CAPÍTULO CCX
NÃO HÁ EM CRISTO
DOIS SUPOSTOS
1 — Outros, tentando evitar os inconvenientes precedentes, afirmaram, com efeito, que em Cristo a alma uniu-se ao corpo e, mediante esta união, fez-se um determinado homem, que dizem que foi assumido pelo Filho de Deus na unidade da pessoa, e, em razão dessa assunção, dizem também que aquele homem é filho de Deus, e que o Filho de Deus é aquele homem. Afirmam, além disso, que a predita assunção refere-se só à unidade de pessoa e, desse modo, pretendem confessar que em Cristo há uma só pessoa de Deus e de homem.
Como, porém, o homem que dizem constituído de alma c corpo é um certo suposto, ou hipóstase, da natureza humana, eles põem em Cristo dois supostos e duas hipóstases: um, da natureza humana, criado e existindo no tempo; outro, da natureza divina, incriado e eterno. Assim, essa sentença, embora verbalmente pareça diferenciar-se da de Nestório, na realidade conduz ao mesmo erro deste.
2 — Sabe-se que pessoa nada mais é que a substância individual de natureza racional.
Ora, sendo a natureza humana uma natureza racional, pelo próprio fato de se pôr em Cristo algum suposto (ou hipóstase), criado e existindo no tempo e pertencente à natureza humana, põe-se também n’Ele uma pessoa existindo no tempo e criada, pois o nome de suposto (ou de hipóstase) quer significar justamente uma substância individual. Logo, os que põem em Cristo dois supostos (ou hipóstases), se entendem o que dizem, põem também necessariamente n’Ele duas pessoas.
3 — Ademais, quando dois seres se diferenciam pelo suposto, o que convém a um não convém ao outro. Se, com efeito, não é o mesmo suposto do Filho de Deus e do Filho do Homem, conclui-se que as propriedades do Filho do Homem não podem ser atribuídas ao Filho de Deus, e vice-versa. Não se poderia, portanto, afirmar que Deus foi crucificado, que nasceu da Virgem. Ora, esta é justamente a impiedade nestoriana.
Se alguém quiser afirmar que as propriedades do Filho do Homem são atribuídas ao Filho de Deus, e vice-versa, devido à unidade de pessoa realizada em dois supostos diferentes, deve-se a ele responder que essa distinção é totalmente infundada, porque é evidente que o suposto eterno do Filho de Deus nada mais é que sua própria pessoa. Portanto, tudo o que fosse dito do Filho de Deus com relação à sua pessoa, seria dito também com relação ao seu suposto; mas as propriedades do Filho do Homem não seriam atribuídas ao Filho de Deus em relação ao suposto, porque é afirmado que o Filho de Deus difere do Filho do Homem pelo suposto. Nem, portanto, as propriedades do Filho do Homem poderiam ser atribuídas ao Filho de Deus em relação à pessoa, como nascer da Virgem, morrer, etc.
4 — Além disso, se o nome de Deus é atribuído como predicado de um sujeito que existia no tempo, essa atribuição é recente e nova. Mas tudo aquilo que de modo recente e novo é dito de Deus, não é Deus, mas é feito Deus. Ora, o que é feito Deus, evidentemente, não é naturalmente Deus, mas o é somente por adoção. Daí concluir-se que aquele homem não foi verdadeira e naturalmente Deus, mas por adoção. Essa afirmação pertence também ao erro de Nestório.
CAPÍTULO CCXI
HÁ EM CRISTO UM SÓ SUPOSTO
E UMA SÓ PESSOA
1 — Deve-se, portanto, dizer que em Cristo não há apenas uma só pessoa de Deus e do homem, mas também que há um só suposto e uma hipóstase. Deve-se dizer, outrossim, que há n’Ele não uma só natureza, mas duas.
2 — Para esclarecimento dessa verdade convém considerar que os nomes de pessoa, hipóstase e suposto designam uma realidade completa. Por isso, não se pode dizer que a mão, ou a carne ou alguma outra parte do corpo sejam pessoa, mas o é o todo que é este homem.
