ESTUDO TEOLÓGICO DAS SAGRAÇÕES EPISCOPAIS DE 1988
“As Sagrações episcopais de Sua Ex.ª Revm.ª D. LEFEBVRE
foram necessárias apesar do ‘NÃO’ do PAPA”
Dez anos transcorreram (1988-1998) desde as sagrações episcopais efetuadas por S. Ex.a. Revm.a. D. Marcel Lefebvre. Nestes dez anos o "estado de necessidade" da Igreja e das almas, ao qual ele apelou para motivar o seu gesto, se agravou ulteriormente. Julgamos, por isso, sumamente útil publicar dois estudos produzidos pelo Si Si No No sobre o assunto — um teológico e um canônico— necessariamente resumidos mas — cremos — exaustivos, para que as almas não se privem, por falta de informação adequada, do socorro que a Providência, por meio da obra de D. Lefebvre lhes quis oferecer nestes tempos de extraordinária crise na Igreja. Iniciamos pela publicação deste estudo teológico.
Parte I
Premissa:
Estas notas não são para aqueles que negam a existência duma crise eclesial de excepcional gravidade, quer por não terem olhos para vê-la ou por terem interesse em negá-la; as observações presentes se dirigem aos que, embora admitindo que haja uma crise extraordinária na Igreja, contudo não sabem justificar, à luz da doutrina católica, a atitude extraordinária tomada por D. Lefebvre a 30 de junho de 1988, quando, não obstante o "não" do Papa, transmitiu os poderes da ordem episcopal a 4 membros da Fraternidade por ele fundada.
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Como se sabe, D. Lefebvre justificou o seu ato alegando o estado de necessidade. A força desta causa de escusa não foi avaliada pelas autoridades vaticanas, as quais não a contestaram no plano doutrinário, mas responderam com um argumento de fato, ou seja, que não havia estado de necessidade [1], sabendo bem que, se ele existisse, o ato de D. Lefebvre teria sido plenamente justificado, mesmo no que toca à negativa do Papa, pela doutrina católica sobre o estado de necessidade.
A força da justificação usada por D. Lefebvre evita, pelo contrário, subir mais, pelo simples fato de não ser, geralmente, muito conhecida a doutrina católica sobre o estado de necessidade, relativo aos casos extraordinários aos quais se aplicam princípios extraordinários. Nós nos propomos, em vista disso, elucidá-la, embora brevemente, para que, em matéria tão grave, se proceda com uma consciência bem informada e, por conseguinte, tranqüila.
Os princípios que aduziremos encontram-se em qualquer tratado De caritate erga proximum, De poenitentia (iurisdictio in specialibus adiunctis = jurisdição em circunstâncias extraordinárias), De Legibus (particularmente de cessatione legis ab intrinseco et de epikia sine recursu ad principem = epiquéia — no sentido próprio — sem recurso ao Superior), como também nos vários dicionários de teologia e direito canônico, nas palavras caridade, eqüidade, epiquéia, causas que escusam da obrigação legal, impossibilidade, necessidade, obediência, resistência ao poder injusto, cessação da obrigação da lei, etc.
Antes de mencionar os princípios fundamentais sobre o estado de necessidade e de aplicá-los ao caso em questão, urge sublinhar que é um contra-senso admitir uma crise extraordinária na Igreja e, ao mesmo tempo, pretender avaliar o que foi feito em tais circunstâncias extraordinárias com a medida das normas válidas nas circunstâncias ordinárias. É contrário à lógica e à própria doutrina da Igreja.
A lei, de fato, "deve fundar-se nas condições mais comuns da vida social e, por conseguinte, faz necessariamente abstração daquelas que se apresentam só raramente" [2]. E Santo Tomás diz: "As leis universais... são estabelecidas para o bem da massa. Por isso, ao instituí-las, o legislador tem presente o que acontece ordinariamente e na maior parte dos casos" (S. Th. II, II, q. 147, a. 4). Portanto — continua Santo Tomás — nos casos "que sucedem raramente" e nos quais "ocorre... o dever de agir à margem das leis ordinárias", "é preciso julgar com base em princípios mais altos do que as leis ordinárias" (S. Th. II, II, q. 51, a. 4). Estes "princípios mais altos" são os "princípios gerais do direito divino e também humano" (Suarez, De Legibus 1. VI c. VI, n.° 5) que requerem o silêncio da lei positiva.
A Igreja nos autoriza aplicar tais princípios quando, para os casos não previstos pela lei, remete aos princípios gerais do direito e ao parecer comum e constante dos Doutores, o qual, precisamente por ser comum e constante, se deve julgar canonizado pela Igreja [3].
Admitido isto, oferecemos, para a comodidade dos leitores, um prospecto dos argumentos de que trataremos a seguir:
1. Deveres e poderes de um Bispo em estado de necessidade
- Estado de necessidade e seus diversos graus.
- Atual estado de grave necessidade espiritual generalizada ou pública, isto é, grave necessidade de muitos.
- 1° princípio: a grave necessidade de muitos se equipara à extrema necessidade de cada um.
- 2° princípio: a grave necessidade geral ou pública sem esperança de socorro da parte dos legítimos pastores impõe, por direito natural e divino, um dever de socorrer "sub gravi", que para um Sacerdote e especialmente para um Bispo, está radicado no próprio estado.
- Atual estado de grave necessidade geral ou pública sem esperança de socorro por parte dos legítimos Pastores. Dever de suplência dos Bispos.
- 3° princípio: em grave necessidade geral ou pública o dever de socorro se estende ao poder de ordem (e não de jurisdição) e este último decorre do pedido dos fiéis, e não da concessão (consentimento) do Superior hierárquico (Ecclesia supplet iurisdictionem). Esta doutrina sobre a "Jurisdição de suplência" se aplica também ao caso dum Bispo que, em caso de necessidade extraordinária, sagra outro Bispo, sem estar em questão o primado de jurisdição do Papa / Confirmação histórica.
- Refutação de algumas objeções errôneas.
2. Solução do problema colocado pela negativa do Papa
- O "não" do Papa
- 4° princípio: em caso de necessidade, o dever de socorro é independente da causa de necessidade e, por conseguinte, obriga, mesmo no caso em que seria o Superior que estivesse a colocar as almas em estado de necessidade.
- 5° princípio: é próprio da necessidade fazer cessar no Superior o poder de obrigar e, se de fato obriga, a sua ordem não vincula: é "inefficax".
- 6° princípio: é próprio da necessidade pôr o súdito na impossibilidade (física ou moral) de obedecer.
- 7° princípio: quem, coagido pela necessidade, não obedece, não põe em questão a Autoridade no seu legítimo exercício.
- Uma palavra sobre a epiquéia "sine recursu ad Principem".
- Refutação de outras objeções errôneas.
- Conclusão.
1. Deveres e poderes de um Bispo em estado de necessidade
— Estado de necessidade e seus diversos graus
O estado de necessidade consiste "numa ameaça aos bens espirituais, à vida, liberdade e a outros bens terrenos" [4].
Se a ameaça diz respeito aos bens terrenos, existe necessidade natural; se é relativa aos bens espirituais, há necessidade espiritual, tanto "mais imperiosa do que a material', quanto os bens espirituais são mais importantes que os materiais [5].
Na realidade podem ocorrer vários graus de necessidade espiritual, mas os teólogos em geral distinguem cinco delas:
1) necessidade espiritual ordinária (ou comum): é aquela em que se encontra qualquer pecador em circunstâncias ordinárias;
2) necessidade espiritual grave: na qual se acha uma alma ameaçada em bens espirituais de grande importância, como a fé e os bons costumes;
3) necessidade espiritual quase extrema: em que está uma alma que, sem o socorro alheio, muito dificilmente se poderia salvar;
4) necessidade espiritual extrema: na qual se encontra uma alma que, sem o socorro alheio, não poderia salvar-se ou poderia tão dificilmente que a sua salvação se pode julgar moralmente impossível;
5) necessidade espiritual grave geral ou pública: na qual estão muitas almas ameaçadas em bens espirituais de grande importância, como a fé e os bons costumes. Canonistas e teólogos dão, comumente, como exemplo desta necessidade espiritual geral ou pública as epidemias e a difusão pública duma heresia [6].
— Atual estado de grave necessidade espiritual geral ou pública, ou seja, de muitas almas
Hoje existe um estado de grave necessidade espiritual generalizada (ou pública), porque muitos católicos estão ameaçados na fé e nos bons costumes pela difusão pública e incontestada do neomodernismo ou da autodenominada "nova teologia", já condenada por Pio XII, como sendo o acervo de erros que ameaçam subverter os fundamentos da Fé católica" [7], revivescência daquele modernismo já condenado por São Pio X como a "síntese de todas as heresias" [8].
Esta difusão pública dos erros e das heresias foi dramaticamente denunciada pelo próprio Paulo VI que chegou a falar de "autodemolição" da Igreja [9] e de "fumaça de satanás no templo de Deus"[10], e foi admitida também por João Paulo II no início do seu pontificado por ocasião dum Congresso para as missões populares, nestas palavras:
"É preciso admitir com realismo, com profunda e pungente sensibilidade que os cristãos hoje, em grande parte, se sentem perdidos; confusos, perplexos e até iludidos; espalharam-se, a mancheias, idéias opostas à verdade revelada e sempre ensinada; propalaram-se verdadeiras e explícitasheresias no campo dogmático e moral, originando dúvidas, confusões, rebeliões; alterou-se a liturgia; imersos no "relativismo" intelectual e moral, e daí no permissivismo, os cristãos foram tentados pelo ateísmo, agnosticismo, iluminismo vagamente moralista, por um cristianismo sociológico sem dogmas definidos e sem moral objetiva" [11].
Portanto, estado de grave necessidade pública ou geral: grave, porque são ameaçadas a fé e a moral;pública ou geral, porque estes bens espirituais, indispensáveis à salvação, estão ameaçados em"grande parte" do povo cristão.
Hoje, após vinte anos de pontificado, a situação não só não mudou, mas se deve afirmar notavelmente agravada. "Era de crer — reconheceu já Paulo VI — que depois do Concílio haveria uma temporada de sol para a História da Igreja. Ao contrário, veio uma temporada de nuvens, tempestades, dúvidas" [12]. Neste clima de "nuvens", "tempestade" e "dúvidas", as almas, apesar de tudo, devem tender ao porto da eterna salvação durante o breve tempo de prova concedido a elas. Quem pode negar que, em geral, hoje muitas almas se acham em estado de "grave necessidade espiritual"?
— 1° princípio: a grave necessidade de muitos se equipara à necessidade extrema de cada um
É doutrina comum dos teólogos e canonistas que a necessidade grave de muitos (geral ou pública) se equipara à necessidade extrema de cada um: "Gravis necessitas communis extremae equiparatur" (P. Palazzini, Dict. morale et canonicum, vol. I, p. 571).
É este um princípio fundamental, porque chega a dizer que na necessidade grave de muitos é lícito aquilo que o é na necessidade extrema de cada um. E isto — assim explicam os teólogos — por muitas razões:
1o.) porque, entre muitas pessoas em grave necessidade, não faltarão, em particular, almas em estado de extrema necessidade, numa epidemia, por exemplo, não faltarão almas incapazes dum ato de contrição perfeita e que, por conseguinte, têm necessidade, para salvar-se, da absolvição sacramental; igualmente, ao se difundir uma heresia, não faltarão almas incapazes de se defenderem dos sofismas dos hereges e, por isso, em perigo de perder a fé [12];
2o.) porque a grave necessidade espiritual de muitos é também uma ameaça ao bem comum da sociedade cristã: não só não é a necessidade de muitos — escreve Suarez — que não se torna extrema para as pessoas em particular, mas "em tal gênero de necessidade estão, quase sempre em grave perigo a própria religião cristã e a sua honra" [13].
É de notar que o bem comum se considera em perigo não só quando muitos são efetivamente prejudicados (em nosso caso: perdem a fé), mas também quando podem sê-lo (no nosso caso: podem perder a fé) pelo simples fato de subsistir uma causa objetiva que torna possível este dano [14].
Para julgar atualmente o bem comum em perigo, é suficiente a difusão de erros e heresias já condenados pela Igreja, que expõem as velhas gerações à perda da fé e privam as novas da transmissão integral da Doutrina, despojando a todos — velhos e jovens — dos bens a eles devidospela Hierarquia, segundo a norma do direito divino natural e positivo e também a norma do direito eclesiástico (can. 682 do Código piano-beneditino e can. 213 do novo Código): doutrina e Sacramentos, cujos ritos são hoje deixados ao sabor da "criatividade", ou seja, "ao capricho dos particulares, sejam mesmo membros dos clero" já condenado por Pio XII na Mediator Dei. Isto basta para dizer que hoje não apenas muitas almas se encontram em estado de grave necessidade, mas também fica comprometido o "duplo fim pretendido pela Igreja: o bem da comunidade religiosa e a eterna salvação [das almas]" [15] e, por conseguinte, está em jogo — é o comentário de Pio XII ao supracitado can. 582 — "o sentido e o próprio escopo de toda a vida da Igreja" [16] e, em conseqüência, o bem comum.
