivos de consolação aos pais cristãos aflitos.
É certo que as almas do limbo sofrem objetivamente a pena do pecado original, que é “a privação da visão de Deus” (Inocêncio III, Dz. Enchiridion n° 341), mas é de julgamento comum dos teólogos que a justiça divina não permite que elas a sofram subjetivamente. Já havia dito Santo Agostinho que sua pena “é entre todas a mais doce” “omnium mitissima” (a dureza ulterior do doutor de Hipona é devida à controvérsia pelagiana). Foi em seguida, aprofundando a natureza do pecado original, que nos descendentes de Adão tem um caráter não de falta, mas de privação da graça, que os teólogos precisaram melhor a natureza da pena do limbo, puramente privativa também, e não aflitiva.
Seu julgamento é assim ilustrado e defendido por São Tomás: “a mesma razão vale para a ausência de sofrimento sensível e para a ausência de sofrimento espiritual (para as crianças mortas sem Batismo).
É sempre o gozo ilegítimo que merece sofrer, e o pecado original não o comporta: há, portanto, isenção de todo sofrimento.
A terceira opinião admite que as crianças possuem um perfeito conhecimento de tudo o que pode ser conhecido naturalmente, sabem que estão privadas da vida eterna e sabem a razão, e, no entanto, não experimentam nenhum sofrimento. É o que se precisa explicar.
A ausência de uma perfeição que o excede, não aflige aquele cuja razão é reta (é o caso das crianças mortas sem Batismo), por exemplo, não poder voar como os pássaros, não ser nem rei nem imperador, porque não há nenhum direito a isso; mas ele devia afligir-se por ser privado de um bem que lhe é proporcionado e ao qual é apto. Digo, pois, que todos os homens no uso de seu livre arbítrio são capazes de obter a vida eterna, porque podem preparar-se à graça, que é o meio para isso. Desde então, se faltam a ela, conservarão uma soberana dor por ter perdido o que eles poderiam possuir. Ora, essa capacidade sempre faltou às crianças: a vida eterna não lhes era devida por natureza, da qual excede totalmente as exigências, e por outro lado, não poderiam praticar nenhum ato pessoal, que as fizesse merecer tão grande bem. Portanto, elas não se afligem de nenhuma maneira por não ver a Deus, e de outra parte, gozam por participar em grande parte do bem do qual Deus é a fonte e possuir todos os dons naturais que recebem Dele.
Não se pode atribuir-lhes a capacidade de obter a vida eterna por uma ação pessoal e nem tão pouco por uma ação externa; não se pode dizer que elas poderiam ter sido batizadas, como muitas outras o foram, e que assim viessem a gozar da visão de Deus. Porque, ser recompensado por uma ação que não é pessoal é o efeito de uma graça totalmente particular, que as crianças não se entristecem de não ter recebido, assim como um homem sensato não se entristece por não ter recebido muitas graças concedidas por Deus a outros homens”. São Tomás App.q.2 a.2. Tradução francesa: Revue des Jeunes, suppl: q.70 bis art.2).
Em suma, se o limbo não é o Paraíso, também não é o inferno dos danados e, se lá as almas não gozam da visão beatifica, gozam, não obstante, de uma felicidade acidental secundária, possuindo sem dor bens naturais, de nenhum modo desprezíveis, e em primeiro lugar o conhecimento e o amor natural de Deus, como o explica São Tomás.
“Apesar de que as crianças não batizadas estejam separadas de Deus, no que concerne à visão beatifica, elas não estão completamente separadas Dele. Ao contrário, estão unidas a Deus pela participação nos bens naturais e podem assim gozar Dele também pelo conhecimento natural e o amor natural” (In IV Sent. I.II, dist. XXX, q.II a.2 ad.5).
Suarez, por seu lado, diz que as crianças mortas sem Batismo amam a Deus com um amor natural, acima de todas as coisas e gozam por estarem ao abrigo de todo pecado e de todo sofrimento (De peccatis et vitiis disp. IX sect VI).
Lessius diz que elas possuem um conhecimento natural perfeito das coisas materiais e espirituais que as leva a amar soberanamente a Deus, mesmo se se trata de um amor natural, a abençoá-Lo e louvá-Lo por toda eternidade (inclusive por tê-las poupado do combate terrestre, cujo resultado é sempre incerto) (De perfect divin. 1 XII c. XXII n° 144 ss).
O cardeal Sfondrati acrescenta que “Esse benefício da inocência pessoal e da exceção do pecado é tão grande que essas crianças prefeririam ser privadas da glória celeste a cometer um só pecado; e todo cristão deve ser desta opinião [como o foram, de fato, os Santos]. Portanto, não há lugar para queixas nem aflição a propósito dessas crianças, mas antes, convém louvar a Deus e agradecer-Lhe a esse respeito” (Nodus praedestinationis dissolutus, Roma 1687, p. 120).
Como é evidente, para consolar os pais cristãos, aflitos com a morte de seus filhos sem Batismo, não é, de modo nenhum, necessário negar a existência do limbo; basta simplesmente instruí-los sobre sua doutrina. Gostaríamos também de lembrar aqui que o cônego Didiot, da Faculdade teológica, se diz “inteiramente disposto a crer que as relações entre o céu dos eleitos e o limbo das crianças são possíveis e mesmos freqüentes; que o laço de sangue conservará sua força na eternidade, e que a família cristã, reconstituídas no céu, não será privada da alegria de reencontrar e amar seus queridos participantes de um dia” (Mortos sem Batismo, Lille 1896 p. 60). Essa é somente uma hipótese pessoal e o autor a tem por tal, mas é uma hipótese que se harmoniza com o dogma e a doutrina tradicional.
PELOS MÉRITOS DE CRISTO E NÃO DOS SANTOS
“Parece-me que a solução do limbo não leva suficientemente em conta o dogma da Comunhão dos Santos que está no Credo. [...] Os méritos dos santos não podem ser atribuídos, com prioridade, aos membros de sua família natural e àqueles que eles amaram na terra?” (Pe. Sulmont)
Esta observação também é um agravo aos grandes teólogos da Igreja e a Ela mesma que não se teriam dado conta, todos, que a conclusão teológica sobre o limbo não está bem de acordo com o “dogma da Comunhão dos Santos que está no Credo”. Na realidade os grandes teólogos não estavam esquecidos, como parece esquecer-se nosso leitor, que a primeira graça (conferida justamente pelo Batismo e restituída eventualmente pela Confissão) é concedida pelos méritos de Cristo e não dos Santos e que a Revelação divina associa absolutamente a primeira graça ao Batismo (Jo 3, 5). Esse Batismo de água pode ser substituído pelo de sangue, como no caso dos santos inocentes, assassinados pelo ódio a Cristo, ou pelo de desejo que, consistindo em atos pessoais de Fé e de contrição, não pode, no entanto, ser dado aos recém nascidos (nem aos dementes).
Não nos foi dado a conhecer outros meios de salvação, e é com justiça que os teólogos, unânimes, dizem que a uma lei tão geral e tão universal, revelada por Deus, como a do Batismo, não se pode admitir nenhuma exceção, se o próprio Deus não revelar a existência desta exceção (Sacrae theologiae Summa cit. e Dicionário de teologia católica, palavra batismo e limbo). Aí está porque todas as hipóteses sobre a questão, inclusive as piedosas, acabam por basear-se somente em razões de sentimento e carecem de fundamento sólido: “solido quidem fundamento carere”, como declara a seu respeito o Santo Ofício no Monitum de 18 de fevereiro de 1958 (AAS 50/1958, 114).
O JULGAMENTO UNIVERSAL
Acreditamos ter assim respondido igualmente à segunda carta. Falta-nos somente responder a pergunta sobre o julgamento final. A questão não foi ignorada pela teologia católica. É verdade que o Evangelho sobre o julgamento final nada diz daqueles que não terão tido a possibilidade de “fazer ou não fazer”, mas não é permitido, de modo nenhum, deduzir daí que eles não existem. Para prová-lo há os documentos do Magistério infalível da Igreja, única à qual é dado explicar o verdadeiro sentido das Escrituras.