Os nomes que são comuns às substâncias e aos acidentes individualizados, como os adjetivos indivíduo e singular, podem ser aplicados ao todo e às partes. As partes, com efeito, têm algo de comum com os acidentes, enquanto não existem por si mesmas, mas em outro ser. Mas a inerência de ambos é diferente. Pode-se, pois, dizer que a mão de Sócrates ou de Platão é um certo indivíduo ou algo singular, sem serem, contudo, hipóstase, suposto ou pessoa.
Deve-se, além disso, considerar que, vista em si mesma, a reunião de realidades diversas constitui, por vezes, um ser completo (outras vezes, porém, o acréscimo de nova realidade não constitui um ser completo), como, por exemplo, na pedra, a reunião de quatro elementos constitui um ser completo. Por esse motivo, aquilo que é constituído de elementos pode ser dito, na pedra, suposto (ou hipóstase), mas não pode ser chamado de pessoa, porque não é hipóstase de uma natureza racional.
No animal, porém, a composição dos elementos não o torna um ser completo, mas compõe apenas uma parte dele, isto é, o corpo, porque é necessário o acréscimo de outra coisa para tornar-se animal completo, a saber, da alma. Assim sendo, a reunião dos elementos no animal não o constitui pessoa (ou hipóstase). É, porém, suposto (ou hipóstase) o animal completo. Além disso, no animal, a composição dos elementos não é menos eficaz que na pedra, mas o é muito mais, porque essa composição é ordenada para a constituição de um ser mais nobre.
Assim sendo, deve-se dizer que nos demais homens (mas não em Jesus Cristo) a união da alma e do corpo constitui uma hipóstase e suposto, porque nada há neles acrescido ao corpo e à alma.
3 — No Senhor Jesus Cristo, porém, é acrescida à alma e ao corpo uma terceira substância: a divindade. Por conseguinte, em Jesus Cristo, o todo constituído de alma e corpo não é separadamente suposto, hipóstase, nem pessoa. N’Ele, suposto, hipóstase ou pessoa é aquilo que consta de três substâncias, isto é, de corpo, de alma e de divindade, e, desse modo, como em Cristo há uma só pessoa, há também um só suposto (e uma só hipóstase).
N’Ele, porém, a união da alma e do corpo realiza-se de modo diferente daquela que a divindade une-se à alma e ao corpo. A alma, com efeito, junta-se ao corpo como sua forma, e de ambos é constituída uma natureza, a natureza humana. Mas a divindade não se une à alma e ao corpo como forma, ou como parte integrante, porque isso vai contra a natureza da perfeição divina. Por isso, da união da alma, do corpo e da divindade não se constitui uma só natureza, mas foi a própria natureza divina, que é em si mesma completa e simples, bem como, de certa maneira, incompreensível e inefável, que assumiu a natureza humana composta de alma e corpo, o que se realizou pela infinita virtude de Deus.
4 — Sabemos que quanto um agente é mais poderoso, tanto mais é capaz de acomodar a si o instrumento para as operações. Assim, pois, como a virtude divina é infinita devido a Deus ser infinito, e também é incompreensível, da mesma maneira o modo pelo qual Cristo uniu a si a natureza humana, como sendo ela um certo instrumento feito para a salvação humana, nos é inefável e supera toda outra união de Deus com a criatura.
5 — E porque, como já dissemos, pessoa, hipóstase e suposto designam uma realidade completa, se a natureza divina estivesse em Cristo como parte, e não como realidade completa, como a alma é parte no composto humano, a unidade da pessoa de Cristo não se referiria somente à natureza divina, mas haveria um composto de três partes, como, no homem, pessoa, hipóstase e suposto é algo constituído de alma e corpo. Como, porém, a natureza divina é uma realidade completa que assumiu a si, por certa união inefável, a natureza humana, pessoa, em Cristo, salva-se somente pelo lado da natureza divina, bem como hipóstase e suposto. Portanto, a alma e o corpo são trazidos para a personalidade da pessoa divina, de modo que haja nela a Pessoa do Filho de Deus e a pessoa do Filho do Homem, e assim, também, a hipóstase e o suposto.
6 — Pode também ser encontrado, nas criaturas, uma certa semelhança dessa união.