— 2° princípio: a grave necessidade geral ou pública sem esperança de socorro por parte dos legítimos Pastores impõe, por direito natural e divino, um dever de socorro "sub gravi" que, para um Sacerdote e, especialmente, para um Bispo, se funda no próprio estado.
A quem cabe socorrer as almas em estado de necessidade? A título de Justiça (ex ofício), cabe aos legítimos Pastores; contudo se, por qualquer motivo que seja, vir a faltar o socorro deles, a título de caridade (ex caritate), este dever recai sobre quem quer que tenha a possibilidade de prestar socorro[16]. Santo Afonso e Suarez observam que o poder de ordem acrescenta ao dever de caridade umdever de estado: o dever do estado sacerdotal, instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo precisamente para auxiliar as necessidades espirituais das almas [17].
É de notar que o dever de caridade, imposto pela necessidade das almas é um dever sub gravi, ou seja, sob pena de pecado mortal; de fato, o maior mandamento, o da caridade, obriga a socorrer o próximo em necessidade, principalmente espiritual, e obriga sob pena de pecado grave na necessidade extrema ou quase extrema, de muitos, que se equipara à primeira [18].
Por isso, escreve Génicot que "pode ser grave [se "cometida por omissão"] a obrigação de socorrer o povo que, doutra maneira, pelos esforços dos hereges e incrédulos, perderia a fé, sobretudo, porque às vezes é moralmente impossível aos mais simples reconhecerem os sofismas daqueles e, por isso, muitos provavelmente, se acharão em extrema necessidade" [19].
Este dever de caridade, em alguns casos, pode obrigar mesmo com risco da própria vida, fama e dos próprios bens. Santo Afonso diz que assim obriga a grave necessidade espiritual pública ou geral e, por isso, "há obrigação, com risco de vida, de administrar os sacramentos ao povo que, doutra maneira, estaria em perigo de perder a fé" [20]. Suarez é do mesmo parecer: "se eu soubesse que os hereges pregam uma heresia entre a povo, estarei obrigado a opor-me a estes mesmo com perigo (meu)" [21]. Por sua vez, Billuart escreve: "se um herege perverte com uma falsa doutrina uma comunidade inteira, um particular [isto é, o simples fiel e o sacerdote não oficialmente investido da cura daquelas almas] é obrigado, se puder, a impedi-lo com risco de vida. Se, de fato, qualquer um é obrigado a socorrer, com risco da vida, o bem comum temporal, com maior razão o deve fazer quanto ao bem espiritual. Tanto mais que, em tal caso, muitos particulares se encontrariam em extremo estado de necessidade. [22]
— Atual estado de grave necessidade geral sem esperança de socorro da parte dos legítimos Pastores
A atual necessidade grave e geral das almas está, comumente, sem esperança da parte dos legítimos Pastores, por estarem estes em geral ou perturbados ou paralisados pelo fluxo neomodernista eclesial.
É inegável, de fato, que as "idéias opostas à verdade revelada e sempre ensinada", as "verdadeiras e explícitas heresias no campo dogmático e moral” pelas quais "os cristãos, hoje se sentem perdidos, confusos, perplexos" [11], ou são diretamente propagadas pelos membros da Hierarquia (Bispos e autoridades romanas) ou os encontram coniventes ou mudos. "A Igreja — admitiu já Paulo VI — se encontra numa hora de inquietação, autocrítica, dir-se-ia até de autodemolição... A Igreja chega quase a se golpear a si mesma" [9]; ele que, dum modo teologicamente exato, chega a dizer que hoje a Igreja e as almas são agredidas pelos próprios ministros dela, como nos tempos do arianismo, quando "sacerdotes de Cristo combatiam contra Cristo" [23].
É um fato que Romano Amério, em Iota Unum, pôde documentar os desvios doutrinais do pós-concílio unicamente com "textos conciliares... atos da Santa Sé... alocuções papais... declarações de cardeais e bispos... pronunciamentos de conferências episcopais... artigos de L'Osservatore Romano"; em suma, com "manifestações oficiais ou oficiosas da Igreja hierárquica" [24],acrescentando à conclusão o fato de ter "a corrupção doutrinária cessado de ser fenômeno de pequenos círculos esotéricos" e "se tornado uma ação pública do corpo eclesial com as homilias, os livros, na escola e na catequese" [25].
No mesmo Iota unum, Romano Amério ilustra o que ele chama a "desistência" da Autoridade, ou seja, a renúncia da Autoridade Suprema ao exercício do poder recebido de Nosso Senhor Jesus Cristo para condenar o erro e afastar os errados [26]. "Tantos esperam — assim diz Paulo VI — do Papa gestos clamorosos, intervenções enérgicas e decisivas. O Papa não julga dever seguir outra linha que não seja a da confiança em Jesus Cristo, a Quem importa a Sua Igreja mais que a qualquer outro. A Ele caberá acalmar a tempestade" [9], o que é de fé, mas não exonera Pedro do dever de fazer as vezes de Cristo no governo da Igreja, retomando-lhe e endireitando-lhe o timão.
Quanto ao pontificado de João Paulo II, pode ser suficiente a seguinte declaração do Prefeito da Congregação para a Fé, cardeal Ratzinger, à Conferência episcopal chilena: "O mito da dureza vaticana frente aos desvios progressistas se revelou como sendo uma vã elucubração. Até hoje seemitiram fundamentalmente apenas advertências e em nenhum caso penas canônicas no sentido próprio" [27].
A "desistência" da Autoridade Suprema diante do erro e dos errados comporta a mesma desistência de qualquer outra autoridade na Igreja. O próprio cardeal Ratzinger o documenta no mesmo discurso ao episcopado chileno: "O mesmo Bispo que, antes do Concílio, havia destituído um professor irrepreensível por sua linguagem um pouco rústica, não chegou ao ponto de, após o Concílio, afastar um lente que negava abertamente algumas verdades fundamentais da Fé".
Ora, onde quer que as almas não podem esperar socorro dos legítimos pastores, impõe-se, a qualquer que possa prestá-lo, o dever sub gravi de o fazer aos católicos "em grande parte" "tentados pelo ateísmo, agnosticismo... por um cristianismo sociológico, sem dogmas definidos nem moral objetiva", e este dever incumbe, antes de tudo, aos Bispos e depois aos Sacerdotes, porque não socorrer as almas em estado de necessidade espiritual é não apenas contrário ao preceito da caridade, mas também é atitude "directe pugnans cum statu episcopali et sacendotali', "que contradiz frontalmente o estado episcopal e sacerdotal” (Suarez).
— Dever de suplência dos Bispos
Este dever de socorro se impõe antes de tudo aos Bispos e a um título todo especial. Papado e Episcopado — escreve o cardeal Journet — "são duas formas, uma independente...; a outra subordinada, dum mesmo poder que vem de Cristo e é ordenado à salvação eterna das almas" [28]. Em palavras mais simples: Papa e Bispos são, na Igreja, por direito divino positivo, como marido e mulher na família por direito divino natural: o Bispo é subordinado ao Papa como a mulher deve sê-lo ao marido, mas ambos são ordenados ao mesmo fim: o bem da Igreja e a salvação das almas. E como se impõe, antes de tudo, à mulher um dever de suplência no limite das suas possibilidades, se o marido, com ou sem culpa sua, não cumpre bem os seus deveres, assim, acima de tudo, incumbe aos Bispos um dever de suplência, nos limites da sua possibilidade, quando o Papa, com ou sem culpa sua, não provir às necessidades das almas.
— 3° princípio: na grave necessidade pública, o dever de socorro é coextensivo ao dever de Ordem (e não de jurisdição) e o poder de jurisdição (pessoal) decorre do pedido dos fiéis e não do consentimento do Superior hierárquico (Ecclesia supplet iurisdictionem)
Em caso de necessidade, se é obrigado a prestar socorro, dentro do limite das própriaspossibilidades; o que, para um Sacerdote e um Bispo, equivale a dizer dentro dos limites do próprio poder de Ordem.
É por isso que, em necessidade extrema de cada um e em grave necessidade de muitos, qualquer Sacerdote é obrigado sub gravi a dar a absolvição sacramental, mesmo se privado de jurisdição [6]. Santo Afonso escreve que até "o excomungado vitando, se pode validamente administrar os sacramentos, está obrigado a administrá-los ‘in articulo mortis' [necessidade extrema do particular = necessidade grave de muitos] por preceito divino e natural, a que não se poderia opor o preceito humano da Igreja" [29].
Em suma: quando o exige a extrema necessidade de cada um ou a grave necessidade de muitos, pode-se licitamente, e mais se deve sob pena de pecado mortal, tudo o que se pode fazervalidamente em virtude do poder de Ordem. A jurisdição necessária se adquire, conforme o pedido das almas: veja-se o cân. 2261 §§ 2° e 3° do Código piano-beneditino, onde se diz que os fiéis podem"ex qualibet iusta causa" requerer os sacramentos ao Sacerdote excomungado [privado de jurisdição pela Igreja] e "então o excomungado, assim solicitado, pode administrá-los ("et tunc excomunicatus requisitu.s potest eadem ministrare"). "O seu (dos fiéis) pedido confere ao Sacerdote excomungado o poder de administrar os sacramentos", é o comentário do Pe. Hugueny O.P. [30]. Isto significa que, em caso de necessidade, o exercício do poder da Ordem, em toda a amplidão necessária, é posto em ação, não pela vontade do superior hierárquico, mas diretamente pelo estado de necessidade: "a ação proibida noutras circunstâncias se torna lícita e permitida pelo estado de necessidade" assim traz a Enciclopedia Cattolica sobre a palavra necessidade (estado de).
Em tais circunstâncias extraordinárias a jurisdição que falta se diz "suprida" pela Igreja. O Concílio de Trento (Sess. 14, c. 7), de fato, nos assegura ser contra o pensamento da Igreja a perdição das almas por motivo de restrições ou limitações jurídicas: "muito piedosamente, para ninguém se perder por este motivo, foi sempre observado na Igreja de Deus que nenhuma restrição [jurídica] subsista em perigo de morte [extrema necessidade do indivíduo, à qual se equipara a necessidade grave de muitos]" [31]. E Inocêncio XI, cortando qualquer controvérsia sobre o assunto, estabeleceu definitivamente que, em caso de necessidade, a Igreja supre a jurisdição que falta mesmo para os Sacerdotes hereges, degradados e excomungados vitandos [32].
O pensamento e a prática da Igreja têm por fundamento o princípio que, em caso de necessidade, se impõe, por direito natural e positivo, um grave dever de caridade e que a Igreja não tem nenhum poder contra o direito divino e natural. Já citamos Santo Afonso: "ao preceito divino e natural não se poderá opor o preceito humano da Igreja". Suarez, por sua vez, escreve: "A justiça ou a caridade mandam evitar... o dano do próximo e a este preceito (divino) não se pode opor racionalmente a lei humana" [33]. Santo Tomás, enfim, recorda que "as disposições do direito humano nunca podem contrariar o direito natural e a lei de Deus" (S. Th. II, II, q. 66, a. 7). Isto vale, preferencialmente, para o direito humano eclesiástico, ordenado a facilitar e não a impedir o exercício da caridade.
Por isso, o Pe. Cappello escreve ser certo que a Igreja supre a jurisdição para prover à extrema necessidade do indivíduo ou "à pública ou geral necessidade dos fiéis" [34]. "A razão é — explica Santo Afonso — que doutra maneira muitas almas se perderiam e, por este motivo, se presume razoavelmente a suplência da jurisdição por parte da Igreja" [35].
Noutros termos, como nas necessidades materiais as coisas voltam ao seu fim primordial, que é a utilidade de todos os homens em geral, assim, nas necessidades espirituais, o poder de ordem retorna ao seu primeiro destino, o de prover às necessidades de todas as almas em geral, e cai a limitação (ou privação total) da jurisdição oriunda das leis eclesiásticas [36]: "Qualquer sacerdote —explica Santo Tomás — em virtude do poder de ordem, tem poder indiferentemente sobre todos [os homens] e para todos os pecados; o fato de não poder absolver todos de todos os pecados depende da jurisdição imposta pela lei eclesiástica. Mas já que a “necessidade não está sujeita à lei" [Consilium de observ. Ieiun. De Reg. iur. (V Decretal) c. 4], em caso de necessidade, não está impedido pela disposição da Igreja de poder absolver mesmo sacramentalmente, dado que possui o poder de ordem" (S. Th. Suppl. Q. 8, a. 6).