Esses documentos, já mencionamos, colocam sempre numa categoria à parte, distinta dos bem-aventurados e dos danados, as almas que morrem “somente com o pecado original”, quer dizer, aqueles que, como as crianças ou os dementes, não tiveram a possibilidade de agir ou não agir em função da sua vontade livre e esclarecida. Se não se faz menção dessas almas no julgamento geral é simplesmente porque esse julgamento não lhes diz respeito: elas não serão julgadas, porque não há nada para julgar, uma vez que estas almas não tiveram a possibilidade nem de merecer nem de desmerecer. É por isso que, segundo alguns teólogos, as almas do limbo nem mesmo assistirão ao julgamento final e, ignorando a felicidade dos eleitos, não sentirão nenhum pesar. Segundo outros, ao contrário, elas terão conhecimento da felicidade dos eleitos, mas igualmente não sentirão desgosto, estando sua vontade perfeitamente conforme à vontade divina, que eles sabem ser sensata, justa e boa; ao contrário, vendo a danação dos reprovados, alegrar-se-ão por seu estado e agradecerão à bondade divina de lhes haver poupado misericordiosamente a prova terrestre, que pode terminar com o céu, mas também com o inferno (do qual os danados ficariam bem contentes se as portas do limbo se abrissem para eles). Segundo Santo Tomás e os tomistas, ao contrário, mesmo se as almas do limbo assistissem ao julgamento geral, a Providência continuaria misericordiosamente mantendo-os na ignorância da felicidade dos eleitos. Todos os teólogos, sejam quais forem, estão de acordo sobre o seguinte: que o texto do Evangelho acerca do julgamento final não põe obstáculo à conclusão teológica sobre o limbo.
UMA FÁCIL CONCLUSÃO
A Igreja, com razão, insiste no seu ensinamento sobre o dever de batizar as crianças o mais rápido possível (D.B. 712). O limbo, de fato, mesmo se não é um lugar de sofrimento, mas de prazer estimável, não é, no entanto, o Paraíso, ao qual Deus chama todos os homens. Não é nem mesmo um paraíso natural, porque as almas suportam aí, ainda que sem sofrimento, um dano real, provocado pelo pecado original: a privação da visão direta de Deus. Essa insistência justa da Igreja [sobre o Batismo precoce das crianças] não deve, no entanto, levar a comparar a danação das almas do limbo à danação dos reprovados, por que isto seria contrário ao Magistério infalível da Igreja, que os distingue bem. Tão pouco deve levar a considerar o limbo como um lugar de aflição, apesar de diferente do inferno, porque a Igreja não ensina e jamais deixou de ensinar assim, e à doutrina de Belarmino, que queria ver nas almas das crianças uma leve tristeza pela bem-aventurança perdida, ela claramente preferiu a doutrina que expusemos aqui.
A “NOVA TEOLOGIA” CONTRA O LIMBO
Se os neo-modernistas não tivessem feito abortar, desde seu começo, o Concílio Vaticano II, a doutrina consoladora sobre o estado das almas no limbo seria hoje realmente de Fé eclesiástica (como supõe erradamente nosso leitor) e, portanto, sua certeza seria “infalível como no caso dos verdadeiros dogmas” (L. Ott. cit.).
No esquema preparado pela comissão teológica, lê-se: “O concílio declara vão e sem fundamento todos os julgamentos segundo os quais se admite para as crianças um meio [para atingir a visão de Deus] diferente do Batismo realmente recebido. Todavia, não faltam motivos para considerar que elas gozarão eternamente de uma felicidade conforme seu estado”.
Com isto o Concílio teria encorajado o aprofundamento teológico sobre o estado de felicidade acidental e secundário das almas no limbo, e teria fechado a porta à busca de outros meios de salvação diferentes do “Batismo realmente recebido”, busca essa que na véspera do Concílio tornou-se ainda mais inquieta e inquietante sob o impulso da “nova teologia”. Esta conclusão está, aliás, perfeitamente de acordo com diferentes textos do Magistério infalível, tais como, por exemplo, o decreto Pro Jacobitis do Concílio de Florença (retornado em seguida pelo Concílio de Trento), no qual se lê: “Cum ipisis (pueris) non possit alio remedio subveniri nisi per sacramentum baptismi... admonet... quamprimum commode fieri potest, debere conferri” (DB 712). “Porque as crianças só podem ser socorridas pelo Sacramento do Batismo... (a Igreja) adverte severamente... que ele deve ser administrado logo que for possível fazê-lo sem problemas” (e Pio XII lembra também essa doutrina, no seu famoso discurso às mulheres parteiras). Infelizmente, esta conclusão definitiva não foi adotada pelo Concílio, por causa do desvio que lhe impôs a minoria modernista, e os neo-modernistas aproveitaram dessa falta de definição para definir a questão no pós-concílio, à sua maneira... ou seja, eliminando o limbo, somente pelas seguintes razões:
1) ele contraria a heresia de De Lubac e de “sua turma” que, desenterrando o modernismo condenado por São Pio X, queriam que o sobrenatural (portanto a visão beatífica) não fosse um dom absolutamente gratuito, que Deus não deve a ninguém, mas ao contrário, que fosse qualquer coisa de devido, porque é um aperfeiçoamento da natureza humana (v. SiSiNoNo de 15/2/1993 p.3).
2) a existência do limbo está igualmente em desacordo com a outra heresia, própria da nova teologia, que quer a salvação incondicional de todos os homens, fiéis e infiéis, batizados ou não (V. SiSiNoNo de 15/4/1993, pp. 1 ss).
Apesar disso, o texto preparado pela comissão teológica permanece aqui para testemunhar, se for necessário, que na véspera do Concílio a doutrina sobre o limbo era comumente professada pelos Pastores, teólogos e fiéis e que somente a revolução modernista perturbou (e encontramos o eco dessa perturbação nas cartas que recebemos) a possessão tranqüila dessa conclusão teológica, tão notavelmente resumida, justamente na véspera do Concílio, pela Enciclopédia Católica: “III. O Limbo das Crianças — Existe ainda, segundo a teologia, o limbo das crianças, isto é, o estado e o lugar das crianças não batizadas, mortas sem o uso da razão, sem a remissão do pecado original. Não estando em condições, por sua idade, de praticar atos de Fé e de contrição (Batismo de desejo), elas não podem ser libertadas da falta original senão por meio do Batismo, conferido in ‘fide Ecclesiae’, não o recebendo, ‘elas não renascem na água e no Espírito Santo’ (Jo. 3,5) e portanto não são admitidas no Reino de Deus: não terão entretanto, nenhuma pena, ao contrário, segundo a opinião comum dos teólogos gozarão de certa bem-aventurança natural. Como diz São Tomás: ‘elas serão felizes, participando amplamente da bondade divina nas perfeições naturais’ (II Sent. d.33 q.11. a.2; cf. d.45, q.1, ª2: Suma Teológica supl. Q. 79. a.4). essa concepção teológica, apesar de não ser explícita [mas implícita, sim], nas Sagradas Escrituras, está fundada sobre a justiça de Deus, a qual não pode infligir castigos pessoais a quem não possui pecados pessoais. Logo, a sorte das crianças mortas sem Batismo, como observa São Gregório de Nissa (PG 46.177-80), deve-se distinguir da dos adultos que, por falta própria, desdenharam o Batismo; contudo, elas não serão admitidas à felicidade sobrenatural, como pensavam os pelagianos contra os quais se pronunciaram, o Concílio de Cartago em 418 (Dez. U. 102 note4) e Santo Agostinho (De anima e eius origine, 12, 17: PL 44. 505). O limbo das crianças dura eternamente, pois, aqueles que morreram somente com o pecado original estão fixados neste estado para sempre. Esta doutrina foi explicitada [e não inventada como o desejaria a ‘nova teologia’] pelos grandes teólogos do século XIII” (palavra limbos col. 1358).
*
Em conclusão, queremos acrescentar que compreendemos perfeitamente a dor dos pais cristãos que não puderam batizar seus filhinhos e o desejo que têm de saber alguma coisa mais sobre o seu destino. Mas como já tivemos a ocasião de dizer, não há necessidade de inventar fábulas nem, menos ainda, de negar o limbo, para os consolar: o aprofundamento teológico sobre a questão oferece abundantes motivos de consolação; trata-se somente de torná-lo conhecido. Sentimo-nos, além disso, no dever de lembrar a gravidade da hora presente e a ameaça insistente do neo-modernismo, que hoje parece corromper mesmo os melhores na Igreja. Tudo isso exige, dos que querem ser e permanecer realmente filhos da Igreja, a mais rigorosa fidelidade ao seu Magistério e à teologia católica autentica, para não pôr em perigo sua própria Fé e não cooperar para essa demolição da Igreja por seus inimigos internos, expressa impropriamente por Paulo VI como “a autodemolição da Igreja”.
Gregorius
(Revista SIM SIM NÃO NÃO n° 45 ? Setembro de 1996
 REFLEXÕES SOBRE O VALOR DOS DOCUMENTOS DO CONCÍLIO VATICANO II
Capítulo Primeiro: o "status quaestionis"