Sabemos que a substância e o acidente não se unem de modo a constituírem um terceiro ser, sendo que, assim, nessa união, o sujeito não está como parte, mas é algo completo e constitui a pessoa, hipóstase ou suposto. O acidente é acrescido à personalidade do sujeito de tal modo que homem e homem branco constituem uma só pessoa, e também uma só hipóstase e um só suposto. Por certa semelhança com esse exemplo, a pessoa, hipóstase e suposto do Filho de Deus é também pessoa, hipóstase e suposto da natureza humana de Cristo.
7 — Devido a essa semelhança do exemplo com a realidade é que alguns, não discernindo a diferença entre a realidade e o exemplo, presumiram afirmar que a natureza humana de Cristo degrada-se à categoria de acidente, e que, conseqüentemente, se une acidentalmente ao Filho de Deus.
8 — Das razões precedentes conclui-se, com evidência, que em Cristo outra pessoa não há senão a eterna, que é a própria pessoa do Filho de Deus, e que também não há outra hipóstase ou suposto.
9 — Por conseguinte, quando se chama de Cristo a este homem, faz-se referência ao suposto eterno. Por ser feita referência ao suposto eterno, contudo, o nome de homem não deve ser atribuído de modo equívoco a Cristo e aos outros homens. A equivocação, com efeito, não é considerada devido à diversidade de suposição, mas devido à diversidade de significação. Assim, o nome homem atribuído a Pedro e a Cristo significa a mesma coisa, isto é, a natureza humana, mas esse nome não supõe para a mesma coisa, porque referindo-se a Cristo, supõe para o suposto eterno do Filho de Deus; referindo-se a Pedro, porém, supõe para um suposto criado.
10 — A cada um dos supostos de uma natureza podem ser atribuídas as propriedades das naturezas das quais são supostos. Ora, havendo em Cristo um só suposto da natureza divina e da natureza humana, é claro que pode ser atribuído indiferentemente a este suposto de ambas as naturezas (usando-se de um termo relativo à natureza ou à pessoa divina ou humana) as propriedades da natureza divina e as propriedades da natureza humana, como, por exemplo, dizer que o Filho de Deus é eterno e que o Filho de Deus nasceu da Virgem; ou, também, dizer que este homem é Deus, criou as estrelas, nasceu, morreu e foi sepultado.
O predicado é atribuído ao sujeito segundo uma forma ou segundo uma matéria, como, por exemplo, diz-se que Sócrates é branco, segundo a brancura, ou que Sócrates é racional, segundo a alma. Ora, acima foi dito que em Cristo há duas naturezas em um só suposto. Se, portanto, referirem-se ao suposto, podem ser indiferentemente atribuídos a Cristo predicados humanos ou divinos. Deve-se, porém, discernir a razão por que esses predicados são atribuídos a Cristo: porque os predicados divinos referem-se a Cristo conforme a natureza divina; os predicados humanos, porém, conforme a natureza humana.
CAPÍTULO CCXII.
O QUE EM CRISTO SE DIZ
UNO E MÚLTIPLO
Porque há em Cristo uma só pessoa e duas naturezas, consideremos agora, respeitando-se a conveniência das mesmas, o que n’Ele possa ser dito uno ou múltiplo.
1 — Devemos afirmar que são múltiplas, em Cristo, todas as propriedades que se multiplicam de acordo com a diversidade das naturezas. A respeito disso, devemos considerar, em primeiro lugar, que sendo a natureza recebida por geração, ou nascimento, e havendo em Cristo duas naturezas, necessariamente há também n’Ele duas gerações ou nascimentos: uma eterna, pela qual recebe, do Pai, a natureza divina; outra, temporal, pela qual recebeu a natureza humana, da mãe.
2 — Semelhantemente devem ser tidas como múltiplas em Cristo as propriedades de cada natureza e que são de modo adequado atribuídas a Deus e ao homem. São, com efeito, atribuídas a Deus inteligência e vontade, bem como as suas respectivas perfeições, a saber: a ciência e a sabedoria; a caridade e a justiça. A inteligência e a vontade são também atribuídas a Cristo enquanto homem, pois as duas pertencem à alma humana, bem como as perfeições de ambas, como a sabedoria, a justiça e outras semelhantes perfeições. Por esse motivo, deve-se afirmar que em Cristo há duas inteligências: a divina e a humana; duas vontades, duas ciências e duas caridades: uma criada, outra incriada.