("Sim Sim, Não Não" — no. 76 - Junho/99)
Notas:
[1] Motu Proprio de 2 de Julho de 1988;
[2] Brisbois, A propos des lois purement pénales, em Nouvelle revue Théologique 65 (1938), p. 1072;
[3] V. can. 20 do Código piano-beneditino e F. M. Cappello, S.I. Ius suppletorium, em Summa iuris canonici;
[4] V. E. Eichman, Trattato di diritto canonico e G. May Legittima difesa, resistenza, necessitá;
[5] Santo Tomás, Summa Theologiae Suppl. q.8, a.6; v. também P. Palazzini Dictionarium morale et canonicum, verbete Caritas (erga proximum);
[6] Veja-se, por exemplo, Palazzini Dictionarium morale et canonicum, verbete Caritas; Billuart De Charitate diss. IV, art. 3o.; Genicot, S.J., Institutiones Theologiae moralis vol. I, 217 A e B, etc;
[7] Humani Generis 1950;
[8] Motu Proprio, 18 de Novembro de 1907;
[9] Discurso ao Seminário Lombardo em Roma, 7 de Dezembro de 1968;
[10] Discurso de 30 de Junho de 1972;
[11] L'Osservatore Romano, 7 de Fevereiro de 1981;
[12] V.E. Genicot, S.J., Instituciones Theologiae Moralis, vol. I, 217 B; Billuart De Caritate Diss. IV art. 3o.; Santo Afonso Theologiae moralis lib. 3, no. 27;
[14] V. Roberti-Palazzini, Dizionario di teologia morale ed. Studium, verbete Jurisdição suprida;
[16] Discurso (em francês) ao segundo Congresso mundial do apostolado dos leigos, Outubro de 1957;
[17] Santo Afonso, Theologia moralis, L. 6, tract. 4, no. 625 e Opere Morali ed. Marietti, Torino, 1848, tract. XVI, cap. VI no. 126-127.
[18] I Jo. 3,17; S. Th. IIa IIae, q. 32, a.1 e a.5, ad 2; q. 17, a.I; Billuart De Caritate dissert. IV, art. 3o.;
[19] V.E. Genicot, S.J., op. cit. vol. I, 217 B e C;
[20] Theologia moralis, L.3, tract. 3, no. 27;
[21] F. Suarez, De Charitate disput. IX, sect. II, no.4;
[22] De Charitate dissert IV, art. 3o.;
[23] São Jerônimo, Adversus Luciferianos;
[24] R. Americo, Iota Unum, ed. Ricciardi, 1a. edição, pp. 3-4;
[25] Ibidem, p. 597;
[26] Ibidem, p. 126 e ss.
[27] Il Sabbato, 30 de Julho / 5 de Agosto de 1988;
[29] Santo Afonso, Theologia moralis, L. 6, tract. 4, no. 560;
[30] Somme Theologique, t. XIII La Penitence, p. 420;
[31] F. Suarez (De poenitentiae disput XXVI, sect. IV no. 6) se pergunta se este costume perpétuo e comum observado pela Igreja não seja de instituição divina. Em todo o caso — conclui — a Igreja não o poderia abolir, porque isto seria usar do poder "não para edificar, mas para demolir" (ibid);
[32] Santo Afonso, De Poenitentiae sacramento, tratado XVI, c. V, no. 92;
[33] F. Suarez, De Legibus, L. VI, cap. VII, no. 13;
[34] F. M. Cappello, S. J., Summa iuris canonici, vol. I, p. 258, no. 258, § 2o; v. também P PalazziniDictionarium cit. verbete iurisdictio suppleta;
[35] Santo Afonso, De Poenitentiae sacramento, tratado XVI, c. V, no. 90;
[36] Santo Tomás, S. Th. IIa IIae, q. 66, a.7; cf. IIa IIae, q. 32, a.7, ad 3.
— A doutrina sobre a "jurisdição suprida" se aplica também no caso dum Bispo que em caso de necessidade extraordinária ordena outro Bispo, não estando em discussão o primado de jurisdição do Romano Pontífice
Confirmação histórica:
A doutrina sobre a jurisdição de suplência é tratada comumente quando se trata do sacramento da Penitência, porque a falta de jurisdição torna a confissão não só ilícita, mas também inválida. Esta doutrina, porém, pode ser analogicamente aplicada também noutros setores [37]. Por isso, como um sacerdote, em extrema necessidade do indivíduo ou grave necessidade pública sem esperança de socorro dos legítimos pastores, pode e até deve absolver sacramentalmente "dado que [para isso] tem o poder de ordem" (S. Th. cit.), assim um Bispo, solicitado por uma necessidade grave e geral das almas sem esperança de socorro dos legítimos Pastores pode e, ademais, tem o dever de transmitir o episcopado, visto que tem o poder de ordem para isso.
O Pe. Cappello S.J. disse ser certo que a Igreja supre a jurisdição para prover à necessidade pública ou geral dos fiéis" em todos os casos "nos quais manifestou expressamente ou pelo menos tacitamente a vontade de supri-la" [38]. Ora, consta pela história que a Igreja manifestou, ao menos tacitamente, querer suprir a jurisdição para a sagração de outros Bispos em caso de grave necessidade espiritual generalizada ou pública: na história mais recente, atrás da "cortina de ferro", Bispos "clandestinos" foram sagrados sem aprovação pontifícia para proverem às graves necessidades espirituais gerais das almas, e na história mais antiga, durante a crise ariana, alguns Bispos, entre os quais Santo Eusébio de Samosata, sem mandato pontifício, não somente sagraram, mas até estabeleceram em sedes episcopais outros Bispos, cuja santidade a Igreja não hesitou em proclamar [39].
O cardeal Billot escreve que Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu o primado, mas deixou d'algum modo indefinidos os limites do poder episcopal, precisamente porque "não teria sido conveniente que, por direito divino, tivesse sido determinado imutavelmente o que deveria ficar, às vezes, sujeito a mudança segundo a variedade das circunstâncias e tempos, pela maior ou menor facilidade de recurso à Sé Apostólica e outras coisas semelhantes" (De Ecclesia Christi q. XV, § 2°, p. 713).
De fato, a história confirma que o estado de necessidade se tem ampliado, com os deveres dos Bispos, e também o seu poder de jurisdição. Dom A. Grea, cujo apego ao primado paira sobre toda suspeita, no seu livro De l'Eglise et de sa divine constitution, dedica um capítulo inteiro à "Ação extraordinária do episcopado" (vol. I, p. 218). Não só nos inícios do cristianismo — assim diz ele — as "necessidades da Igreja e do Evangelho" requeriam que o poder de Ordem episcopal fosse exercitado em toda a sua amplitude, sem limites de jurisdição (p. 214), mas também, em épocas sucessivas, circunstâncias extraordinárias requeriam "manifestações mais raras e mais extraordinárias ainda" do poder episcopal (p. 218), para "pôr remédio às necessidades urgentes do povo cristão" (ibid. e s.), para as quais não havia esperança de socorro da parte dos legítimos Pastores e do Papa. Em tais circunstâncias, nas quais está em jogo também o bem comum da Igreja, as limitações de jurisdição caem e "o que existe de universal” no poder do Bispo — diz D. Grea —"vem diretamente em socorro das almas" (p. 218): "Assim no século IV se vê Santo Eusébio de Samosata percorrer as Igrejas orientais devastadas pelos arianos e ordenar para elas Bispos católicos sem ter sobre elas nenhuma jurisdição especial” (op. cit., p. 218).
Palazzini recorda que "hoje a jurisdição [sobre uma Diocese] é conferida [aos Bispos] direta e expressamente pelo Papa [...]; antigamente, porém, dependia mais indiretamente do vigário de Cristo como se por si mesma [quasi ex sese] emanasse do Papa sobre os Bispos que estavam em união, paz com a Igreja Romana, mãe e cabeça de todas as Igrejas" [40]. E "como se fora por si mesma" a jurisdição parece proveniente do Papado na história da Igreja sempre que o requereu uma grave necessidade da Igreja e das almas. Em tais circunstâncias extraordinárias — diz Dom Grea — o episcopado agiu “fortalecido pelo consentimento tácito da sua Cabeça certificado danecessidade" (op. cit. vol. 1, p. 220). É de notar que Dom Grea não diz que o consentimento do Papa certifica os Bispos da necessidade, mas que, ao contrário, a necessidade os torna certos do consentimento do Papa. E por que — pergunta-se — jamais a necessidade torna "certo" o consentimento do seu Superior, consentimento que aqueles Bispos ignoravam? Evidentemente, porque, em caso de necessidade, o parecer positivo de Pedro é devido: se, em virtude do primado, Pedro recebe de Cristo o poder de ampliar ou restringir o exercício do poder de ordem episcopal, recebe também de Cristo o dever de ampliá-lo ou restringi-lo segundo a necessidade da Igreja e das almas. No exercício do poder das chaves, de fato, Cristo permanece sempre o "agente principal” ("chave por excelência") e "nenhum outro homem pode exercê-lo [o poder das chaves], como agente principal” (S. Th. Suppl. Q. 19, a. 4), mas apenas como "instrumento e ministro de Cristo" ("chave de ministério") (S. Th. Suppl. q. 18, a. 4). Também as chaves de Pedro são "chaves de ministério" e, por isso, nem mesmo Pedro pode usar arbitrariamente do poder das chaves, mas deve ater-se à ordem divina. E, conforme esta, a jurisdição decorre até os outros por meio de Pedro, certamente, mas de modo que se proveja "de maneira suficiente à salvação dos fiéis" (Santo Tomás,4 Contra Gentiles, c. 72). Em vista disso, se Pedro impedisse que se proveja suficientemente à necessidade das almas, agiria contra a ordem divina, e incorreria em culpa gravíssima (v S. Th. Suppl. q. 8, a. 4-5-6-8-9 e ss.).
O Primado não é outra coisa senão a posse plena daquele "poder público de governar os fiéis a fim de alcançarem a vida eterna" [41]; é a plenitude daquele poder de jurisdição "concedido não para vantagem do depositário, mas para o bem do povo e a honra de Deus" (S. Th. Suppl. q. 8, a. 5, ad. 1 ) e "nenhuma razão de direito nem senso de eqüidade tolera que o que foi salutarmente instituído para a vantagem dos homens, se converta em prejuízo deles (Digesto cit. em S. Th. I II, q. 96, a. 6, e II II, q. 60, a. 5, ad. 2). Por isso, Dom Grea escreve que as manifestações extraordinárias do poder episcopal não põem em questão a doutrina sobre o primado, porque a necessidade sem esperança de socorro dos legítimos Pastores reconduz a "ação extraordinária" do episcopado "às leis essenciais da hierarquia", que não se reduzem plenamente às leis ordinárias de jurisdição.
Também Santo Tomás, ilustrando a constituição hierárquica da Igreja, escreve: "quem possui um poder universal [o Papa] pode exercer, sobre todos, o poder das chaves: aqueles, porém, que, sob a autoridade dele, receberam um poder distinto [os Bispos] não podem usar do poder das chaves sobre ninguém, mas só sobre os que lhe couberam por sorte; salvo os casos de necessidade (S. Th. Suppl. q. 20, a. I). Isto quer dizer que a constituição hierárquica da Igreja e, por conseguinte, o primado, não é posta em questão pela "ação doutro modo proibida e que se torna lícita e permitida pelo estado de necessidade" [42].
— Refutação de algumas objeções errôneas
No caso de D. Lefebvre, ao invés, alguns, na ânsia de salvar o primado (que, em se tratando de estado de necessidade, está fora de questão), pretenderam encerrar o poder de socorro dos Bispos dentro dos limites do poder de jurisdição. Por exemplo, conforme os autores dum opúsculo [43], o problema das sagrações episcopais de D. Lefebvre é encarado não só quanto ao poder de ordem, mas também quanto ao poder de jurisdição e já que está na "ordem de coisas queridas pelo próprio Cristo" que compete sempre e somente ao Sumo Pontífice "elevar o inferior [...] ao nível de sucessor dos Apóstolos, conferindo-lhe uma determinada jurisdição [coisa, porém, que D. Lefebvre não fez, precisando que transmitia só o poder de ordem]" (p. I S), "em caso nenhum", nem mesmo em caso de necessidade, um Bispo pode ordenar outro Bispo sem mandato do Papa. E a exclusão é tão rigorosa que os autores do opúsculo chegam a aduzir o exemplo dos Sacramentos: "Assim — escrevem — quem não tem água para batizar, não pode batizar o filho moribundo com laranjada" e "quem não é sacerdote não pode dar a absolvição a um agonizante que, ademais, não precisaria dela" [37].
Má teologia e péssima lógica. Deixamos a resposta a Santo Tomás: "O batismo deve a sua eficácia à consagração da matéria sacramental [e, por isso, ninguém poderá jamais batizar com laranjada]...Ao invés, a efìcácia do sacramento da penitência [assim como o Sacramento da Ordem] deriva da consagração do ministro" (S. Th. Suppl. q. 8, a. 6, ad 3).