Nos últimos meses, na Itália, viu-se ressurgir o debate sobre o Concílio Vaticano II e sua interpretação graças a duas publicações importantes, dois livros que adotam posições opostas. O primeiro é O Concílio Ecumênico Vaticano II ? Contraponto para sua história1, obra que reúne as intervenções de Mons. Agostino Marchetto, atual secretário do Conselho Pontifício da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes, a respeito da interpretação dos textos conciliares. O segundo é a Breve História do Concílio Vaticano II2, um resumo da famosa História do Concílio Vaticano II em cinco volumes, do prof. Giuseppe Alberigo, chefe do Instituto de Ciências religiosas de Bolonha.

Por que interessar-nos pela publicação das enésimas obras sobre o Concílio Vaticano II? Pelo fato desses dois textos constituírem uma espécie de manifesto das duas posições opostas sobre o Concílio, oposição abertamente reconhecida pelos próprios autores, que não hesitaram a fazer críticas recíprocas.

A linha da "escola" dossetiana de Bolonha, que se impõe um pouco em todo o mundo católico e não católico, é bem conhecida; ela vê no Concílio uma nova Pentecostes para a Igreja, uma nova passagem do Espírito Santo, que teria feito a Igreja reencontrar a autenticidade da mensagem cristã, perdida ao longo dos séculos3. Nessa perspectiva, o Concílio teria moldado um processo de renovação, de modernização (aggionarmento), de abertura ao mundo nunca vista, na medida em que apaga os anos de oposição obscurantista da Igreja em relação ao mundo moderno. Um acontecimento, portanto, em descontinuidade com o passado, cheio de novidades radicais, e também um acontecimento que marcou o início de um processo de renovação que não deve se limitar apenas à aplicação exclusiva dos decretos conciliares, e sim incitar a continuação do processo de modernização que o Concílio iniciou. É a célebre fidelidade ao "espírito do Concílio", isto é, fidelidade ao ideal deaggionarmento contínuo.

A afirmação do prof. Alberigo a esse respeito é muito clara: "A prioridade do "concílio", na medida em que é um acontecimento que reuniu uma assembléia de mais de dois mil bispos, aparece mais forte mesmo em relação a suas decisões, que não podem ser lidas como regras frias e abstratas, mas são como uma expressão e um prolongamento do próprio acontecimento4.

Essa teoria de um novo início na Igreja é a justo título atacada por Mons. Marchetto: "Se, na Igreja o "acontecimento" não é assim tão importante e torna-se uma ruptura, uma novidade absoluta, o nascimento de uma nova Igreja, uma revolução copérnica, a passagem para um outro Catolicismo... essa perspectiva não poderá nem deverá ser aceita, precisamente por causa da especificidade católica"5.

Aprovamos o princípio segundo o qual, no ensino da Igreja, não pode haver realmente nada de novo, porque a Igreja, como magistralmente ensina São Vicente de Lérins, "na sábia fidelidade às antigas doutrinas, só procura, com extremo zelo, fazer o seguinte: aperfeiçoar e purificar o que ela recebeu dos antigos em forma de esboço; consolidar e reforçar o que já foi exprimido com precisão; guardar o que já foi confirmado e definido". Entretanto, é necessário fazer no mínimo uma crítica precisa em relação à posição de Marchetto, saudada com entusiasmo pelo cardeal Ruini, e compartilhada ao mesmo tempo por João Paulo II e pelo atual Pontífice, todos os dois partidários de uma leitura do Concílio à luz da Tradição".

Mons. Marchetto acusa diversas vezes a linha de interpretação da escola de Bolonha de ser "ideológica", isto é, de ler o Concílio segundo o critério preconcebido do acontecimento em ruptura e em descontinuidade com o passado. Alberigo e seus colaboradores detêm-se arbitrariamente nos textos do Concílio que dão mais importância ao momento da novidade, esquecendo, em contrapartida, aqueles que manifestam a continuidade com a Tradição6. Nessa perspectiva, Mons. Marchetto opõe a sua linha de interpretação ? na sua opinião, mais fiel às intenções dos próprios padres conciliares ? que considera o Concílio como um todo7. Nessa perspectiva, compreender-se-ia que, nos textos conciliares, "houve um aggiornamento... a coexistência de nova et vetera (coisas novas e antigas), de fidelidade e de abertura, como o demonstram, além do mais, todos os textos aprovados no Concílio"8.

Tal afirmação em si é problemática, pois é justamente sobre as nova que se coloca a questão. De nada serve demonstrar que há textos em continuidade com o ensino de sempre (o que ninguém jamais discutiu); o problema, ao contrário é a presença de elementos novos e ilegítimos que provêm do pensamento moderno, condenado diversas vezes e não de um aprofundamento do depositum fidei. Mas este problema, só este, já mereceria ser tratado à parte, e já foi objeto de um considerável número de estudos.

Dizíamos que a escola de Mons. Marchetto acusa a escola de Bolonha de ideologismo. Mas num certo sentido, é o próprio Mons. Marchetto que cai, por sua vez, numa espécie de ideologismo, ao afirmar: "O acontecimento, portanto, é um sínodo ecumênico..., portanto não há que considerar como um preconceito o fato de analisá-lo como tal, a partir do que ele é para a fé católica, mesmo com seu caráter próprio, que não pode contradizer o que os outros Concílios ecumênicos definiram"9.

Com essa afirmação, Mons. Marchetto pressupõe o que deveria ser demonstrado, isto é, que o Concílio Vaticano II goza da infalibilidade que caracterizou os Concílios ecumênicos precedentes e, conseqüentemente, que ele não pode conter em si nada que esteja em contradição não apenas com as definições dos outros Concílios, mas também com todo o Magistério ordinário precedente. Eis o ponto determinante, a viga mestra que sustenta toda a argumentação.

Essa questão é de uma grande importância e não pode ser evitada; ela aflige a consciência de muitos católicos, que fazem da fidelidade ao Concílio Vaticano II um problema de consciência, e consideram que a presença de elementos discutíveis nos textos do Concílio poderia de certo modo ferir gravemente o dogma da infalibilidade do Papa, ou colocar em discussão a continuidade do ensino da Igreja. A acuidade com a qual esse problema é sentido manifesta-se igualmente no fato de que o livro de mons. Marchetto já foi reeditado apenas alguns meses depois de sua primeira publicação.

Claro que a questão central é a do valor dos documentos do Concílio. A intenção de nossa intervenção é de responder as perguntas mais freqüentes: Os ensinamentos de um Concílio ecumênico (no caso, o Vaticano II) gozam ipso facto de infalibilidade? Quais são as condições para que um ensinamento seja infalível? É possível discutir um pronunciamento oficial da hierarquia católica?

A conclusão a que chegamos, e que tentaremos apresentar, articula-se do seguinte modo:

O Concílio Vaticano II:

1. Quanto ao valor dos documentos: pode ser discutido;
2. Quanto ao conteúdo dos documentos: deve ser discutido;
3. Quanto às condições atuais: deve ser colocado entre parênteses.
Capítulo Segundo: quaestio de quibus numquam fallitu (da Infalibilidade)
Interrogar-se sobre o valor dos documentos do Concílio implica fazer uma reflexão mais geral de potestate Magisterii (sobre o poder do Magistério).

Hoje, no mundo católico e no mundo não católico, são difundidas duas posições extremas, todas as duas errôneas e perigosas; posições que podemos considerar como as duas objeções principais a nossa tese: a dos infalibilistas e a dos que limitam a infalibilidade às decisões ex cathedra.

[Nota metodológica importante: construímos nossa argumentação, nesse segundo capítulo, de acordo com o esquema clássico da Summa Theologiae, cuja clareza lógica e explicativa é inigualável. Apresentamos os videtur quod, ou seja, as possíveis objeções à tese (seguidas de um número), que serão resolvidas no final. Entre esses dois pontos ? objeções e resoluções ? desenvolveremos o corpus da argumentação].

2.1 Videtur quod

Objeção 1: Há aqueles que poderíamos denominar de "infalibilistas", que consideram que nenhuma declaração oficial pode ser discutida, de modo nenhum, e com razão ainda mais forte se tal declaração for expressa da forma extraordinária que é um Concílio. Eles se referem freqüentemente à obediência cega inaciana, segundo a célebre expressão perinde ac cadaver, ou citam a décima terceira regra do sentire cum Ecclesia tirada dos Exercícios de Santo Inácio: "Para não nos afastarmos em nada da verdade, devemos sempre estar dispostos a crer que o que nos parece branco é preto, se a Igreja hierárquica assim o determinar; pois é necessário crer que entre Jesus Cristo, Nosso Senhor, que é o Esposo, e a Igreja, que é sua Esposa, há um só Espírito que nos governa e dirige para a salvação de nossas almas. Porque pelo mesmo Espírito e Senhor nosso, que deu os dez Mandamentos, é regida e governada a nossa Santa Madre Igreja"10.
É nessa mesma linha que está a afirmação categórica de Pio XII: "Que se em seus Atos, os Soberanos Pontífices fizerem um julgamento sobre uma questão até então discutida, fica então patente para todos que, conforme o espírito e a vontade dos próprios Soberanos Pontífices, essa questão não poderá mais ser tida como questão livre entre teólogos"11.