3 —-As propriedades do suposto (ou hipóstase) devem ser tidas como unas em Cristo.
Portanto, se o ser for tido como sendo um só ser do suposto, parece que se deva afirmar que em Cristo há um só ser. Isso é claro: quando as partes estão separadas, cada uma tem o próprio ser. Mas quando estão unidas no todo, cada uma não tem o próprio ser, pois todas elas existem pelo ser do todo. Assim sendo, e se considerando em Cristo um suposto integrado de duas naturezas, nele só pode haver um ser, como só há um suposto.
4 — Porque as operações pertencem aos supostos e os seguem, alguns supuseram que, como em Cristo só há um suposto, n’Ele não pudesse haver senão uma só operação. Mas estes não pensaram retamente.
Ora, em cada indivíduo há muitas operações, se nele há muitos princípios para as mesmas. Assim é que, no homem, a operação intelectiva é diversa da sensitiva, porque a inteligência e os sentidos são princípios diferentes; no fogo, um é o ato de aquecer, outro, o de elevar-se, porque o calor é um princípio diferente da leveza. Com efeito, a natureza relaciona-se com a operação, como sendo o seu princípio. Logo, não há uma só operação em Cristo devido a existir um só suposto, mas há n’Ele duas operações, porque há duas naturezas.
Na Santíssima Trindade, porém, dá-se o contrário: há uma só operação das Três Pessoas, porque há só uma natureza.
5 — Entretanto, a operação da humanidade participa, em Cristo, de algo da operação da potência divina. Nos atributos que se referem a um suposto, os demais são usados como instrumento do principal, como as demais partes do homem são instrumentos da sua inteligência.
Ora, a humanidade, em Cristo, é como um instrumento da divindade. É evidente que o instrumento age em virtude do agente principal. Assim sendo, encontra-se no instrumento não só a virtude que lhe é própria, mas também a do agente principal. Por exemplo: pela atividade própria do machado, é talhada a madeira para se fazer o caixão; mas o machado é impulsionado pelo carpinteiro. Assim também, em Cristo, a operação da natureza humana possuía uma certa força, acima da potência humana, que provinha da divindade.
Quando Ele tocou no leproso, esse ato foi da sua natureza humana; mas que aquele toque tenha curado a lepra, isso procedia da força da Sua divindade. Por esse motivo, todas as suas ações e paixões humanas eram salutíferas, isto é, pela virtude divina. É também por esse motivo que Dionísio denominou de teândrica a ação humana de Cristo, termo que significa virtude de Deus, justamente porque procedia da humanidade enquanto nela havia a virtude da divindade.
6 — Alguns também ficaram em dúvida se havia em Cristo uma só filiação, devido a ser um só suposto, ou se havia duas, devido à dupla natividade. Parece, entretanto, que são duas filiações. Ora, multiplicando-se as causas, multiplicam-se também os efeitos. Como em Cristo há duas natividades, e como a natividade é causa da filiação, conseqüentemente parece que há também duas filiações.
7 — Essa afirmação, de que em Cristo há duas filiações, não é prejudicada pela de que a filiação é uma relação pessoal e que constitui a pessoa, porque essa última só é verdadeira em se tratando da filiação divina. A filiação humana, porém, não é constitutiva de pessoa, mas advém como acidente à pessoa já constituída.
Igualmente a primeira afirmação não é prejudicada porque sabemos que o homem, por uma só filiação, refere-se ao pai e à mãe: de fato, ele nasce de ambos os parentes por uma só natividade. Havendo, com efeito, a mesma causa de relação, há uma só relação real, embora sejam múltiplos os termos.