Por isso, quem não é sacerdote não pode absolver nem mesmo em caso de necessidade, porque carece do poder de ordem; se o fizesse, operaria invalidamente e, portanto, não tendo poder, não teria nem o dever. Pelo contrário, o detentor do poder de ordem opera validamente e, por conseguinte, em caso de necessidade, pode licitamente fazer tudo o que opera validamente: um sacerdote pode absolver e um bispo também sagrar um outro bispo "dado que tem o poder de ordem para isso" (S. Th. cit.). As leis que limitam o poder de ordem episcopal não tornam nulo o ato nem o sujeito incapaz de praticá-lo validamente, como acontece, ao invés, com as leis divinas sobre a matéria e o ministro dos Sacramentos, pois aquelas são leis de jurisdição e, por conseguinte, eclesiásticas. De fato, escreve Santo Afonso "sobre a matéria ou a forma dos sacramentos" a Igreja não tem poder (nil potest Ecclesia), "mas, no tocante à jurisdição, Ela pode suprir e se presume que certamente supra para o bem das almas" [44].
Efetivamente, enquanto em toda a história da Igreja não se acha um só cristão batizado com suco de laranja, encontram-se, porém, bispos nomeados, sagrados e instituídos “inconsulto Petro” (Sem Consultar Pedro) (Suarez) e até em período de sedivacância [45]. Isso jamais teria acontecido se entrasse na "ordem de coisas querida pelo próprio Cristo" que compete sempre e somente a Pedro nomear e instituir os bispos e "em caso nenhum" a outro bispo. Se fosse realmente assim, a "ordem de coisas querida pelo próprio Cristo" teria sido violada repetidamente e durante séculos pela Igreja, o que é insustentável.
Também os autores do opúsculo, defronte do argumento histórico (pp. 63 e seg.), escrevem que isto demonstra "saber a Igreja ser realista" e que o Concílio de Nicéia (325), designando os metropolitas como competentes para a nomeação e instituição dos Bispos, fala "explicitamente sobre dificuldades de ordem geográfica" (p. 64 nota a). Decididamente, os autores do opúsculo não se dão conta de sua contradição: como demonstra o exemplo dos Sacramentos aduzido por eles, quando se trata da "ordem de coisas querida pelo próprio Cristo", a Igreja não pode ser "realista" nem aqui se consideram motivos de ordem geográfìca. Assim, por exemplo, não foi permitido à Igreja ser "realista" quanto ao ministro ou à matéria dos Sacramentos e, por isso, jamais pôde consentir por "motivos geográficos" que um Padre ordenasse um Bispo [46] nem mesmo nos países em que não se cultiva a vinha, se celebrasse a Santa Missa com matéria diferente da do vinho de uva (imaginem-se as dificuldades do cardeal Massaia na Abissínia). Se, portanto, a Igreja, para a nomeação e instituição dos Bispos, pode ser "realista" e ter em conta as "dificuldades geográficas", é sinal de que não está na "ordem das coisas querida pelo próprio Cristo" ser a nomeação e instituição dos Bispos sempre e somente da competência do Romano Pontífice e que, por isso, não é plenamente verdadeiro que, "em nenhum caso", nem mesmo de necessidade, um Bispo possa nomear e sagrar um outro. E, de fato, no passado, por exemplo, quando a heresia ariana ameaçava toda a Igreja, assim como em nossos dias além da cortina de ferro, por exigência duma necessidade grave sem esperança de socorro das almas e da Igreja, Bispos sagraram, não só válida, mas também licitamente, a outros Bispos, embora não tivessem recebido, para isso, mandato do Papa e, por sua vez, os Bispos sagrados, sem terem recebido mandato papal, exerceram válida e também licitamente o próprio poder episcopal, porque a necessidade da Igreja e das almas o requeria. Por sinal, alguns teólogos, feitas as devidas precisões, aventam a hipótese de a Igreja suprir tacitamente a jurisdição mesmo para os Bispos ortodoxos cismáticos, a fim de que com a sagração de outros Bispos, além da ordenação de outros sacerdotes, se proveja à necessidade de tantas almas [47]. Portanto, o problema das sagrações episcopais de D. Lefebvre deve-se encarar, não apenas do lado do poder de ordem, como também do lado do poder de jurisdição, mas sem excluir a doutrina católica sobre a “jurisdição de suplência” "in specialibus adiunctis", em circunstâncias extraordinárias, já que estamos no campo da jurisdição e, na Igreja, a jurisdição existe para as almas e não as almas para a jurisdição.
No seu caminho errado, os autores do opúsculo chegam a afirmar que "a questão das sagrações é um caso fundamentalmente dogmático e, por isso, imutável na sua solução, quaisquer que sejam as circunstâncias" e, por conseguinte, "o argumento desenvolvido pela norma da lex positiva non obligat....[cum tanto incommodo] parece demasiadamente apressado" (p. 7).
Prescindindo do fato de que no caso de D. Lefebvre não se trata de "grave incômodo", mas, como veremos, de impossibilidade moral absoluta em obedecer tanto à lei como ao Legislador, muito apressado é somente o "por isso" da armação dos autores do opúsculo em questão: "é um caso,fundamentalmente dogmático e, por isso imutável nas suas soluções".
De fato, uma lei disciplinar (e tais são as leis de jurisdição que disciplinam o poder de ordem), mesmo se fundamentalmente dogmática, não perde, por isto, a sua natureza de lei disciplinar e não se torna, pela mesma razão, uma questão dogmática e "por isso imutável nas suas soluções".
No Código de Direito Canônico, há um direito "proposto" pela Igreja (as normas de direito divino natural e positivo, entre as quais o cânone sobre o primado), e um direito constituído pela Igreja (no qual estão as normas que restringem o exercício do poder de ordem episcopal) [48]. O direito constituído da Igreja é "fundamentalmente dogmático" porque a dogmática... é o pressuposto e o guia da norma canônica" [49], mas esta permanece bem distinta e discernível do seu fundamento dogmático. A distinção se faz "ratione Legislatoris immediati", ou seja, relativa ao Legislador imediato da norma [50]. Agora fica evidente ser o primado de direito divino, porque instituído imediatamente por Nosso Senhor Jesus Cristo, mas a reserva papal sobre as sagrações episcopais é de direito eclesiástico, por ser instituída diretamente pelo Papa, e isto tornou possíveis as variações em matéria de disciplina eclesiástica através dos séculos: "desde o século XI..., para os abusos que às vezes surgiam por parte dos metropolitas, a sagração dos Bispos começou gradativamente a ser reservada nalguns lugares ao Sumo Pontífice e depois, do século XV em diante, a reserva se tornou universal [e só na Igreja latina]" [51]. Reserva, portanto, datada e introduzida tardiamente na Igreja, e motivada pelos abusos surgidos e não por direito divino.
Certamente, o Papa instituiu esta reserva vi primatus, em virtude do seu primado, e este é por isso o fundamento desta norma canônica, mas não é lícito, por causa disto, identificar a norma canônica com o seu fundamento dogmático e, assim, afirmar ser a norma "imutável” igualmente com o seu fundamento dogmático. Isto significa anular toda a distinção entre direito divino e direito humano eclesiástico, entre as leis dogmáticas e as de jurisdição. Declarar uma norma canônica "imutável quaisquer que sejam as circunstâncias" só porque tem um "fundamento dogmático" significa tornar imutável todo ou quase todo o Código de Direito Canônico, anular sic et simpliciter a doutrina católica sobre as causas que escusam da obrigação da Lei. E isto é evidentemente absurdo.
Conclusão: visto que Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu o primado, mas não determinoudiretamente os limites da jurisdição episcopal (v. Billot cit.) e deixou ao Romano Pontifice a faculdade de determiná-los, fica firme que a reserva papal sobre as sagrações episcopais não é de direito divino, mas eclesiástico e, por conseguinte, não é "imutável quaisquer que sejam as circunstâncias", mas, ao contrário, como todo o direito instituído pela Igreja, subentende sempre a cláusula: "salvo o bem comum e a salvação das almas num caso particular e extraordinário prudentemente examinado". Cláusula que "sendo universal e derivada por força de razão da natureza das coisas, é omitida pelo direito nas leis particulares, sem todavia cessar de limitar verdadeiramente a matéria e a obrigação determinada por toda a lei humana" [52].
( “Sim Sim, Não Não” — n.º 77 — Julho/99)
Notas:
[38] F. M. Cappello, S.J. Summa luris canonici, vol. I, Roma 1961, p. 252;
[39] V Manlio Simonetti, La Crisi ariana nel secolo IV, Institutum Patristicum Augustinianum, Via S. Uffizio 25, Roma l975;
[42] Enciclopedia Cattolica verbete necessità (stato di);
[43] Du sacre épiscopal contre la volonté du Pape, ensaio coletivo da "Fraternidade de São Pedro";
[44] De poenìtentiae sacrarnento tratado XVI, c. V n.° 91;
[46] V. Salaverri De Ecclesia em Summa Theologiae, BAC, Madrid;
[47] Ch. Joumet, op. cit., vol. II, pp. 656-657. O Pe. Tito Centi O.P., na nota 1 à Suma Teológica de Santo Tomás, ed. Salani II II, q. 39, a. 4, escreve: "Temos um indício disto no fato de que a Igreja não requer uma confissão geral daqueles cismáticos que retornam à unidade nem na "convalidação" para os seus eventuais impedimentos matrimoniais";
[48] V P Palazzini Dictionarium morale et canonicum verbete Fontes iuris canonici; Naz Dictionaire Droit canonique verbete droit canonique;
[49] Naz. loc. cit.;
[50] E. Genicot S.J. Instituciones theologiae moralis vol. I. n.° 85;
[51] P. Palazzini Dictionarium morale et canonicum verbete mandatum apostolicum;
[52] L. Rodrigo Praelectiones theologico-rnorales comillenses II, tractatus De Legibus, Sal Terrae, Santander 1944, n.° 393, 2°, p. 294 (cit. Em Aequitas canonica de F. J. Urrutia S.J. Periodica de re morali, canonica, liturgica, vol. 73, p. 46, nota 21, Pontificia Universidade Gregoriana).
2. Solução do problema posto pelo "não" do Papa
— O "não" do Papa
Já vimos que um Bispo que, em estado de grave necessidade geral das almas, consagra um outro Bispo "dado que tem o poder de ordem para isto" (S. Th. cit.) não põe em discussão o poder de jurisdição do Papa, e possui todo o direito de presumi-lo, favorável a um ato requerido pelas circunstâncias extraordinárias "para se prover adequadamente" (S. Th. cit.) à salvação das almas e ao bem comum; a salvação das almas é, de fato, a lei suprema na Igreja ("salus animarum suprema lex") e é certo que esta "supre" a jurisdição carente quando se trata de atender à "necessidade geral e pública dos fiéis" (Pe. Cappello, S. J., cit.).
Este raciocínio não encontra outros obstáculos quando o recurso ao Papa se tenha tornado materialmente impossível por circunstâncias externas; como nos casos históricos lembrados por nós.
Mas, se o próprio Papa favorece ou promove uma orientação eclesial poluída de neomodernismo e que por isso ameaça os bens fundamentais das almas, indispensáveis à salvação (fé e bons costumes); se o próprio Papa é causa ou concausa e, de qualquer modo, dada a sua altíssima autoridade, a causa mais profunda da grave necessidade geral sem esperança de socorro proveniente dos legítimos Pastores, que êxito poderá ter, em tais circunstâncias, o recurso ao Papa? Este será talvez materialmente acessível, mas moralmente impossível e, se efetuado, resultará num "não" ao ato requerido pelas circunstâncias "a fim de que se proveja adequadamente" (S. Th. cit.) à grave necessidade geral das almas. Um comportamento diverso da parte do Papa pressupõe, de fato, a resipiscência e uma humilde admissão das próprias responsabilidades, visto que o ato (as sagrações episcopais) não seria exigido se o próprio Papa não fosse de qualquer modo co-responsável pelo estado de grave e geral necessidade.
Resta, portanto, perguntar-nos se o súdito, em tais circunstâncias, é obrigado a obedecer ao "não" do Papa, não obstante o prejuízo de tantas almas; se, noutras palavras, o "não" do Papa exonera daquele dever sub gravi que, como vimos, incumbe por direito divino a quem quer que tenha a possibilidade de prestar socorro às almas em estado de grave necessidade geral sem esperança de socorro dos legítimos Pastores. É este o quesito ao qual agora responderemos e que encontra a sua solução, mais um vez, na doutrina católica sobre o estado de necessidade. De fato, como veremos, ilustrando o 4°, 5°, 6° e o 7° princípio:
1) é próprio da necessidade obrigar a socorrer independentemente da causa da necessidade;
2) é próprio da necessidade fazer recair menos sobre o Superior o poder de obrigar;
3) é próprio da necessidade pôr o súdito na impossibilidade moral de obedecer;
4) quem, coagido pela necessidade, não obedece, não nega a Autoridade no seu legítimo exercício e, por conseguinte, não pode ser acusado de desobediência e, menos ainda, de cisma.