Chegando a esse ponto, aparecem apenas duas soluções: ou alinhar-se com as declarações dos Pontífices [conciliares], considerando-as em continuidade com o ensino dos predecessores, mesmo que o contrário seja evidente12, ou considerar que a sede [de Pedro] está vacante.

Objeção 2: Há aqueles que limitam a infalibilidade às decisões ex cathedra, deixando total liberdade de julgamento quanto às outras declarações. Para eles, em geral, a infalibilidade concerne exclusivamente o papa no ato de definir uma doutrina em matéria de fé e de moral, isto é, quando o objeto está diretamente ligado às verdades reveladas por Deus, claramente ligadas à Revelação (de fide) e/ou quando o Papa fala solenemente. O texto chave de referência é o do Concílio Vaticano I: "o Pontífice Romano, quando fala ex cathedra, isto é, quando, cumprindo seu ofício de pastor e de doutor de todos os cristãos, define em virtude de sua suprema autoridade apostólica, que uma doutrina em matéria de fé ou de moral deve ser admitida por toda a Igreja, goza... dessa infalibilidade de que o Divino Redentor quis que sua Igreja fosse dotada, quando ela define uma doutrina concernente à fé ou na moral"13. Conseqüentemente, as outras declarações, isto é, tanto aquelas que não têm ligação direta com a dogmática e a moral, quanto as que emanam de encíclicas, condenações, etc., só teriam algum caráter obrigatório temporariamente.

Essa posição pode ser encontrada em diversos níveis, do simples fiel à alta hierarquia, especialmente entre os defensores do Concílio Vaticano II. Estes, na verdade, apesar de constatarem oposições teoricamente insolúveis entre os textos do Vaticano II e certos ensinamentos dos Papas precedentes, especialmente os textos que dizem respeito a condenações de diferentes aspectos da modernidade (cf. a célebre afirmação do então cardeal Ratzinger sobre a Gaudium et Spes, qualificando-a de "contra-syllabus"), consideram essas condenações como declarações passíveis de revisão, nas quais a Igreja não engajou a plenitude de sua autoridade.
2.2 Sed Contra

1- A infalível garantia da assistência divina não está limitada apenas aos atos do Magistério solene; ela estende-se também ao Magistério ordinário, sem entretanto engajar nem assegurar da mesma maneira todos os atos14.

2- Para a infalibilidade do papa e do Magistério ordinário da Igreja "é necessário que a verdade ensinada seja proposta como já definida ou como tendo sido sempre crida ou admitida pela Igreja, ou como atestada pelo acordo unânime e constante dos teólogos como verdade católica"15.
2.2.1 Verdade e Autoridade

Parece-nos oportuno começar por uma consideração geral. A crise atual contribuiu para o surgimento de uma mentalidade muito difundida no mundo católico, mas que não é uma mentalidade católica. Referimo-nos a essa idéia banalizada de que a obediência ao Papa e aos bispos deveria ser cega, incondicional, isto é, justificada pela autoridade que eles representam, independentemente do que eles ensinam. Tal mentalidade deixa transparecer um pensamento legalista, segundo o qual uma afirmação seria verdadeira por ter sido pronunciada por uma autoridade legítima, e não por causa de sua verdade intrínseca. Assim, seria a autoridade que criaria o direito e a verdade, e ela não limitar-se-ia a reconhecê-los, guardá-los e ensiná-los.

Esta posição pode ser resumida da seguinte maneira: "o próprio do catolicismo não é a verdade comprovada e mantida pela autoridade, ao contrário, é a autoridade, fonte de uma "verdade" que não tem valor em si, mas no ditame que a consagra"16. Mas essa posição, repetimo-lo, não é a posição da Igreja católica, que recebeu de Nosso Senhor um ensinamento completamente diferente. O próprio Jesus quis ressaltar que "Minha doutrina não vem de Mim, mas d'Aquele que Me enviou. Se alguém quiser fazer a vontade d'Ele reconhecerá se minha doutrina vem de Deus, ou se falo de Mim mesmo" (Jo. 7, 16-17). E São Paulo, seu vas electionis, não diz outra coisa: "Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie um evangelho diferente daquele que vos temos anunciado, seja anátema!" (Gal. 1, 8). Enfim, o texto de Pastor Aeternus, que define a infalibilidade do Papa reforça a idéia de que "O Espírito Santo foi prometido aos sucessores de Pedro não para que eles proponham, por Sua revelação, uma nova doutrina, mas para que guardem religiosamente e ensinem fielmente, graças à Sua assistência, a revelação transmitida pelos Apóstolos, isto é, o depósito de fé"17.

A perspectiva católica é simples: a autoridade está a serviço da verdade. Portanto, de modo algum é possível exigir obediência quando o ensino proposto é contrário à verdade. Isso não significa que o julgamento sobre a verdade seja deixado por conta do livre-arbítrio de cada um. Entre os dois extremos (obediência absoluta e livre-arbítrio) há uma gradação, que será objeto de nossa análise logo a seguir. Mas antes é necessário repetir que a autoridade existe na Igreja como um meio, e não como um fim. Na verdade, é justamente por causa dessa grande confusão sobre a relação entre autoridade e verdade que os "revolucionários" puderam introduzir os germes da crise atual para a corrente sanguínea católica, sem que os "anticorpos" reagissem à terrível infecção. Abusando da obediência para impor suas falsas doutrinas, a cada tentativa que alguém fizesse para manifestar seu desacordo, utilizaram a acusação de desobediência para isolar o pobre infeliz e assim, quebrar toda e qualquer resistência. É este mau uso da virtude de obediência que Mons. Lefebvre magistralmente definiu como "o golpe de mestre de Satanás".
2.2.2 Magistério infalível e Magistério canônico18

O Magistério da Igreja, cujo poder reside ou junto ao Pontífice isoladamente ou junto ao episcopado cum Petro et sub Petro, não se expressa sempre no mesmo nível.

O grau mais alto do Magistério compreende a Revelação divina que Jesus confiou à sua Igreja para que ela a guarde e transmita fielmente. Nesse nível, a infalibilidade do Magistério está garantida.

Acompanhemos passo a passo a afirmação de Billot: "O poder infalível do magistério tem como objeto primário coisas de fé e de costumes que estão contidas formalmente no depósito da revelação católica, de modo explícito ou implícito"19.

O teólogo jesuíta considera o objeto (quae continentur in deposito catholicae revelationis), isto é, tudo que o Cristo ensinou aos Apóstolos e tudo o que os próprios Apóstolos aprenderam do Espírito Santo, e que nos é dado tanto pelas Escrituras quanto pela Tradição não escrita. Isso significa que neste nível, a infalibilidade do Magistério "estende-se somente às verdades reveladas por Deus sobrenaturalmente"20.

"Em segundo lugar, [o poder infalível do magistério] se estende também a outras verdades não reveladas em si mesmas, que, no entanto, são requeridas para que o depósito da revelação seja conservado íntegro, e, nomeadamente, se estende às numerosas condenações de doutrina e os fatos dogmáticos"21. Isso significa que Cristo prometeu Sua assistência especial não apenas para que a Igreja receba e transmita fielmente seu ensinamento, mas também para que ela o guarde e o desenvolva ao longo dos séculos. Eis porque o Magistério infalível se estende também às verdades incluídas nas precedentes, mas não ainda explicitamente enunciadas quoad nos, e também às proposições a que ele garante a verdade de modo absoluto (definições infalíveis, mas não dogmáticas), desde que não sejam objeto de fé divina.

Nesse ponto o cardeal Journet faz uma reflexão muito importante e de muitas conseqüências; ele afirma que, para os três tipos de verdades indicadas acima, o Senhor Jesus dá a sua Igreja uma assistência especial, uma assistência absolutamente infalível. Mas o Magistério da Igreja, acrescenta o cardeal, "não fundamenta, ele condiciona o assentimento infalível de fé. É esta sua mais alta função, e está absorvida pela assistência divina"22.

O Magistério infalível exerce portanto função de comunicação da verdade revelada; ele é verdadeira causa segunda, sua ação não fundamenta a infalibilidade do conteúdo (que é fundamentada em Deus, que não pode nem se enganar nem nos enganar), mas de certa forma a garante.
Pode-se compreender a infalibilidade do ensinamento do romano Pontífice quando ele define ex cathedra uma verdade como sendo revelada, como foi o caso do Vaticano I. Na verdade, o que o Papa faz é apenas declarar solenemente o que o próprio Deus revelou por Cristo ou pelos Apóstolos; a obediência ao Papa é, realmente, a obediência direta ao próprio Deus, e obediência indireta ao Papa como Seu instrumento e Seu intermediário.