8 — Além disso, nada impede que uma coisa se relacione com outra, não havendo nela relação real, como por exemplo, o objeto conhecido relaciona-se com o conhecimento sem nele haver relação real. Do mesmo modo, nada impede que uma relação dirija-se para muitos termos. Como, com efeito, a relação é um ser real devido à sua causa, assim também é devido à causa que ela é una ou múltipla. Como Cristo não nasceu do Pai e da mãe por uma só natividade, pode parecer que deva haver nele duas filiações reais devido a essas duas natividades. Mas há um impedimento para que se venha a afirmar que haja em Cristo muitas filiações reais. Com efeito, nem tudo que nasce de algum ser pode ser chamado de filho, mas o pode só o suposto completo. A mão e o pé não são chamados de filhos de um homem, mas somente é dito seu filho o todo individual, isto é, Pedro ou João. Ora, o sujeito próprio da filiação é o suposto. Foi demonstrado acima que em Cristo não há outro suposto que o incriado, ao qual não pode advir no tempo uma relação real, porque, como também já o dissemos, toda relação de Deus com a criatura é, em Deus, relação só de razão. Assim sendo, necessariamente a filiação pela qual o suposto eterno refere-se à Virgem Mãe não é relação real, mas somente relação de razão. Isso, contudo, não impede que Cristo seja verdadeira e realmente Filho da Virgem Mãe, porque Ele realmente nasceu d’Ela. De modo semelhante, também Deus é real e verdadeiramente Senhor das criaturas, porque tem poder real para dominá-las, embora a relação de domínio, da parte de Deus, seja uma relação de razão.
Se em Cristo, porém, houvesse muitos supostos, como alguns chegaram a afirmar, nada proibiria pôr-se em Cristo duas filiações, porque o suposto criado estaria sujeito à filiação temporal.
CAPÍTULO CCXIII
FOI CONVENIENTE CRISTO TER
SIDO PERFEITO EM GRAÇA E NA
SABEDORIA DA VERDADE
1 — Porque, como foi dito, a humanidade de Cristo refere-se à sua divindade, como sendo o seu instrumento, e porque a disposição e a qualidade dos instrumentos são principalmente apreciadas pelo fim a que se destinam, baseando-nos nessas considerações devemos, conseqüentemente, considerar a qualidade da natureza humana pelo Verbo de Deus assumida.
2 — Ora, o fim da assunção da natureza humana pelo Verbo de Deus foi a salvação e a reparação da própria natureza humana. Convinha, por isso, que Cristo possuísse uma tal natureza que adequadamente pudesse ser o agente da salvação dos homens. Ora, a salvação dos homens consiste na fruição da divindade, pela qual o homem torna-se beatificado. Por isso, foi conveniente que Cristo, quanto à sua natureza humana, gozasse perfeitamente da fruição de Deus.
3 — O princípio de cada gênero, com efeito, deve ser perfeito. A fruição de Deus perfaz-se duplamente — na vontade e na inteligência. Na vontade tem-se a perfeita fruição de Deus pelo amor, que nos une a Ele; na inteligência, pelo perfeito conhecimento que d’Ele temos.
A perfeita adesão da vontade a Deus pelo amor alcança-se pela graça, que justifica o homem, conforme se lê: “Justificados gratuitamente pela Sua graça” (Rom 3,24). Portanto, o homem é justo porque adere a Deus pelo amor.
O perfeito conhecimento de Deus tem-se pela luz da sabedoria, que é o conhecimento da verdade divina.
Foi, por isso, conveniente que o Verbo de Deus Encarnado existisse perfeito na força, na sabedoria e na verdade. Lê-se, a respeito, no Evangelho de São João: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós e vimos a Sua glória como do Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1,14).
CAPÍTULO CCXIV
A PLENITUDE DA GRAÇA
DE CRISTO
Devemos, primeiramente, tratar da plenitude da graça de Cristo, e, após, da plenitude da sua sabedoria.
1 — A respeito da graça, deve-se considerar que o termo graça é usado em duas acepções. Uma, enquanto algo é agradável: dizemos que alguém está na graça de outrem por lhe ser agradável. Outra, conforme algo é dado gratuitamente: diz-se que alguém faz uma graça a outrem, quando lhe faz um benefício gratuito. Contudo, essas duas acepções do termo graça não são totalmente desligadas entre si: alguma coisa é dada gratuitamente a alguém porque esse alguém que a recebe é agradável ao que lha dá.
2 — Pode-se ser agradável simplesmente (simpliciter), ou de certo modo (secundum quid).
Simplesmente, quando o que recebe a graça é agradável ao que lha dá, para que este o una a si de alguma maneira: temos por gratos a nós aqueles que propositadamente atraímos a nós conforme a medida e o modo em que nos são agradáveis.