— 4° princípio: na necessidade, o dever de socorro é independente da causa da necessidade e por isso obriga também, seja qual for a ocasião, o próprio Superior a colocar as almas em estado de necessidade
Na necessidade, o dever de prestar socorro se impõe independentemente da causa da necessidade, porque "à caridade não importa de onde se origina a necessidade, mas apenas que haja necessidade" [53]. Assim, no exemplo referido por nós, no plano do direito natural, a mulher tem o dever de suprir o marido, mesmo supondo ser o próprio marido quem colocou a família em estado de necessidade.
Igualmente, o dever sub gravi de socorrer as almas em estado de necessidade obriga, ainda se numa diocese é o Bispo que difunde ou favorece o modernismo, ou se é o Papa que o promove ou favorece na Igreja universal. Pelo contrário, como já se viu, é exatamente esta circunstância que faz se originar um grave dever de caridade, porque a necessidade das almas não tem nenhuma esperança daqueles que, ex officio, deveriam prover às necessidades ordinárias e extraordinárias delas.
Esta circunstância, contudo, terá também o efeito de tornar oneroso e talvez até heróico o dever de socorro devido às conseqüências facilmente previsíveis: o estado de necessidade será negado e a repreensão implícita no ato do socorro atrairá sobre quem o presta aversões e acusações injustas e injustificadas. Tratando-se, além disso, da pessoa do Papa, o súdito corre ainda "um perigo mais grave", porque "se pode recorrer ao Papa dos abusos dos prelados inferiores" [54], mas contra o Papa não resta senão recorrer a Deus (Santa Catarina de Sena).
— 5° princípio: é próprio da necessidade fazer cessar no Superior o poder de obrigar e se, de fato, obriga, a sua ordem não é vinculante ("inefficax")
No exemplo por nós aduzido, no plano do direito natural, seria o caso dum marido que não só ponha os filhos em necessidade ou não cuide deles, mas, além disso, impeça a mulher de prover ao bem deles, quanto lhe é possível. É evidente que, em tal caso, cabe menos ao marido o poder de obrigar e, se de fato obriga, a sua ordem não vincula a mulher.
O fato de que, no caso de D. Lefebvre, o Superior é o Papa não anula este princípio. O Vigário de Cristo, em primeiro lugar, tem o dever de prover à necessidade das almas e, se não o faz ou, pior, se é Ele mesmo causa ou concausa da necessidade espiritual grave e geral, não tem, por isso, o poder de impedir que outros atendam à necessidade das almas, especialmente se este dever de suplência se radica no próprio estado sacerdotal e, mais ainda, episcopal.
A autoridade do Papa é, sem dúvida, ilimitada, mas de baixo, não do alto: neste caso é limitada pelo direito divino, natural e positivo: a autoridade do Papa é "monárquica (...) e absoluta, contudo dentro dos limites do direito divino, natural e positivo" e por isso "o próprio Romano Pontíficenão pode agir contra o direito divino ou não o ter em conta" [55]. Ora, na necessidade, o direito divino natural e positivo impõe um dever de caridade sob pena de pecado mortal a quem quer que tenha possibilidade de prestar socorro e, na necessidade espiritual, o impõe antes de tudo aos Bispos e aos Sacerdotes (além do Papa) e, portanto, o Papa, como qualquer outro Superior, não tem o poder de se opor a este dever (Suarez: "deest potestas in legislatore ad obligandum" De Legibus L. VI, cap. VII, n.° 11).
Por isso, se diz que "a necessidade traz consigo a dispensa, porque a necessidade não está sujeita à lei ("ipsa necessitas habet annexam despensationem quia necessitas t:on subditur legi", S Th. I, II, q. 96, a. 6). Não no sentido de que na necessidade seja lícito fazer tudo o que se quer, mas no sentido de "se tornar lícita e permitida, pelo estado de necessidade, a ação doutro modo proibida" [56] para salvaguardar interesses mais importantes do que a obediência à lei e ao Superior. Em tal caso, não está no poder de nenhum Superior exigir igualmente a observância da lei, porque a nenhum Superior, e ainda menos ao Papa, é concedido exercitar a autoridade com dano de outrem, especialmente se for espiritual e de muitas almas, e contra os deveres de estado de cada um, particularmente sacerdotais ou episcopais.
Nem Deus, Supremo Legislador, obriga na necessidade. "Por isso — recorda Noldin — o próprio Cristo escusa Davi, que em grave perigo comeu os pães da proposição proibidos aos leigos por direito divino" [57]. Por este princípio, na necessidade, cessam de obrigar, além das leis humanas, até a lei divino-positiva e divino-natural afirmativa ("Honra o pai e a mãe"; "lembra-te de santificar as festas"); somente fica obrigatória a lei divino-natural negativa ("Não matar", etc.), porque proíbe ações intrinsecamente más, ou seja, proibidas por serem más (e não más porque proibidas, como são as consagrações episcopais sem mandato pontifício).
— 6° princípio: é próprio da necessidade pôr o súdito na impossibilidade (física ou moral) de obedecer
É certo que, na necessidade, Deus não obriga, mas o Legislador terreno "pode negar sem razão ou contra a lei natural e a eterna" [58] e, por conseguinte, pode, de fato, proibir a ação requerida pelo estado de necessidade. Mas, visto que o "não" do Papa não tem o poder de anular a grave necessidade geral das almas e, portanto, o dever conexo sub gravi de socorrê-las, o súdito, de modo especial se Bispo ou Sacerdote, chega ao ponto de se encontrar na impossibilidade moral e absolutade obedecer, porque não poderia fazê-lo sem pecado pessoal e dano de outrem. Por isso, é próprio da necessidade "criar uma sorte de impotência ou impossibilidade de fazer uma coisa mandada ou a não fazer uma coisa proibida" [59].
Não é este, de fato, o caso da autoridade que não tem o dever de obrigar, porque "summum ius summa iniuria" ou que dá uma ordem pouco oportuna, menos prudente e à qual, todavia se poderia estar obrigado igualmente a obedecer, em vista do bem comum. Ao invés, trata-se do caso da autoridade que não pode obrigar porque a sua ordem se opõe a um preceito de direito divino e natural "mais grave e obrigatório" ("preceptum gravius et magis obligans") [60]. Neste caso obedecer à lei e ao Legislador seria "malum et pecatum" (Suarez De Legibus L. VI, c. VII, n.° 8);"malum" (Santo Tomás S. Th. II II, q. 120, a. 1 ); "vitiosum" (Caetano em 1.2. q. 96, a. 6); e por isso a desobediência se torna um dever (inoboediencia debita) [61].
Na realidade, em tal caso, o súdito não desobedece, mas obedece a um preceito mais alto e vinculante, emanado da Autoridade divina que "ordena o respeito aos interesses mais importantes"[62]. Efetivamente, a autoridade terrena "não é nem a primeira nem a única norma da moralidade"[58]. Essa é "norma dirigida", isto é, a regra regulada pela lei divina e por isso quando a autoridade terrena proíbe "contra a lei natural e a eterna" [58], "desobedecer aos homens para obedecer a Deus, se torna um dever" [63].
— 7o. princípio: quem, coagido pela necessidade, não obedece, não põe em questão a Autoridade no seu legítimo exercício
Para haver desobediência "a ordem ou a proibição devem ser legítimas; o que se dá quando o Romano Pontífice ou o Ordinário têm o poder de dar a ordem ou a proibição e ao mesmo tempo, os súditos são obrigados a obedecer à ordem ou proibição" [64].
Contudo, nós vimos:
1) que também para o Papa vale o princípio de que, quando a aplicação duma lei “fosse contrária ao bem comum ou ao direito natural [e, no caso, também divino-positivo]... não está no poder do legislador obrigar" [65];
2) que a necessidade, particularmente a de que falamos, cria no súdito "uma sorte de impotência ouimpossibilidade [no caso moral e absoluta] para fazer uma coisa mandada ou a não fazer uma proibida" [59]. Portanto, a ordem ou a proibição dum Superior que, por motivo das circunstâncias extraordinárias, se torna prejudicial às almas e ao bem comum, embora não contrário ao estado do súdito (v. Suarez, De religione L. X, cap. IX, n.° 4), perde o seu caráter de legitimidade e desliga o súdito do dever de obediência "nem aqueles que se comportam de tal modo, devem ser acusados de haver faltado à obediência, visto que se a vontade dos Superiores repugna à vontade e às leis de Deus, estes mesmos exorbitam da medida do seu poder" [66].
Já citamos Santo Afonso: na necessidade se impõe "um preceito divino e natural a que não se pode opor o preceito humano da Igreja" e, por conseguinte, nem o preceito do Papa. O primado papal de jurisdição, portanto, não só não é posto de nenhum modo em questão na violação da lei jurisdicional (como temos já visto), mas nem mesmo na desobediência motivada por um estado de necessidade. Efetivamente, o Sacerdote ou o Bispo que, forçado pela necessidade, não obedece ao Papa, não nega com isto a própria subordinação ao Papa fora do caso de necessidade e, por isso, não refuta a autoridade no seu legítimo exercício. Exatamente como a mulher não nega a autoridade do marido fora do caso de necessidade, no qual ela tem o dever de supri-lo contra a vontade irrazoavelmente contrária dele.
Santo Tomás diz que quem age em estado de necessidade "não julga a lei" nem o Legislador e nem o próprio ponto de vista melhor que o da Autoridade, mas ”julga o caso particular no qual vê que as palavras da lei [e/ou a ordem do Legislador] não devem ser observadas", porque a sua observância naquele caso particular seria gravemente danosa e, portanto, a necessidade libera o súdito da acusação de se arrogar um poder que não lhe compete (S. Th. I, II, q. 96, a. 6 ad 1 e 2).
Gerson, por sua vez, diz que "o desprezo das Chaves deve ser avaliado a partir do poder legítimo e do uso legítimo do poder" [54].
Por isso, um Sacerdote que não obedece ao Papa quando este o proíbe de absolver em estado de necessidade ou um Bispo que procede deste modo, no caso de o Papa lhe proibir uma sagração episcopal, requerida pela grave necessidade espiritual de muitas almas ameaçadas na fé e na moral e sem socorro dos legítimos Pastores, não podem ser acusados de "desprezo das Chaves" porque o Papa, agindo contra o direito divino (natural e positivo) não faz "uso legítimo" das Chaves.
O Primado comporta uma submissão cega "sem exame do objeto" somente "in rebus fidei et morum"(quando o Papa se exprime no nível em que a sua autoridade é infalível); no resto, a submissão ao Papa está sujeita às normas morais que regulam a obediência. Por esta razão, se o Papa excede a "medida" do seu poder, os súditos, obedecendo "a Deus antes que aos homens" "não devem ser acusados de haver faltado à obediência" (v. Leão XIII, Diuturnum illud). Agir diversamente — diz Gerson — "seria uma aquiescência de estúpidos e um vão temor de coelhos" [54].
No caso em exame, D. Lefebvre não contestou ao Vigário de Cristo o direito de impor a disciplina em virtude do Primado, ao poder de ordem episcopal; somente contestou que a reserva papal sobre as consagrações episcopais não podia ser respeitada sem grave dano para muitas almas e sem culpa grave de sua parte nas circunstâncias atuais extraordinárias, nas quais, como já reconheceu o próprio João Paulo II, "se espalharam a mancheias idéias contrastantes com a verdade revelada e sempre ensinada", foram divulgadas "verdadeiras e autênticas heresias no campo dogmático e moral” e os cristãos, "em grande parte... extraviados, confusos, perplexos... tentados pelo ateísmo, agnosticismo, iluminismo vagamente moralístico, por um cristianismo sociológico sem dogmas definidos nem moral objetiva" [11], estão, de modo geral, sem esperança de socorro dos legítimos pastores.
Igualmente, D. Lefebvre não contestou ao Papa o poder de mandar nos Bispos no interesse da Igreja e das almas, mas verificou, simplesmente, que, nas circunstâncias extraordinárias atuais, ele não podia obedecer ao Papa sem grave dano para a Igreja e as almas e sem sua culpa pessoal grave, estando onerado dum dever de suplência imposto pela caridade, e radicado no seu estado episcopal. E, ao violar materialmente a norma disciplinar e a ordem recebida, ele tivera cuidado de reafirmar o fundamento (o Primado) e de se manter rigorosamente nos limites da doutrina católica sobre o estado de necessidade, como o próprio cardeal Gagnon deveu reconhecer: "D. Lefebvre não erigiu em verdade a afirmação de ter o poder de agir neste campo" [67].
Para sustentar que D. Lefebvre resistindo ao "não" do Papa, teria negado o Primado, seria necessário poder afirmar que quem resiste a uma ordem nociva da Autoridade, nega esta mesma Autoridade, o que é falso.