Os problemas, por assim dizer, começam em outro nível, que comumente chamamos de "verdades especulativas secundárias". Esse último adjetivo poderia induzir a um desagradável equívoco, o de fazer pensar que essas verdades não teriam importância para a conservação da fé.
Na verdade, existem muitas verdades que não pertencem ao depositum fidei mas estão a ele ligadas (como por exemplo as verdades filosóficas da philosophia perennis, que teve em Santo Tomás sua mais alta expressão, e que a Igreja inúmeras vezes mandou que se ensinasse e seguisse). Há também as verdades ainda não definidas pela Igreja de modo imutável (por exemplo as conclusões teológicas universalmente ensinadas ou cridas).

Essas verdades são garantidas prudencialmente (de maneira diferente que a autoridade absoluta, que concerne as verdades especulativas primárias) na medida em que a Igreja não é mais um simples intermediário dos ensinamentos divinos; "ela age em virtude de seu poder canônico, que promulga o que convém ou não ensinar e crer, para preservar a inteligência dos fiéis dos perigos que ameaçam sua fé... Nesse momento, a Igreja não intervém, como na fé divina, a título de simples condição de nosso assentimento. Ela própria torna-se fundamento imediato de um assentimento (cujo fundamento mediato é Deus, que rege a Igreja) que se pode chamar de... obediência eclesiástica, fé eclesiástica, assentimento religioso, piedoso assentimento"23.

Que tipo de obediência, então, deve-se a esse tipo de Magistério?
Primeiramente, é preciso enfatizar que, no seio desse vasto domínio das verdades que gozam de uma assistência prudencial, há uma diferença decisiva. Existe na verdade ensinamentos que a Igreja propôs de modo constante e universal, nos quais ela entende estar utilizando a plenitude de sua autoridade prudencial. Nesse caso, "não hesitamos em dizer que o Magistério propõe tais verdades em virtude de uma assistência prática prudencial, que é realmente e apropriadamente infalível, de sorte que estaremos seguros da prudência de cada um desses ensinamentos, e portanto, praticamente seguros da verdade intrínseca, especulativa, de cada um deles"24. Nesse caso fala-se não de verdade infalível, mas de certeza infalível (infallibilis securitas).
Além do mais, há ensinamentos nos quais a Igreja não entende estar utilizando a plenitude de sua autoridade prudencial; nesse caso, "diremos que o Magistério propõe tais ensinamentos de um modo falível"25.

Disso tudo podemos concluir o que se segue: no caso do Magistério declarativo, pelo fato que se obedece propriamente a Deus e à Igreja somente enquanto mediadora, a obediência devida será de ordem teologal (própria da virtude teologal da fé). Quanto ao Magistério prudencial, em contrapartida, a obediência devida depende do grau com o qual o Magistério engaja sua autoridade: "se o Magistério é natural, a obediência será, por si, natural. Se o magistério se realiza de um modo analógico e sobrenatural, a virtude de docilidade e de obediência se realizará, também, de modo analógico e sobrenatural"26.

No caso da assistência prudencial falível, é então possível que o Papa ou uma Congregação romana se equivoquem. O que deverá ser feito nesse caso? "Será lícito sentir de modo diferente ... duvidar...; no entanto, não será lícito contradizer publicamente, em reverência à autoridade sagrada ...; mas deve-se guardar o silêncio, que é chamado obsequioso"27. Entretanto, queremos enfatizar que, no caso de perigo próximo para a fé, mesmo a repreensão pública é necessária28.

2.3 Solução das dificuldades

Resposta à objeção 1: O texto de Santo Inácio é preciso: "Para não nos afastarmos em nada da verdade, devemos sempre estar dispostos a crer que o que nos parece branco é preto, se a Igreja hierárquica assim o determinar". O verbo utilizado nos envia diretamente ao primeiro grau do Magistério, o Magistério infalível. Vimos de fato que o ato correspondente a tal ensinamento é a obediência da Fé que adere à verdade revelada por Deus e transmitida pela Igreja em virtude da própria autoridade Daquele que revelou.

Essa obediência "cega" do ponto de vista humano (no sentido de que não se compreende a evidência racional da verdade relevada) é na realidade esclarecida pela virtude teologal da Fé, cuja certeza é superior a qualquer evidência intelectual porque é Deus quem revela. Mas no caso em que a Igreja hierárquica não pretenda definir nada, tal obediência sobrenatural seria desproporcional em relação a seu objeto. Repetimos: a obediência deve depender do grau com o qual o Magistério emprega sua autoridade. Assim fica resolvida a primeira dificuldade.

Pode-se raciocinar da mesma maneira sobre o ensinamento de Pio XII. O próprio Pontífice, de fato, especifica que o assentimento deve ser dado "segundo a intenção e a vontade dos Pontífices". Trata-se ainda da importância da intenção de querer definir alguma coisa ou de engajar o mais alto grau de sua autoridade.

Resposta à objeção 2: Respondemos amplamente a essa objeção no decorrer de nosso texto, quando falamos do Magistério canônico. Reafirmamos a noção segundo a qual a infalibilidade do Magistério estende-se além do ensinamento ex cathedra definido pelo Concílio Vaticano I, nas condições subscritas. Billot afirma com muita clareza: "Tudo o que, seja através de um juízo solene, seja através do magistério ordinário e universal, é proposto pela Igreja como sendo revelado por Deus deve ser crido com fé divina, e quem resistir com pertinácia incorre em heresia. As demais verdades definidas pelo mesmo magistério, parece que devem ser cridas com fé eclesiástica, e não divina"29.

O ponto chave, que implica obediência à Fé, é o fato de se ensinar alguma coisa "tamquam a Deo revelatum". No caso da fé eclesiástica, ao contrário, é necessário, repetimos mais uma vez, que alguma coisa seja definida. Isso nos remete à distinção feita acima entre uma assistência prudente falível e uma assistência prudente infalível.

Capítulo Terceiro: o Concilio Vaticano II em questão

Depois de ter esclarecido os princípios que a reflexão teológica nos oferece, resta ver de que modo esses princípios são aplicáveis ao Concílio Vaticano II.

Permitam-nos, antes de mais nada, colocar em evidência um corolário da argumentação precedente: "O que acabamos de expor seria aplicável também a um Concílio ecumênico, ao que comumente é considerado como um ato do magistério extraordinário"?

Recorremos mais uma vez ao raciocínio do cardeal Journet: "O poder de dirigir a Igreja universal reside primeiro no Soberano Pontífice, depois no colégio episcopal unido a ele; e este poder pode ser exercido ou pelo Soberano Pontífice exclusivamente, ou por ele e o colégio episcopal solidariamente. O poder do Soberano Pontífice sozinho e o poder do Soberano Pontífice unido ao colégio apostólico constituem não dois poderes distintos, mas um só poder supremo considerado, sob um aspecto, como a cabeça da Igreja docente onde ele reside integralmente como em sua própria fonte; sob outro aspecto, concomitantemente como a cabeça e o corpo da Igreja docente..." 30

A conseqüência dessa verdade é que as decisões de um concílio "são peremptórias quando são pronunciadas em colaboração atual com o Soberano Pontífice, ou ulteriormente ratificados por ele"31.

A distinção entre o ensinamento do Papa seorsim ou simul cum Episcopis concerne, portanto, a mobilidade de exercício do Magistério (o Chefe sozinho ou Chefe e todo o corpo docente), e não sua essência.

O grau de infalibilidade com que o Magistério se exprime depende portanto da vontade, da intenção do Papa e dos bispos a ele unidos. Não há coincidência definitiva entre Magistério extraordinário (no caso presente, um Concílio) e Magistério infalível.

As duas características (caráter extraordinário e infalibilidade), na verdade se colocam em dois níveis qualitativamente diferentes. Enquanto o caráter ordinário ou extraordinário refere-se à modalidade de expressão do Magistério, a infalibilidade diz respeito à autoridade que a Igreja pretende engajar em determinado ensinamento. Imagina-se em geral que quanto mais alto o nível hierárquico que exprime um ensinamento, mais a autoridade da Igreja fica comprometida; conseqüentemente o ensinamento do Papa ou o de um concílio ecumênico comportaria automaticamente a plenitude da autoridade (infalibilidade) da Igreja. Mas não é assim, pois a modalidade com que o Magistério se exprime é um elemento importante mas não decisivo.

Para haver um ensinamento infalível, é certamente necessário que seja o Soberano Pontífice que ensina (sozinho ou através de um Concílio); mas esta condição não é suficiente. Há na verdade dois outros elementos que condicionam a autoridade de um ensinamento: a intenção e a matéria tratada.