Alguém é agradável a outrem de certo modo, quando o que recebe a graça é grato ao que lha dá para receber alguma coisa dele, não para que seja assumido por ele. Donde se concluir que todo aquele que tem uma graça tem algo que lhe foi dado gratuitamente, mas que nem todo aquele que recebeu algo gratuitamente torna-se agradável ao doador.
3 — Pode-se, por isso, distinguir duas espécies de graças: uma, que se limita a ser dada gratuitamente (“gratia gratis data”); outra, que, além disso, torna agradável o que a recebe (“gratia gratum faciens”).
Além disso, deve-se considerar que é dito dado por graça aquilo que, de modo nenhum, é devido a alguém. De dois modos, com efeito, algo é dito ser devido a alguém: primeiro, conforme a natureza; segundo, conforme a operação.
Um bem é devido conforme a natureza, quando a ordem natural deste ser o exige, como é devido ao homem ter a razão, as mãos, os pés.
Um bem é devido conforme a operação, quando, por exemplo, o salário é devido ao que trabalha.
4 — Portanto, são gratuitamente dados por Deus, aos homens, aqueles dons que lhe excedem a ordem da natureza, e que não são adquiridos por merecimento, embora também as recompensas dadas por Deus por causa do merecimento, às vezes, não percam o nome e a razão da graça, já porque o princípio do merecimento foi a graça, já porque também são dadas muito mais do que podem ser exigidas pelos méritos humanos, conforme se lê na Carta aos Romanos: “A graça de Deus é a Vida Eterna” (Rom 6,22).
5 — Desses dons, alguns excedem a capacidade da natureza humana, e não são conferidos como retribuição de mérito. Esses dons não tornam o homem, contudo, agradável a Deus simplesmente, porque são possuídos, como acontece com o dom da profecia, de ciência e outros semelhantes, vindos de Deus.
Por esses dons e por outros semelhantes, o homem não se une a Deus senão por certa semelhança, enquanto participa de algo da bondade divina, pela maneira que todas as coisas se assemelham a Deus.
Alguns dons que excedem a capacidade da natureza humana, porém, tornam o homem agradável a Deus e o unem a Ele. Esses dons chamam-se graças, não apenas porque são dados gratuitamente, mas ainda porque fazem o homem agradável a Deus.
6 — A união do homem com Deus pode ser de duas espécies.
A primeira é pela afeição, que se realiza pela caridade, a qual, de certo modo, faz o homem um com Deus, conforme está escrito: “Quem adere a Deus, faz-se um espírito com Ele” (I Cor 6,17).
Por essa união Deus também habita no homem, segundo o texto do Evangelho de São João: “Se alguém me ama, seguirá as minhas palavras, e meu Pai o amará, e viremos a ele e nele faremos morada” (Jo 14,23). Por meio dessa união, o homem também está em Deus, conforme se lê: “Quem permanece na caridade, está em Deus, e Deus, nele” (I Jo 14,10).
Torna-se, portanto, agradável a Deus pela recepção do dom gratuito, aquele que é levado pelo amor de caridade a ser um só espírito com Deus, de modo que esteja em Deus e Deus nele. Por isso São Paulo, em uma das suas Cartas, diz que, sem a caridade, os outros dons não são úteis para o homem (I Cor 13,3), justamente porque não o podem fazer agradável a Deus sem que haja caridade. Essa graça é comum a todos os santos. Eis porque o homem Cristo, impetrando tal graça para os discípulos, assim falava: “Que eles sejam um”, isto é, pela união de amor, “Como Nós também somos um” (Jo 17,22).
7 — A segunda união do homem com Deus não é só pela afeição, ou pela habitação, mas também pela unidade de hipóstase (ou de pessoa), de modo que haja uma só e mesma hipóstase (ou pessoa) de Deus e do homem. Essa união do homem com Deus é própria de Jesus Cristo, a respeito da qual já falamos bastante. Foi esta também a graça singular do Homem Cristo: ter sido Ele unido a Deus em unidade de pessoa. Além disso, é um dom concedido gratuitamente, porque excede a faculdade da natureza e porque nenhum mérito o precedeu. Esse dom fez também Cristo agradabilíssimo a Deus, de modo que se possa dizer de Cristo: “Este é meu Filho bem-amado, no qual ponho as minhas complacências” (Mt 3,17; 17,5).