Agora se pode julgar a posição daqueles críticos de D. Lefebvre, que jamais reconheceriam ao Papa o poder de proibir uma ação necessária a salvar um homem em perigo de morte temporal, mas lhe reconhecem o poder de proibir uma ação necessária para socorrer a muitas almas ao perigo da morte eterna e o fazem para salvaguardar exatamente o Primado, conferido ao Papa para salvar as almas, e não para perdê-las.
Gerson diz serem "os anões" que pensam "que o Papa seja um Deus com todo o poder no céu e na terra" [54], mas os críticos de D. Lefebvre fazem do Papa — assim nos parece — mais que um Deus, pois nem Deus manda com dano das almas nem exige ser obedecido com prejuízo das almas. Na realidade estes críticos injustos fazem do Primado a lei suprema da Igreja, o que é errado, pois aquele é ordenado à salvação das almas: rebaixam o Primado a um despotismo, a obediência devida ao Papa a servilismo e fazem dela a maior das virtudes, o que não é certo ao menos segundo a doutrina católica. Conforme esta, a obediência, mesmo ao Papa, tem por fim o exercício das virtudes teologais, em que a caridade ocupa o primeiro lugar [68]. Santo Tomás, à objeção de que "às vezes por obediência se deve deixar de lado o bem", responde que "é um bem ao qual o homem está obrigado necessariamente como amar a Deus e outras coisas semelhantes. E não se deve de modonenhum negligenciar este bem por obediência" (S. Th. II, II, q. 104, a. 3, ad 3). Entre as "outras coisas semelhantes" às primordiais estão os deveres do próprio estado (especialmente se for episcopal) e o amor do próximo, contido no amor de Deus como objeto secundário. E, de fato, tudo na Igreja, a sua própria constituição hierárquica com o Primado e as leis que disciplinam o poder de ordem, têm como último escopo a caridade e, se "a necessidade não está sujeita à lei" (necessitas non subditur legi, S. Th., cit.) é porque se subordina à lei suprema, que é a caridade. A esta lei estão sujeitos também os Vigários de Cristo que têm, sem dúvida, o Primado de jurisdição e, por conseguinte, o direito de ordenar qualquer outra jurisdição na Igreja, mas "por preceito divino, e até mesmo natural, de caridade, estão obrigados neste particular a prover adequadamente à necessidade dos fiéis" (Suarez, De poenitentiae sacramento, disput. XXVI, sect. IV, n.° 7).
("Sim Sim, Não Não" — no. 78 — agosto/99")
Notas:
[53] Suarez De caritate disp. IX, sectio II, n.° 3;
[54] G. Gerson De contemptu clavium et materia excommunicationum et irregularitatum,considerações VII-XII, Opera, Basiléia, 1489, prima pars, f. 33, citado em La scomunica di Girolamo Savonarola, do Pe. Tito Centi, O. P. ed. Ares, Milão;
[55] P. Palazzini, Dictionarium morale er canonicum, verbete episcopi;
[56] Enciclopédia Cattolica verbete necessità (estado de necessidade);
[57] H. Noldin, S. J. Summa Theologiae Moralis, vol. 1, De Principüs L. III, q. 8, p 203;
[58] Roberti-Palazzini Dizionario di teologia morale, verbete resistência ao poder injusto;
[59] Dict. Droit Canonique verbete necessité col. 991;
[60] Suarez De Legibu.s L. VI, c. VII, n.° l2;
[61] P. Palazzini, Dictionarium morale et canonicum, verbete obediência;
[62] Tito Centi O. P. La Somma Theologica, ed. Salani, vol. XIX, nota l, p. 274;
[63] Roberti-Palazzini Dizionario cit. resistência ao poder injusto; v. Leão XIII Libertas;
[64] P. Palazzini, Dictionarium cit., verbete desobediência;
[65] Naz. Dictionnaire Droit Canonique, verbete epiquéia;
[66] Leão XIII Diuturnum illud;
[67] Entrevista a 30 Giorni março de 1991
2. Solução do problema posto pelo "não" do Papa
— O "não" do Papa
Já vimos que um Bispo que, em estado de grave necessidade geral das almas, consagra um outro Bispo "dado que tem o poder de ordem para isto" (S. Th. cit.) não põe em discussão o poder de jurisdição do Papa, e possui todo o direito de presumi-lo, favorável a um ato requerido pelas circunstâncias extraordinárias "para se prover adequadamente" (S. Th. cit.) à salvação das almas e ao bem comum; a salvação das almas é, de fato, a lei suprema na Igreja ("salus animarum suprema lex") e é certo que esta "supre" a jurisdição carente quando se trata de atender à "necessidade geral e pública dos fiéis" (Pe. Cappello, S. J., cit.).
Este raciocínio não encontra outros obstáculos quando o recurso ao Papa se tenha tornado materialmente impossível por circunstâncias externas; como nos casos históricos lembrados por nós.
Mas, se o próprio Papa favorece ou promove uma orientação eclesial poluída de neomodernismo e que por isso ameaça os bens fundamentais das almas, indispensáveis à salvação (fé e bons costumes); se o próprio Papa é causa ou concausa e, de qualquer modo, dada a sua altíssima autoridade, a causa mais profunda da grave necessidade geral sem esperança de socorro proveniente dos legítimos Pastores, que êxito poderá ter, em tais circunstâncias, o recurso ao Papa? Este será talvez materialmente acessível, mas moralmente impossível e, se efetuado, resultará num "não" ao ato requerido pelas circunstâncias "a fim de que se proveja adequadamente" (S. Th. cit.) à grave necessidade geral das almas. Um comportamento diverso da parte do Papa pressupõe, de fato, a resipiscência e uma humilde admissão das próprias responsabilidades, visto que o ato (as sagrações episcopais) não seria exigido se o próprio Papa não fosse de qualquer modo co-responsável pelo estado de grave e geral necessidade.
Resta, portanto, perguntar-nos se o súdito, em tais circunstâncias, é obrigado a obedecer ao "não" do Papa, não obstante o prejuízo de tantas almas; se, noutras palavras, o "não" do Papa exonera daquele dever sub gravi que, como vimos, incumbe por direito divino a quem quer que tenha a possibilidade de prestar socorro às almas em estado de grave necessidade geral sem esperança de socorro dos legítimos Pastores. É este o quesito ao qual agora responderemos e que encontra a sua solução, mais um vez, na doutrina católica sobre o estado de necessidade. De fato, como veremos, ilustrando o 4°, 5°, 6° e o 7° princípio:
1) é próprio da necessidade obrigar a socorrer independentemente da causa da necessidade;
2) é próprio da necessidade fazer recair menos sobre o Superior o poder de obrigar;
3) é próprio da necessidade pôr o súdito na impossibilidade moral de obedecer;
4) quem, coagido pela necessidade, não obedece, não nega a Autoridade no seu legítimo exercício e, por conseguinte, não pode ser acusado de desobediência e, menos ainda, de cisma.
— 4° princípio: na necessidade, o dever de socorro é independente da causa da necessidade e por isso obriga também, seja qual for a ocasião, o próprio Superior a colocar as almas em estado de necessidade
Na necessidade, o dever de prestar socorro se impõe independentemente da causa da necessidade, porque "à caridade não importa de onde se origina a necessidade, mas apenas que haja necessidade" [53]. Assim, no exemplo referido por nós, no plano do direito natural, a mulher tem o dever de suprir o marido, mesmo supondo ser o próprio marido quem colocou a família em estado de necessidade.
Igualmente, o dever sub gravi de socorrer as almas em estado de necessidade obriga, ainda se numa diocese é o Bispo que difunde ou favorece o modernismo, ou se é o Papa que o promove ou favorece na Igreja universal. Pelo contrário, como já se viu, é exatamente esta circunstância que faz se originar um grave dever de caridade, porque a necessidade das almas não tem nenhuma esperança daqueles que, ex officio, deveriam prover às necessidades ordinárias e extraordinárias delas.
Esta circunstância, contudo, terá também o efeito de tornar oneroso e talvez até heróico o dever de socorro devido às conseqüências facilmente previsíveis: o estado de necessidade será negado e a repreensão implícita no ato do socorro atrairá sobre quem o presta aversões e acusações injustas e injustificadas. Tratando-se, além disso, da pessoa do Papa, o súdito corre ainda "um perigo mais grave", porque "se pode recorrer ao Papa dos abusos dos prelados inferiores" [54], mas contra o Papa não resta senão recorrer a Deus (Santa Catarina de Sena).
— 5° princípio: é próprio da necessidade fazer cessar no Superior o poder de obrigar e se, de fato, obriga, a sua ordem não é vinculante ("inefficax")
No exemplo por nós aduzido, no plano do direito natural, seria o caso dum marido que não só ponha os filhos em necessidade ou não cuide deles, mas, além disso, impeça a mulher de prover ao bem deles, quanto lhe é possível. É evidente que, em tal caso, cabe menos ao marido o poder de obrigar e, se de fato obriga, a sua ordem não vincula a mulher.
O fato de que, no caso de D. Lefebvre, o Superior é o Papa não anula este princípio. O Vigário de Cristo, em primeiro lugar, tem o dever de prover à necessidade das almas e, se não o faz ou, pior, se é Ele mesmo causa ou concausa da necessidade espiritual grave e geral, não tem, por isso, o poder de impedir que outros atendam à necessidade das almas, especialmente se este dever de suplência se radica no próprio estado sacerdotal e, mais ainda, episcopal.
A autoridade do Papa é, sem dúvida, ilimitada, mas de baixo, não do alto: neste caso é limitada pelo direito divino, natural e positivo: a autoridade do Papa é "monárquica (...) e absoluta, contudo dentro dos limites do direito divino, natural e positivo" e por isso "o próprio Romano Pontíficenão pode agir contra o direito divino ou não o ter em conta" [55]. Ora, na necessidade, o direito divino natural e positivo impõe um dever de caridade sob pena de pecado mortal a quem quer que tenha possibilidade de prestar socorro e, na necessidade espiritual, o impõe antes de tudo aos Bispos e aos Sacerdotes (além do Papa) e, portanto, o Papa, como qualquer outro Superior, não tem o poder de se opor a este dever (Suarez: "deest potestas in legislatore ad obligandum" De Legibus L. VI, cap. VII, n.° 11).
Por isso, se diz que "a necessidade traz consigo a dispensa, porque a necessidade não está sujeita à lei ("ipsa necessitas habet annexam despensationem quia necessitas t:on subditur legi", S Th. I, II, q. 96, a. 6). Não no sentido de que na necessidade seja lícito fazer tudo o que se quer, mas no sentido de "se tornar lícita e permitida, pelo estado de necessidade, a ação doutro modo proibida" [56] para salvaguardar interesses mais importantes do que a obediência à lei e ao Superior. Em tal caso, não está no poder de nenhum Superior exigir igualmente a observância da lei, porque a nenhum Superior, e ainda menos ao Papa, é concedido exercitar a autoridade com dano de outrem, especialmente se for espiritual e de muitas almas, e contra os deveres de estado de cada um, particularmente sacerdotais ou episcopais.
Nem Deus, Supremo Legislador, obriga na necessidade. "Por isso — recorda Noldin — o próprio Cristo escusa Davi, que em grave perigo comeu os pães da proposição proibidos aos leigos por direito divino" [57]. Por este princípio, na necessidade, cessam de obrigar, além das leis humanas, até a lei divino-positiva e divino-natural afirmativa ("Honra o pai e a mãe"; "lembra-te de santificar as festas"); somente fica obrigatória a lei divino-natural negativa ("Não matar", etc.), porque proíbe ações intrinsecamente más, ou seja, proibidas por serem más (e não más porque proibidas, como são as consagrações episcopais sem mandato pontifício).
— 6° princípio: é próprio da necessidade pôr o súdito na impossibilidade (física ou moral) de obedecer
É certo que, na necessidade, Deus não obriga, mas o Legislador terreno "pode negar sem razão ou contra a lei natural e a eterna" [58] e, por conseguinte, pode, de fato, proibir a ação requerida pelo estado de necessidade. Mas, visto que o "não" do Papa não tem o poder de anular a grave necessidade geral das almas e, portanto, o dever conexo sub gravi de socorrê-las, o súdito, de modo especial se Bispo ou Sacerdote, chega ao ponto de se encontrar na impossibilidade moral e absolutade obedecer, porque não poderia fazê-lo sem pecado pessoal e dano de outrem. Por isso, é próprio da necessidade "criar uma sorte de impotência ou impossibilidade de fazer uma coisa mandada ou a não fazer uma coisa proibida" [59].
Não é este, de fato, o caso da autoridade que não tem o dever de obrigar, porque "summum ius summa iniuria" ou que dá uma ordem pouco oportuna, menos prudente e à qual, todavia se poderia estar obrigado igualmente a obedecer, em vista do bem comum. Ao invés, trata-se do caso da autoridade que não pode obrigar porque a sua ordem se opõe a um preceito de direito divino e natural "mais grave e obrigatório" ("preceptum gravius et magis obligans") [60]. Neste caso obedecer à lei e ao Legislador seria "malum et pecatum" (Suarez De Legibus L. VI, c. VII, n.° 8);"malum" (Santo Tomás S. Th. II II, q. 120, a. 1 ); "vitiosum" (Caetano em 1.2. q. 96, a. 6); e por isso a desobediência se torna um dever (inoboediencia debita) [61].