Propomos então a seguinte distinção:

1. quanto à modalidade, pode-se ter um Magistério ordinário ou extraordinário. Este último pode exprimir-se através do caráter extraordinário do Papa (ex cathedra) ou através de um caráter extraordinário colegial (Concílio ecumênico).
2. quanto à autoridade engajada, um ensinamento pode gozar de uma:
a) infalibilidade absoluta,
b) prudencial infalível ou
c) prudencial falível, como vimos no segundo capítulo, de acordo com a intenção manifestada e a matéria ensinada.
Torna-se claro, agora, que o problema central reside nesses dois elementos: a intenção e a matéria.
3.1 A intenção

Quando nos interrogamos sobre o valor de um documento, é preciso verificar qual a intenção que tiveram o Papa ou o Concílio no ato de ensinar, intenção que pode se manifestar ou por fórmulas claríssimas ("Nós definimos, nós declaramos...), ou sem elas32.
O fato de que essa intenção seja um elemento fundamental e determinante do valor de um documento sempre foi implicitamente admitido, e até mesmo explicitamente ensinado. Já vimos que os textos teológicos apoiando a adesão ao ensinamento do Papa, mesmo quando este se exprime de modo ordinário, remetem à questão de sua intenção.
Qual é o fundamento dessa verdade? Porque a referência insistente quanto à intenção de um ensinamento?

A resposta a tais perguntas é de uma importância crucial para quem quer se orientar na crise atual. Realmente, se é verdade que a Igreja teve que enfrentar períodos mais ou menos longos de crise, não é menos verdade que o período em vivemos é de uma gravidade especial. Nas reflexões dos maiores teólogos católicos, não está mencionado em lugar nenhum o caso em que, durante quase meio século, o Papa ou um Concílio veiculem erros. Donde a importância de partirmos de premissas bem fundadas.

O ponto central a compreender é que um ensinamento do Papa ou de um Concílio não tem como conseqüência ipso facto uma obediência incondicional: esta depende e é proporcional à intenção com que o Magistério pretende engajar sua autoridade. Vejamos agora como demonstrar isso.

Para construir nossa argumentação, partiremos de certos textos da reflexão teológica de S. Tomás de Aquino. Primeiramente, "intelligendum est Deum operari in rebus, quod tamen ipsae res propriam habeant operationem".33 A causalidade universal de Deus não suprime a causalidade própria das criaturas, ao contrário, a sustenta. Por exemplo, é certo que é Deus quem nos dá o sol ou a chuva, mas isso não invalida a causalidade física, passível de ser conhecida pela razão humana.

O mesmo raciocínio deve ser aplicado nessa causalidade particular que é a liberdade humana. Também nesse caso, Deus não destrói, mas configura-se como necessário à liberdade humana e fonte dessa liberdade. Na verdade, o Todo-poderoso pode dar sem nada perder de seu poder, só ele pode comunicar-se sob forma de puro dom, e portanto sem tornar-se dependente do dom que faz. A incompatibilidade aparente que existe na filosofia moderna entre "todo-poderoso" e "livre" é devida ao fato de que Deus não é mais considerado como Deus, mas como realidade imanente ao mundo.

Portanto, para S. Tomás, a totalidade causativa da Causa primeira não é um fator inibidor e sim um fator constitutivo da causalidade das causas segundas. Em outros termos: Deus age de modo que podemos ser realmente a causa de nossas escolhas precisamente na medida em que nosso ser depende dEle. Conseqüentemente, se não dependêssemos dEle, que é todo-poderoso, não poderíamos ser livres, pois é próprio do todo-poderoso ? e somente dEle ? tornar-nos livres.
O que é preciso reter, na profunda reflexão de S. Tomás, não minimiza, ao contrário, fundamenta a causalidade criada (causa segunda), e conserva suas particularidades: "[a divina Providência] move todos os seres segundo sua condição, de modo que, sob a moção divina, as causas necessárias produzem seus efeitos de modo necessário, e as causas contingentes produzem seu efeito de modo contingente"34.

Ora, o ser humano é um ser livre, caracterizado por duas faculdades essenciais, a inteligência e a vontade, que lhe permitem executar atos humanos, isto é, atos nos quais ele não é simplesmente causa, mas causa livre. Os atos humanos se diferenciam dos atos do homem pelo fato de que estes últimos são executados pelo homem, mas não livremente. No ato humano, por outro lado, diz-se que o homem sui actus est dominus (é senhor de seus próprios atos).
Um texto da Summa contra Gentiles mostra que os atos humanos não são absolutamente diminuídos pela ação divina: "O fim último de cada criatura é alcançar a semelhança divina... Quem age de modo voluntário alcança a semelhança divina precisamente no fato de agir livremente; vimos que, na verdade Deus tem um livre-arbítrio (l. I, c. LXXXVIII). Conseqüentemente, o livre-arbítrio não é subtraído pela Providência"35.

Eis então o ponto central: a ação providencial "respeita" a ordem criada, e portanto não interfere na liberdade humana naquilo que ela estabeleceu como pertencente ao livre-arbítrio humano.
Ora, o ato humano é sempre caracterizado por três componentes: o objeto que especifica o ato, a intenção daquele que age; ascircunstâncias nas quais ele age. Desses três elementos, o que constitui o aspecto formal é a intenção, portanto ela é o elemento fundamental para julgar a moralidade de um ato, pois é a intenção que indica tendência em direção ao fim (motus voluntatis in finem) 36.

De tudo isso conclui-se claramente que, onde não houver intenção, não existe ato humano propriamente dito.

Aplicando essas considerações ao domínio teológico, podemos fazer fecundas reflexões.
Tomemos, por exemplo, o caso da inspiração da Santa Escritura. Sabe-se que o que distingue particularmente a perspectiva católica da perspectiva islâmica, é o fato de que a inspiração divina não substitui de modo algum as faculdades dos escritores sagrados, o que aconteceria se considerássemos a inspiração como uma espécie de ditado. Ao contrário, a intervenção divina pressupõe e utiliza as capacidades humanas dos hagiógrafos. Reencontramos aqui o princípio tomista segundo o qual a causa primeira (a inspiração divina) conserva todas as características próprias à causa segunda (o autor humano), de modo que este último seja, em sua própria ordem, verdadeira causa. Os escritores sagrados agiram então inteligente e voluntariamente; seus atos não foram "substituídos" pela intervenção divina, mas elevados por ela.

Pensemos agora na ação sacramental. A Igreja ensina que o ministro do sacramento deve ter a intenção, mesmo que não seja atual, de fazer o que faz a Igreja, isto é, ordenar sua ação ao fim para o qual Deus a instituiu. Sem essa intenção, o sacramento é inválido. Reencontramos claramente o princípio tomista já enunciado: também na ação sacramental, Deus não pede um ato mecânico, mas um ato humano, caracterizado pela intenção.
Se este princípio é válido para o munus sanctificandi, não se compreende porque ele não deveria ser válido para o munus docendi.

A transmissão, o ensino da fé é feito por ministros ordenados para esse fim. Ora, esses ministros são seres humanos e guardam suas características humanas. Se o Papa ou um Concílio, no ato de ensinar, não têm a intenção de ensinar alguma coisa como tendo sido revelada por Jesus Cristo, como tendo sido sempre ensinada pela Igreja, ou não pretendam usar a plenitude de sua autoridade (infallibilis securitas), não vemos porque a assistência divina deveria substituir a mediação humana, querida por Deus como humana.

Conseqüentemente, é só no caso em que o Pontífice pretende exercer a plenitude do Magistério que lhe é garantida essa infalibilidade ativa e passiva in docendo, que lhe permite não apenas ser guiado na definição de uma verdade, mas também ser corrigido e detido in extremis no caso em que se aproxime do caminho que leva ao ensinamento de uma heresia.

É o bem conhecido princípio tomista: gratia non tollit naturam, sed perficit (a graça não destrói a natureza, mas aperfeiçoa-a). Em sua assistência à Igreja, Deus não substitui as mediações, Ele as supõe na integridade de suas faculdades e as eleva acima das simples possibilidades humanas.
Essas mediações, à medida que são livres, devem entretanto querer colaborar com a graça divina, predispondo tudo que lhe é próprio para poder receber a plenitude da assistência divina.
3.2 A matéria

O segundo aspecto determinante é o que é ensinado: a matéria.
Num estudo apresentado no Congresso de Sim Sim Não Não de 2004, o professor Pasqualucci analisou o texto do segundo Concílio de Nicéia (787), que invalidava o conciliábulo de Constantinopla de 753, criado ad hoc para aprovar as teses iconoclastas.
Nesse texto são formuladas expressamente as condições necessárias para a validade de um Concílio, entre as quais figura a "profissão de uma doutrina coerente com os concílios precedentes"37. Diante de um Concílio (o de Constantinopla) que tinha entrado em contradição com os ensinamentos dos Concílios precedentes , a posição dos padres reunidos em Nicéia foi clara: "Como um Concílio, que não concorda com os seis Concílios santos e ecumênicos que o precederam, poderia ser o sétimo?"38. É interessante observar a lógica dessa passagem: um Concílio é ortodoxo porque seu conteúdo é ortodoxo e não o inverso.

A ortodoxia da doutrina, sua conformidade com o ensinamento constante da Igreja, é portanto a condição sine qua non da validade de um Concílio (para aprofundar essa questão, remetemos o leitor à conferência do professor Pasqualluci publicada em Penser Vatican II quarante ans après. Actes du VIe. Congrès Théologique de Si Si No No. Rome, Janvier 2004. Courrier de Rome, 2004, pp. 75-128).

Esse princípio, que nos remete ao que afirmamos a respeito do sujeito da relação autoridade-verdade, manifesta de modo límpido a mens catholica: a autoridade está ao serviço da verdade; ela é um meio para que a verdade seja comunicada. A autoridade, dito de outro modo, não cria a verdade, ela a reconhece, guarda-a e ensina-a.

O sofisma subjacente a tantas concepções errôneas da autoridade pode ser enunciado da seguinte maneira: uma coisa é verdadeira, ela é legítima, porque ela é ensinada ou proposta pela autoridade. A perspectiva católica, ao contrário, assim como a de toda sã filosofia, afirma: desde que algo seja verdadeiro e legítimo, será ensinado e proposto pela autoridade.
Não são detalhes sem importância: a relação essencial encontra-se invertida, pois a razão de ser da autoridade é sua função instrumental em relação a uma ordem objetiva pré-existente. É bom repetir: a autoridade legítima é o meio, e não o fim. É por essa razão que a teologia afirma que o Magistério é a norma próxima da fé; o que significa "norma próxima", na verdade, se não há uma norma longínqua, mais alta, a que ela deverá conformar-se?

3.3 Conteúdo e intenção do Concílio Vaticano II

No caso do Concílio Vaticano II, é possível realizar o seguinte "percurso": a partir da constatação objetiva de proposições errôneas nos textos, pode-se remontar ao desvio da própria intenção do Concílio. A deformidade do conteúdo em relação ao Magistério infalível (absolutoou prudentialiter) é ratio cognoscendi da deformidade da intenção. Muito já foi dito e escrito sobre esses dois aspectos. Remetemos portanto os leitores aos estudos correspondentes, que trazem à luz tanto os aspectos problemáticos de textos conciliares quanto a anomalia das intenções declaradas pelos papas do Concílio em seus discursos antes, durante e depois do Concílio. Resta-nos aqui apenas lembrar o que esses estudos demonstraram, com abundância de documentação:

I. O Concílio Vaticano II não tem uma intenção conforme à da Igreja. Na verdade, ele não foi convocado para defender e desenvolver odepositum nem condenar os erros modernos, e sim com outras finalidades, estranhas à natureza da Igreja. Eis as intenções de João XXIII:

I.I. O aggionarmento: "A finalidade do Concílio não é a discussão desse ou daquele tema da doutrina fundamental da Igreja", mas estudar e expor a doutrina "através de formas de estudo e da formulação do pensamento contemporâneo" (Joannes XXIII PP., Discours d'Ouverture de la première session, 11 octobre 1962, in Les documents du Concile Oecuménique Vatican II, Padoue, Gregoriana Editrice, 1967, pp. 1078-1079).

I.2. O ecumenismo terrestre da não conversão: "Eis a proposta do II° Concílio Ecumênico do Vaticano, [que]... prepara de algum modo e aplaina a via em direção à unidade do gênero humano, fundamento necessário para fazer que a cidade terrestre se torne à imagem da cidade celeste (Idem, p. 1082).

I.3. A não condenação dos erros: "A Esposa do Cristo prefere recorrer ao remédio da misericórdia a brandir as armas da severidade. Ela estima que, ao invés de condenar, ela responde melhor às necessidades de nossa época, colocando em evidência as riquezas de sua doutrina" (Ibidem, p.1079). O que Paulo VI disse é ainda mais claro:

I.4. A autoconsciência da Igreja: "Parece-nos que chegou a hora em que a verdade que diz respeito à Igreja do Cristo deva ser cada vez mais explorada, ordenada e expressa, não talvez através dessas fórmulas solenes chamadas definições dogmáticas, mas através de declarações pelas quais a Igreja diz a si própria, num ensinamento mais explícito e autorizado, o que ela pensa de si mesma" (Paulus VI PP., Discours, d'Ouverture de la deuxième session, 29 septembre 1963, in Les documents du Concile Oecuménique Vatican II, cit., p. 1095).

I.5. A intenção ecumênica: "A convocação de Concílio... tende a uma ecumenicidade que gostaria de ser total, universal" (Ibidem, p. 1098).

I.6. Diálogo com o mundo contemporâneo: "Que o mundo o saiba: a Igreja o vê com uma profunda compreensão, com uma verdadeira admiração, sinceramente disposta não a subjugá-lo, mas a servi-lo; não a depreciá-lo, mas fazer crescer sua dignidade; não a condená-lo, mas a apoiá-lo e salvá-lo" (Ibidem, p. 1100).

Todas essas intenções declaradas não podem de modo algum engajar a plenitude de autoridade da Igreja, que recebeu uma missão completamente diferente de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eis porque, diante dos textos conciliares, é preciso seguir as indicações do próprio secretariado geral do Concílio (16 de novembro de 1964): "Dado o costume geral dos concílios e a finalidade pastoral do Concílio atual, este define que somente devem ser considerados como sendo da Igreja os pontos referentes à fé e à moral, claramente declarados por ele. Quanto aos outros pontos propostos pelo Concílio, sendo um ensinamento do Magistério supremo da Igreja, todos os fiéis devem recebê-los e compreendê-los segundo o próprio espírito do Concílio, como resulta tanto da matéria tratada quanto da maneira pela qual ele se exprime, segundo as regras da interpretação teológica".
Conclui-se de tudo isso que o Concílio Vaticano II deve ser considerado como assistido prudencialmente pelo Santo Espírito, mas não segundo a infaillibilis securitas; e isso, porque o Concílio não tem a intenção de definir o que quer que seja , nem em relação à Revelação, nem em relação às conclusões teológicas. Além do mais, não há a menor certeza "da verdade intrínseca, especulativa" de cada um dos ensinamentos do Concílio.
E há um segundo aspecto:
II. Certos ensinamentos do Concílio Vaticano II não estão de acordo com o Magistério infalível da Igreja; eles se situam até freqüentemente numa linha oposta ao Magistério precedente. É o caso, por exemplo, do ensinamento sobre a liberdade religiosa, sobre a relação Igreja-Estado, sobre o ecumenismo.
CONCLUSÃO

Retomemos ponto por ponto a tese que apresentamos no início deste estudo.
Primeiramente afirmamos que o Concílio Vaticano II, quanto ao valor dos documentos, pode ser colocado em discussão e isso se deve às considerações feitas sobre a intenção do próprio Concílio. Contrariamente à afirmação de Monsenhor Marchetto, o Concílio não teve a intenção de engajar a plenitude da autoridade magisterial ou ao menos ele não fez isso nos pontos mais controvertidos.

As posições sobre a liberdade religiosa, por exemplo, ou sobre o ecumenismo, são apresentadas pelo Concílio como "verdades" adaptadas ao contexto cultural de hoje em dia. Portanto, elas não concernem, como dizia o cardeal Journet, "o que convém ou não ensinar e crer, se quisermos preservar a inteligência dos fiéis dos perigos que ameaçam sua fé". Ao contrário, concernem o que se deve pensar para melhor dialogar com o mundo contemporâneo; domínio que não engaja a plenitude da autoridade magisterial.
Monsenhor Marchetto (cf. SSNN 146 I ª. parte desse artigo) pressupõe então uma plenitude de autoridade que não existe.

Ele certamente possui o mérito de se ter oposto ao monopólio do prof. Alberigo e do Instituto de Bolonha, mas sua "solução", na realidade, não resolve nada, porque ela recusa a priori uma análise dos conteúdos problemáticos dos documentos conciliares.
A seguir, quanto ao conteúdo dos documentos, o Concílio deve ser colocado em discussão.
Se na realidade a ausência de intenção de engajar a plenitude da autoridade magisterial deixa aberta a possibilidade de haver erro, a constatação dos erros presentes nos textos constitui, nós vimos, um motivo suficiente para se colocar em discussão as partes problemáticas do Concílio.
Não é possível invocar uma leitura do Concílio segundo a Tradição se, além do mais, constata-se a presença de elementos que parecem contrários a essa Tradição.
Muito provavelmente, o problema é saber em que consiste essa Tradição, ou seja, saber se ela é considerada como depositum transmitido e desenvolvido ou se ela é compreendida de acordo com a acepção progressista, que a associa à mudança, mesmo no "essentialibus".
Face às afirmações conciliares que constituíram matéria para as condenações repetidas pelo passado, aplica-se o princípio: contra facta non valet argumentum.
Enfim, quanto às condições atuais, os pontos problemáticos do Concílio devem ser colocados ao menos entre parênteses.
Essa consideração prática pode parecer surpreendente; mas na verdade, ela nos parece a mais adaptada ao momento que estamos vivendo.
A urgência de um retorno à sã doutrina não precisa mais de ser demonstrada. Até Roma reconhece essa urgência, diante do impressionante processo de descristianização por um lado, e o enfraquecimento do catolicismo que acontece sob nossos olhos, por outro. Mas o mais freqüente é correr o risco de entrar num beco sem saída ao tentar abordar a questão do Vaticano II. Faz-se desse Concílio o que ele não é: o fundamento definitivo de fidelidade à Igreja católica, tanto para aqueles e são os mais numerosos que o defendem quanto para aqueles que o criticam. É essa a posição mais arriscada a paralisar a ação apostólica e desperdiçar energias.
É necessário, antes de qualquer outra coisa, reconhecer que esse Concílio não pode ser considerado do mesmo modo que os Concílios ecumênicos que o precederam, que definiram dogmas, condenaram heresias, invocaram a plenitude de sua autoridade para confirmar na fé o povo cristão, protegendo-o dos perigos.