Na realidade, em tal caso, o súdito não desobedece, mas obedece a um preceito mais alto e vinculante, emanado da Autoridade divina que "ordena o respeito aos interesses mais importantes"[62]. Efetivamente, a autoridade terrena "não é nem a primeira nem a única norma da moralidade"[58]. Essa é "norma dirigida", isto é, a regra regulada pela lei divina e por isso quando a autoridade terrena proíbe "contra a lei natural e a eterna" [58], "desobedecer aos homens para obedecer a Deus, se torna um dever" [63].
— 7o. princípio: quem, coagido pela necessidade, não obedece, não põe em questão a Autoridade no seu legítimo exercício
Para haver desobediência "a ordem ou a proibição devem ser legítimas; o que se dá quando o Romano Pontífice ou o Ordinário têm o poder de dar a ordem ou a proibição e ao mesmo tempo, os súditos são obrigados a obedecer à ordem ou proibição" [64].
Contudo, nós vimos:
1) que também para o Papa vale o princípio de que, quando a aplicação duma lei “fosse contrária ao bem comum ou ao direito natural [e, no caso, também divino-positivo]... não está no poder do legislador obrigar" [65];
2) que a necessidade, particularmente a de que falamos, cria no súdito "uma sorte de impotência ouimpossibilidade [no caso moral e absoluta] para fazer uma coisa mandada ou a não fazer uma proibida" [59]. Portanto, a ordem ou a proibição dum Superior que, por motivo das circunstâncias extraordinárias, se torna prejudicial às almas e ao bem comum, embora não contrário ao estado do súdito (v. Suarez, De religione L. X, cap. IX, n.° 4), perde o seu caráter de legitimidade e desliga o súdito do dever de obediência "nem aqueles que se comportam de tal modo, devem ser acusados de haver faltado à obediência, visto que se a vontade dos Superiores repugna à vontade e às leis de Deus, estes mesmos exorbitam da medida do seu poder" [66].
Já citamos Santo Afonso: na necessidade se impõe "um preceito divino e natural a que não se pode opor o preceito humano da Igreja" e, por conseguinte, nem o preceito do Papa. O primado papal de jurisdição, portanto, não só não é posto de nenhum modo em questão na violação da lei jurisdicional (como temos já visto), mas nem mesmo na desobediência motivada por um estado de necessidade. Efetivamente, o Sacerdote ou o Bispo que, forçado pela necessidade, não obedece ao Papa, não nega com isto a própria subordinação ao Papa fora do caso de necessidade e, por isso, não refuta a autoridade no seu legítimo exercício. Exatamente como a mulher não nega a autoridade do marido fora do caso de necessidade, no qual ela tem o dever de supri-lo contra a vontade irrazoavelmente contrária dele.
Santo Tomás diz que quem age em estado de necessidade "não julga a lei" nem o Legislador e nem o próprio ponto de vista melhor que o da Autoridade, mas ”julga o caso particular no qual vê que as palavras da lei [e/ou a ordem do Legislador] não devem ser observadas", porque a sua observância naquele caso particular seria gravemente danosa e, portanto, a necessidade libera o súdito da acusação de se arrogar um poder que não lhe compete (S. Th. I, II, q. 96, a. 6 ad 1 e 2).
Gerson, por sua vez, diz que "o desprezo das Chaves deve ser avaliado a partir do poder legítimo e do uso legítimo do poder" [54].
Por isso, um Sacerdote que não obedece ao Papa quando este o proíbe de absolver em estado de necessidade ou um Bispo que procede deste modo, no caso de o Papa lhe proibir uma sagração episcopal, requerida pela grave necessidade espiritual de muitas almas ameaçadas na fé e na moral e sem socorro dos legítimos Pastores, não podem ser acusados de "desprezo das Chaves" porque o Papa, agindo contra o direito divino (natural e positivo) não faz "uso legítimo" das Chaves.
O Primado comporta uma submissão cega "sem exame do objeto" somente "in rebus fidei et morum"(quando o Papa se exprime no nível em que a sua autoridade é infalível); no resto, a submissão ao Papa está sujeita às normas morais que regulam a obediência. Por esta razão, se o Papa excede a "medida" do seu poder, os súditos, obedecendo "a Deus antes que aos homens" "não devem ser acusados de haver faltado à obediência" (v. Leão XIII, Diuturnum illud). Agir diversamente — diz Gerson — "seria uma aquiescência de estúpidos e um vão temor de coelhos" [54].
No caso em exame, D. Lefebvre não contestou ao Vigário de Cristo o direito de impor a disciplina em virtude do Primado, ao poder de ordem episcopal; somente contestou que a reserva papal sobre as consagrações episcopais não podia ser respeitada sem grave dano para muitas almas e sem culpa grave de sua parte nas circunstâncias atuais extraordinárias, nas quais, como já reconheceu o próprio João Paulo II, "se espalharam a mancheias idéias contrastantes com a verdade revelada e sempre ensinada", foram divulgadas "verdadeiras e autênticas heresias no campo dogmático e moral” e os cristãos, "em grande parte... extraviados, confusos, perplexos... tentados pelo ateísmo, agnosticismo, iluminismo vagamente moralístico, por um cristianismo sociológico sem dogmas definidos nem moral objetiva" [11], estão, de modo geral, sem esperança de socorro dos legítimos pastores.
Igualmente, D. Lefebvre não contestou ao Papa o poder de mandar nos Bispos no interesse da Igreja e das almas, mas verificou, simplesmente, que, nas circunstâncias extraordinárias atuais, ele não podia obedecer ao Papa sem grave dano para a Igreja e as almas e sem sua culpa pessoal grave, estando onerado dum dever de suplência imposto pela caridade, e radicado no seu estado episcopal. E, ao violar materialmente a norma disciplinar e a ordem recebida, ele tivera cuidado de reafirmar o fundamento (o Primado) e de se manter rigorosamente nos limites da doutrina católica sobre o estado de necessidade, como o próprio cardeal Gagnon deveu reconhecer: "D. Lefebvre não erigiu em verdade a afirmação de ter o poder de agir neste campo" [67].
Para sustentar que D. Lefebvre resistindo ao "não" do Papa, teria negado o Primado, seria necessário poder afirmar que quem resiste a uma ordem nociva da Autoridade, nega esta mesma Autoridade, o que é falso.
Agora se pode julgar a posição daqueles críticos de D. Lefebvre, que jamais reconheceriam ao Papa o poder de proibir uma ação necessária a salvar um homem em perigo de morte temporal, mas lhe reconhecem o poder de proibir uma ação necessária para socorrer a muitas almas ao perigo da morte eterna e o fazem para salvaguardar exatamente o Primado, conferido ao Papa para salvar as almas, e não para perdê-las.
Gerson diz serem "os anões" que pensam "que o Papa seja um Deus com todo o poder no céu e na terra" [54], mas os críticos de D. Lefebvre fazem do Papa — assim nos parece — mais que um Deus, pois nem Deus manda com dano das almas nem exige ser obedecido com prejuízo das almas. Na realidade estes críticos injustos fazem do Primado a lei suprema da Igreja, o que é errado, pois aquele é ordenado à salvação das almas: rebaixam o Primado a um despotismo, a obediência devida ao Papa a servilismo e fazem dela a maior das virtudes, o que não é certo ao menos segundo a doutrina católica. Conforme esta, a obediência, mesmo ao Papa, tem por fim o exercício das virtudes teologais, em que a caridade ocupa o primeiro lugar [68]. Santo Tomás, à objeção de que "às vezes por obediência se deve deixar de lado o bem", responde que "é um bem ao qual o homem está obrigado necessariamente como amar a Deus e outras coisas semelhantes. E não se deve de modonenhum negligenciar este bem por obediência" (S. Th. II, II, q. 104, a. 3, ad 3). Entre as "outras coisas semelhantes" às primordiais estão os deveres do próprio estado (especialmente se for episcopal) e o amor do próximo, contido no amor de Deus como objeto secundário. E, de fato, tudo na Igreja, a sua própria constituição hierárquica com o Primado e as leis que disciplinam o poder de ordem, têm como último escopo a caridade e, se "a necessidade não está sujeita à lei" (necessitas non subditur legi, S. Th., cit.) é porque se subordina à lei suprema, que é a caridade. A esta lei estão sujeitos também os Vigários de Cristo que têm, sem dúvida, o Primado de jurisdição e, por conseguinte, o direito de ordenar qualquer outra jurisdição na Igreja, mas "por preceito divino, e até mesmo natural, de caridade, estão obrigados neste particular a prover adequadamente à necessidade dos fiéis" (Suarez, De poenitentiae sacramento, disput. XXVI, sect. IV, n.° 7).
("Sim Sim, Não Não" — no. 78 — agosto/99")
Parte IV
— Uma palavra sobre a epiquéia "sine recursu ad Principem" (ou epiquéia "necessária")
Sobre os princípios alegados nesta segunda parte do nosso estudo, se funda a assim chamada epiquéia "necessária", ou "epiquéia sem recurso ao Superior" ("epikia sine recursu ad Principem") [69] a qual, entendida não em sentido vulgar mas num sentido lato e próprio, identificado com a eqüidade, a forma mais alta da justiça ("a epiquéia a que nós [latinos] chamamos eqüidade" S. Th. II, II, q. 120, a. 1) e é uma virtude concernente precisamente "aos deveres ocorridos em casos particulares fora do comum" (S. Th. II, II, q. 80) e que, por isso, se identificam no direito canônico com as normas sobre a "cessação "ab intrinseco " dá observância da lei num caso particular'' e sobre as "causas escusantes" da observância da lei e da obediência ao Legislador [70].
Escreve Naz que, já para Santo Tomás "como para Aristóteles, a intervenção da epiquéia é subordinada à existência dum direito. De fato, em certos casos, a lei perde o seu poder de obrigar— assim no caso de ser uma aplicação sua contrária ao bem comum ou ao direito natural — e neste caso não depende do poder do Legislador obrigar" [71]. E ainda: "Aí há lugar para a epiquéia, porque a vontade do Legislador ou não pode ou não está obrigada a impor a aplicação da lei no caso em questão" [72].
A necessidade da qual falamos no caso de D. Lefebvre é precisamente o caso no qual o Legisladornão pode impor a aplicação da lei tornada, por força das circunstâncias particulares, contrária ao bem comum e ao direito divino particular e positivo. De sua parte, por estar pressionado por um preceito natural e positivo, "o súdito não só pode, mas deve observar a lei, pedindo ou não licença do Superior para isso" [73]. Com efeito, explica Suarez (que fala justamente do Papa), "aqui não se trata de interpretar a vontade do Superior, mas o seu poder". Para conhecê-lo não é necessário nem se deve interrogar o Superior, mas é lícito servir-se das "regras doutrinais" ou então dos"princípios da teologia ou do direito" [74], dado que "se conhece com mais certeza o poder [do Superior], que não é livre, e por outro lado a sua vontade, que o é" [75]. Por isso o súdito, examinadas prudentemente as circunstâncias e certificado das "regras doutrinais" ou então dos"princípios da teologia ou do direito" que excede o poder do Legislador [é "ultra potestatem legislatoris" [76] de obrigar a observância da lei com grave prejuízo de tantas almas e que obedecer em tal caso seria "malum et peccatum" [77], pode, ou antes não se deve ater à lei e à ordem"propria auctoritate" [78], "ex proprio arbitrio" [79] e, com conseqüência disso, por própria iniciativa, "sine recursu ad Principem" [80], ou seja, sem nenhuma dispensa ou aprovação do 5uperior. "E a razão é — escreve Suarez — que, neste caso, a autoridade do Superior não pode ter nenhum efeito; de fato, mesmo quando ele quisesse que o súdito, depois de recorrer a ele, observasse a lei, este não poderia obedecer-lhe porque é preciso obedecer a Deus antes que aos homens e, sendo assim, é fora de propósito ("impertinens ") pedir a permissão" [81]. Para voltar ao nosso exemplo, seria o caso da mulher que diante da grave necessidade dos filhos, não é preciso o consentimento do marido para cumprir o seu dever de suplência e mesmo se o marido lho proibisse, não se lhe deveria obedecer e, por isso, é descabido, sabendo ser ele contrário, pedir-lhe consentimento para aquilo.
Suarez, ao se perguntar se o perigo de dano (próprio ou alheio) escusa da obediência, responde sempre que "no Legislador não se presume a vontade de obrigar em tal caso e, ainda que houvesse, não seria eficaz (et, quamvis illam haberet esset inefficax). [...]. E nisto concordam todos os doutores que tratam da obediência e das leis" [82].
Portanto, "quando consta com certeza que a lei, numa circunstância particular, se tornou injustaou contrária a outro preceito ou virtude que obriga com maior força, então a lei cessa de obrigar e, por própria iniciativa se pode não observar sem recurso ao Superior" [83], dado que a lei, no caso, não poderia "ser observada sem pecado" [84] nem o Superior poderia, sem pecado, obrigar o súdito a observá-la.
Resta o dever de evitar o escândalo do próximo e, por isso, "se devem experimentar todos os meios oportunos e humildes com relação ao Sumo Pontífice [...]. Mas se a humilde insistência não aproveita de modo nenhum, é preciso reivindicar uma liberdade viril e corajosa" [54]
— Refutação de outras objeções errôneas
Em vista disso, não é verdade "ser permitido usar da epiquéia somente na impossibilidade de recorrer ao Legisdador" como se lê na p. 49 do opúsculo sobre o qual se fala na nota 43 do nosso estudo. Isto vale para a epiquéia no sentido estrito ou impróprio [85], não no sentido lato e próprio. No primeiro caso (epiquéia em sentido impróprio ou vulgar), supõe-se que a autoridade benignamente não queira obrigar, embora podendo e, assim, se se pode recorrer ao Legislador, existe o dever de interrogá-lo, dado que se trata da "sua vontade que é livre" (Suarez, cit.).
A epiqüéia em sentido lato e próprio, ao invés, considera aqueles casos em que a autoridade não pode obrigar, apesar de o querer, e o súdito se encontra na impossibilidade moral de obedecer, e por isso a epiquéia é "necessária" (Suarez), e, por conseguinte, o recurso ao Legislador por si não é obrigatório, ou antes, deve ser omitido, sempre que se preveja que o Superior obrigaria, não obstante o prejuízo do requerente ou de outrem. Em tal caso, realmente, não se trata da vontade do Superior, mas do seu "poder, que não é livre" (Suarez cit.).
Ainda menos é verdade o que se lê noutra publicação: "há "necessidade" por ser impossível ter contato com o Superior, o que supõe uma certa urgência na decisão a ser tomada" [86]. Também isto é verdade para a epiquéia em sentido impróprio ou vulgar, mas somente em parte, porque a necessidade não nasce da impossibilidade de ter contato com o Superior ("há necessidade por ser impossível ter contato com o Superior"), mas existe independentemente desta e persiste mesmo no eventual "não" do Superior.
Para esclarecer definitivamente a questão, referimos tudo o que, a respeito, escreve o Pe. Tito Centi O. P.: "Os moralistas procuraram precisar os critérios a seguir para a aplicação da epiquéia. Em substância, eles a reduzem aos três casos seguintes: a) quando, numa situação particular, as prescrições da lei positiva estão em contraste com uma lei superior que ordena o respeito a interesses mais importantes [epiquéia em sentido próprio]; b) quando, por motivo de circunstâncias excepcionais a submissão à lei positiva seria por demais onerosa, sem dela resultar em bem proporcionado ao sacrifício exigido; c) quando, sem se tornar má como no primeiro caso, e sem impor um heroísmo injustificado como no segundo, a observância da lei positiva vai de encontro a dificuldades especiais e imprevistas, que a tornam acidentalmente mais dura do que deveria ser, conforme a intenção do Legislador" [87].
A grave necessidade espiritual de muitos se enquadra no primeiro caso: o da lei positiva que, em força de circunstâncias extraordinárias, se toma "má", porque "contrasta com uma lei superior que ordena o respeito a interesses mais importantes" (epiquéia no sentido próprio). Ao invés, os autores do opúsculo, como o articulista da supracitada publicação, parecem conhecer apenas o segundo e o terceiro caso (epiquéia em sentido impróprio ou vulgar), que nada têm a ver com o caso de D. Lefebvre. No seu primeiro grau, que é o deste último, a epiquéia vem a coincidir com a eqüidade e, por conseguinte, está conexa com a impossibilidade moral de obedecer e é, como já se viu, um direito (além de ser um dever); no segundo e terceiro grau, pelo contrário, a epiquéia se identifica simplesmente com a clemência ou moderação na aplicação das leis e no exercício da autoridade [70].
Estamos, verdadeiramente, em circunstâncias extraordinárias, nas quais, por isso mesmo, é preciso remontar a princípios mais altos do que os aplicados ordinariamente, que não se apregoam todos os dias e, por conseguinte, são ignorados por muitos, mas encontradiços, em breve síntese, em qualquer tratado sobre princípios gerais do direito e da moral. Assim, por exemplo, nas Institutiones Morales Alphonsianae do Pe. Clément Marc, no n.° 174 se lê: "Há lugar para a epiquéia todas as vezes que a lei se tornasse prejudicial ou demasiado onerosa. No primeiro caso [se for prejudicial], e Superior, realmente não poderia obrigar e, por isso, a epiquéia é necessária [é o caso que nos interessa]". E ainda no De principiis theologiae moralis de Noldin (IlI, n.° 199) se lê: "Diz-se que o fim da lei cessa "contrarie" quando a sua observância é danosa... se o fim da lei cessa num caso particular e "contrarie ", a lei cessa [de obrigar]. A razão é que, se o fim da lei cessa "contrarie", se tem o direito de usar da epiquéia”.
Enfim, qualquer manual, ilustrando os princípios do direito canônico, trata da cessação "ab intrinseco" da lei, ou seja, da que deixa de obrigar pelo simples fato de ser prejudicial naquele caso, e não porque o Legislador decrete a sua cessação ou conceda a dispensa dela (como sucede na cessação "ab extrinseco").
Tal é precisamente o caso de necessidade, a qual, por isso, entre as causas que escusam da observância da lei e da obediência, é a mais forte [88]. Sobretudo, quando esta necessidade nasce do dever, radicado no próprio estado de socorrer a muitas almas em grave necessidade espiritual, porque "a salvação das almas é, para a sociedade espiritual, o fim último para o qual estão orientadas todas as suas leis e instituições" [16]. A partir do papado e sem omitir o episcopado.
— Conclusão
A conclusão do nosso estudo é que, ou se nega o estado de necessidade (o caminho escolhido pelo Vaticano) e, portanto, a crise atual na Igreja, ou, se ele é admitido (e aqui remetemos os leitores deSim Sim Não Não ao artigo Nem cismáticos nem excomungados de julho de 1988), se deve coerentemente aprovar o gesto de D. Lefebvre, o qual, por mais extraordinário que possa parecer, deve ser julgado em relação à situação extraordinária em que foi colocado e na qual, por isso, "se deve julgar com base em princípios mais altos do que as leis ordinárias" (S Th. II, II, q. 51, a. 4).
Destes princípios que ilustramos com a necessária brevidade, segue-se:
1 ) que D. Lefebvre tinha sub gravi, ou ao menos ex caritate, o dever, radicado no seu episcopado, de socorrer as almas que se voltavam a ele para receber ajuda no atual estado de grave necessidade geral em que não podiam nem podem esperar socorro dos legítimos Pastores;
2) que ele, por exigência às atuais circunstâncias extraordinárias, tinha o dever, "dado que tinha para isto o poder de ordem" (S. Th. cit.), também de sagrar outros Bispos para assegurar, por meio deles, outras ordenações sacerdotais, aos fiéis em grave e geral necessidade, o que estes têm o direito de pedir à hierarquia (sã Doutrina e Sacramentos): é, de fato, lícito e devido ajudar o próximo em necessidade até onde o permitam as próprias possibilidades: "licet alium iuvare quantum potest fieri" [89];
3) que D. Lefebvre estava na impossibilidade moral e absoluta de obedecer ao "não" interposto pelo Papa, porque teria pecado por omissão contra o preceito da caridade, radicado no próprio estado episcopal, preceito "mais grave e obrigatório" do que a obediência à lei e ao Legislador (Suarez cit.). O pecado de omissão, realmente, consiste em não dar um bem por qualquer título devido (no caso: o de caridade, radicado no próprio estado episcopal) quando seria o tempo de dá-lo (Santo Tomás, S.Th. II, II, q. 79, a. 3 s.), e qualquer lei que seja cessa de obrigar per se, ou seja, sem dispensa ou consentimento do Superior, se o dano que dela deriva é geral e muito grande ("lex per se cessare si nocumentum... esset generale et nimium" (Suarez, De Legibus, L. VI, c. IX, n.° 10);
4) que D. Lefebvre, agindo em estado de grave e geral necessidade das almas, pressionado por um preceito de direito natural e positivo não negou nem o Primado de jurisdição do Papa, nem sequer desobedeceu a ele, que "não pode agir contra o direito divino ou não tê-lo em conta" [55].
Portanto, o fato de ter o Vaticano negado o estado de necessidade não faz desaparecer a grave necessidade na qual, hoje, se encontram tantas almas, mas confirma que tal estado carece, ao menos por ora, de qualquer esperança de socorro da Santa Sé. Portanto, aos autores do opúsculo [43], os quais objetam que "Santo Eusébio [de Samosata] agiu sem o consentimento do Papa, mas não contra o consentimento deste", nós respondemos que se trata somente duma questão de fato, não de princípio: Santo Eusébio não se achou diante do "não" dum papa que promovia ou favorecia o arianismo e, negando a crise ariana, exigia o respeito de leis que naquelas circunstâncias extraordinárias teriam privado do devido socorro às almas postas em grave necessidade espiritual pelos arianos. Sempre que se nela se encontrasse, também Santo Eusébio deveria ater-se aos princípios morais acima exigidos e cumprir, não "contra" a negativa do Papa, mas "não obstante"ela, o gravíssimo dever de caridade imposto ao próprio episcopado pela grave e geral necessidade das almas.
Os autores do opúsculo ostentam desprezo pelas argumentações de tipo "iluminista" ou"carismático", pretendendo com isto condenar todos os que, com simplicidade, fizeram um ato de confiança na retidão e santidade de D. Lefebvre. Mesmo se estes não têm razão, aquela atitude é teologicamente errada. Com efeito, Santo Tomás escreve que nas coisas que ocorrem raramente e nas quais é preciso afastar-se das leis comuns... se exige uma virtude de julgamento, estribada nestes princípios mais elevados, denominados gnome, e que implica uma singular perspicácia de julgamento" (S Th. II, II, q. 51, a. 4). E esta singular "perspicácia de julgamento" — diz Santo Tomás — só se pode possuir também em virtude da santidade: "O homem espiritual recebe, do hábito da caridade, a inclinação para julgar retamente sobre todas as coisas segundo as leis divinas, proferindo o seu julgamento mediante o dom da sabedoria, precisamente como o justo o emite, conforme as regras do direito, mediante a virtude da prudência" (S. Th. II, II, q. 60, a. 1, ad 2).
Neste estudo, nós nos servimos deste modo de argumentação e nos ativemos unicamente aos princípios gerais da Teologia e do Direito Canônico, para que fique claro a todos os que percebem a crise na Igreja e não só aos que conhecem a santidade de D. Lefebvre, que, nas atuais circunstâncias extraordinárias, além da "obediência a qualquer custo" (também a Fé è a salvação da própria alma e da de outrem? Mas tal não seria aquela "aquiescência de asnos e o medo vão dos coelhos" de que fala Gerson?) e da indemonstrável tese "sedevacantista", se abre um terceiro caminho: ater-se a tudo quanto a própria Igreja ensina sobre o "estado de necessidade". Exatamente como fez D. Lefebvre.
(“Sim Sim, Não Não” — n.º 79 — setembro/99)
Notas:
[68] P. Palazzini, Dictionarium cit., verbete obediência
[69] F. Suarez De Legibus L. VI, c. VZII, n.° 1;
[70] V Roberti-Palazzini Dizionario di Teologia morale, ed. Studium, verbete eqüidade (ouepiquéia); v. também Aequitas cononica, cit. e Naz Dictionnaire de Droit Canonique verbeteeqüidade;
[71] Naz Dict. cit. epiquéia col. 366;
[72] Ibid.
[73] Suarez De Legibus L. VI, c. VIII, n.° 2;
[74] Ibid. n.° 4;
[75] Ibid. n.° 5;
[76] Suarez De Legibus L. VI, c. VII, n.° 11;
[77] Ibidem L. VI, c. VIII, n.° 8;
[78] Ibidem L. VI, c. VlII, n.° 1;
[79] S. Th. II, q. 80 art. Único;
[80] Suarez De Legibus L. VI, c. VIII, n.° 1;
[81] Ibid.
[82] Suarez, De statu perfectionis l De voto oboedientiae, L. X, c. IV, n.° 15
[83] Suarez De Legibus L. VI, c. VIII, n.° I;
[84] Ibid. n.° 2;
[85] Naz Dictionnaire Droit Canonique, verbete epiquéia, col. 369 ss.;
[86] De Rome et d'ailleurs, setembro/outubro 1991, p. 17;
[88] Naz Dictionnaire Droit Canonique, verbete escusa, col. 633;
[89] P. Palazzini Dictionarium cit. verbete iurisdictio suppleta.
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