Em segundo lugar, é preciso ter a coragem de reconhecer a falência do Concílio. O que segundo a voz geral devia ter uma finalidade essencialmente pastoral gerou uma grande confusão e um grande desvio. Nos textos conciliares, infelizmente, há "refúgio" para todas as posições, desde as mais progressistas às mais conservadoras, por causa da incrível ambigüidade dos textos; uma ambigüidade que ainda permanece voluntariamente conservada.

Tomemos, a título de exemplo, o caso do célebre subsistit in da constituição Lumen Gentium: se o objetivo do Concílio era de expor a fé numa linguagem mais adaptada à nossa época, e portanto mais compreensível para todos, por que utilizar tal terminologia? Por que recorrer a uma expressão de uso pouco corrente, a não ser para poder abrir caminho para as diferentes interpretações (não ortodoxas) desse texto na fase do pós-Concílio? O que impedia de dizer mais claramente: "a Igreja do Cristo é a Igreja católica", levando em consideração o apelo tantas vezes repetido de se ler o Concílio à luz da Tradição? Assim, esse texto pode ser interpretado tanto num sentido tradicional quanto num sentido progressista, dando margem a uma e outra interpretação, tornando-se uma ocasião de confusão e de discussões sem rumo.

Há outras passagens, entretanto, que não podem ser lidas à luz da Tradição, pois constituem uma absoluta novidade que entra em conflito com o ensino constante dos Papas precedentes. Os textos consagrados à liberdade religiosa, por exemplo, estão em contradição com o ensino pontifical que vinha sendo exposto desde Gregório XVI.

O Concílio demonstrou, e continua a demonstrar, que ele não é um ponto de referência seguro para que possa oferecer uma garantia da totalidade das bases da fé. Seus documentos escondem erros e equívocos que se tornam mais insidiosos na medida em que estão fugazmente escondidos no meio de textos que podem ser considerados, de modo geral, ortodoxos.

Para o bem da Igreja, é urgente voltar às fontes seguras da doutrina, aos ensinamentos garantidos pelo selo do Magistério infalível, sobretudo ali onde ele se pronunciou sobre os erros de nossa época.
(Sim Sim Não Não, nos. 146 - Março de 2006 - e 147)

1.A. Marchetto, Il Concilio Ecumênico Vaticano II. Contrapounto per la sua storia, Cité du Vatican, Libreria Editrice Vaticana, 2005.
2.G. Alberigo, Breve storia del Concilio Vaticano II, Bologne, Il Mulino, 2005.
3.Cf. G. Alberigo, Brève histoire..., cit., p.163.
4.Ibidem, p. 12. Ver também essa afirmação do autor, colocada na conclusão do livro, e portanto de sentido mais forte: "Se a impulsão conciliar se fechasse sobre si mesma, isso causaria uma decepção muito grande, frustrando um excepcional movimento de espera e de disponibilidade, uma autêntica ocasião histórica." (p. 176).
5.A. Marchetto, Le Concile Oecuménique Vatican II, cit., p.381.
6.Cf. Ibidem, p. 359.
7.Cf. Ibidem, p.375.
8.Ibidem, p.386.
9.Ibidem.
10.Santo Inácio de Loyola, Exercícios espirituais, parágrafo 365.
11.Pius PP.XII, Humani generis, 12 de agosto de 1950.
12.Lembro-me que um de meus amigos, bastante conhecido na Itália por suas posições conservadoras, respondeu-me um dia, perante as provas de evidentes oposições entre as posições de João Paulo II e as de seus predecessores: "Adoto, em relação às encíclicas de João Paulo II, o comportamento que Dei Filius recomenda diante das oposições aparentes entre a fé e a razão: como não pode haver oposição entre elas, considero que a oposição é apenas aparente, mesmo que por enquanto não se consiga demonstrá-lo".
13.Concílio Vaticano I, Pastor Aeternus, 18 de julho de 1870.
14.Labourdette, Revue Thomiste, 1950, p.38.
15.Dict. De Théologie Catholique, article Infaillibilité du pape, VII, col.1705.
16.L. Méroz, L'Obéissance dans l'Église. Aveugle ou clairvoyante?, Genebra, Claude Martingay, p.39. Note-se que o autor faz essa afirmação para refutá-la em seguida, pois ele não compartilha esse ponto de vista.
17.Concílio Vaticano I, Pastor Aeternus, 18 de julho de l870. Salaverri afirma que o Concílio Vaticano I, apesar de fazê-lo implicitamente, definiu que "o Magistério é tradicional, isto é, instituído não para ensinar novas verdades, mas para guardar, defender e enunciar o depósito de verdade recebido" (I. Salavarri, Sacrae Theologiae Summa, t. I, III, parágrafo 512).
18.O termo "canônico", em relação ao Magistério, não é habitual em teologia. O cardeal Journet o emprega para indicar que, nesse caso, a Igreja utiliza seu poder canônico para ensinar ou condenar qualquer coisa que, mesmo não estando contida na Revelação divina, condiciona sua salvaguarda e sua promulgação.
19."Potestas infallibilis magisterii pro objecto primario habet res fidei et morum quae in deposito catholicae revelationis formaliter explicite vel formaliter implicite continentur" L. Billot, De Ecclesia Christi, I,th. XVII.
20.B. Bartmann, Manuel de Théologie Dogmatique, II, parágrafo 141.
21."Secundario vero [potestas infallibilis magisterii] extenditu ad alias etiam veritates in se non revelatas, quae tamen requiruntur ut revelationis depositum integrum custodiatur, et nominatim quidem ad multíplices propositionum censuras et ad facta dogmatica" L. Billot, De Ecclesia Christi, cit.
22.Ibidem, p. 446.
23.Ibidem, p. 454.
24.Ibidem, p. 456.
25.Ibidem.
26.Ibidem, p. 454.
27."Licebit dissentire... licebit dubitare...; nec tamen pro reverentia auctoritatis sacrae faz erit publice contradicere...; sed silentium servandum est, quod obsequosium vocant" I. Salaverri,Sacrae Theologiae Summa, cit., III, parágrafo 675.
28.Cf. Santo Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II-II, q.XXXIII, a.4, e também Super Epistolam ad Galatas, lect.II.
29.Quidquid ab Ecclesia sive solemni iudicio, sive ordinario et universali magisterio tamquam a Deo revelatum proponitur, fide divina credendum est, et pertinaciter obnitens incurrit haeresim. Caetera vera sed ecclesiastica fice videntur esse credenda L. BILLOT, De Ecclesia Christi, cit., th. XVIII.
30.C. Journet, L'Église du Verbe Incarné, cit., p. 531.
31.C. Journet, L'Église du Verbe Incarné, cit., p. 536.
32.C. Journet, L'Égise du Verbe Incarné, cit., p. 578: "O "sentido" de um ato pontifical, sua intenção de dirimir definitivamente uma questão, pode aparecer com evidência, independentemente de todas as fórmulas convencionais".
33.Summa Theologiae, I, q. CV, a. 5: "é necessário compreender que Deus age nas coisas de modo que estas guardem sua operação própria."
34.Summa Theologiae, I-II, q. X, a.4: "ex causis necessariis per motionem divinam sequuntur effectus ex necessitate; ex causis autem contingentibus sequuntur effectus contingentes".
35.Summa contra Gentiles, I, c. LXXII: "Finis autem ultimus cujiuslibet craturae est ut consequatur divinam similitudinem in hoc quo libere agit; ostensum est enim (1. I,c.LXXXVIII) liberum arbitrium in Deo esse. Non igitur per providentiam subtrahitur voluntatis libertas".
36.Para uma análise detalhada da intentio, cf. Summa Theologie, I-II, q. XII.
37.G. Alberigo, Introdução a Décisions des conciles oecuméniques, Turin, UTET, 1978, p. 34.
38.Cit. In V. Peri: Les Conciles et les Eglises. Recherche historique sur la tradition d'universalité des synodes oecuméniques, Rome, 1965, pp.24-25.