8 — Entretanto, há diferença entre ambas essas graças, porque a graça, que une o homem a Deus pela afeição, existe na alma como uma qualidade habitual: realizando-se com efeito a união pelo ato de amor, e os atos perfeitos procedendo de um hábito, conseqüentemente, para haver esse hábito perfeitíssimo, pelo qual a alma une-se a Deus pelo amor, deve ser infundida na natureza humana uma graça habitual.
Mas a realidade pessoal (ou hipostática) não procede de um hábito, mas das naturezas, às quais pertencem as hipóstases (ou pessoas). Por conseguinte, a união da natureza humana com Deus na unidade de pessoa não se realiza por uma graça habitual, mas pela união das próprias naturezas na pessoa.
Sabemos também que quanto mais uma criatura se aproxima de Deus, tanto mais participa da Sua bondade, e é mais enriquecida por abundantes dons que vêm de Deus, como também, por exemplo, recebe mais calor do fogo quem dele mais se aproxima.
Não pode existir, nem mesmo ser imaginado, um modo de união que mais intimamente aproxime a criatura de Deus, que aquele pelo qual a criatura a Ele se une na unidade da pessoa.
9 — Também, devido a essa união da criatura com Deus na unidade da pessoa, deve-se concluir que a alma de Cristo estava mais plenamente cheia dos dons habituais da graça que a dos outros homens.
Assim sendo, a graça habitual, em Cristo, não foi disposição para união com Deus, mas é efeito dessa união. O próprio modo de exprimir-se do Evangelista supracitado claramente o confirma, quando ele diz: “Nós O vimos como o Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1,14). O Homem Cristo é também o Unigênito do Pai, enquanto o Verbo se fez carne.
10 — Porque o Verbo se fez carne, por isso fez-se também o Homem Cristo cheio de graça e de verdade. Nas coisas que têm a plenitude de uma bondade (ou perfeição), tal plenitude é mais abundante naquela que transmite a bondade às outras, como, por exemplo, tem mais plenitude de luz aquilo que ilumina outras coisas.
Porque, com efeito, o Homem Cristo recebeu, como Unigênito do Pai, a suma plenitude da força, conseqüentemente d’Ele a graça transmite-se aos outros, de modo que o Filho de Deus feito homem devia fazer os homens deuses e filhos de Deus, como se lê em São Paulo: “Deus enviou o Seu Filho feito de uma mulher, feito sob a lei, para redimir os que estavam sob a lei, e para que recebêssemos a adoção de filhos” (Gal 4,5).
11 — Porque também a graça e a verdade de Cristo são dirigidas aos outros, é conveniente que Ele seja a cabeça da Igreja, pois da cabeça para os membros que lhe são conforme por natureza, derivam, de certo modo, os sentidos e os membros. Assim também a graça e a verdade de Cristo derivam para os outros homens.
Lê-se, com relação a isso, na Carta aos Efésios: “E o colocou como cabeça sobre toda a Igreja, que é o Seu corpo” (Ef 1,22). Cristo pode ser dito cabeça não só dos homens, mas também dos Anjos, pela excelência e influência, embora não pela conformidade de natureza pela mesma espécie. Por isso, antes de escrever aquelas palavras, o Apóstolo escrevera que “Deus O constituiu (a Cristo) à sua destra, nos céus, sobre todo principado, potestade, virtude e dominação”.
12 — Devido a essas verdades, acima expostas, foi costume atribuir-se a Cristo três espécies de graças.
Primeira, a graça de união, pela qual a natureza humana, sem mérito algum precedente, recebeu de Deus este dom de ser unida em pessoa ao Filho de Deus.
Segunda, a graça singular, pela qual a alma de Cristo foi mais repleta de graça e verdade que as outras.
Terceira, a graça capital, segundo a qual a graça deriva d’Ele para os outros.
A essas três graças refere-se o Evangelista, em ordem adequada: quanto à graça de união, diz: “O verbo se fez carne”; quanto à graça singular, diz: “Vimo-Lo como o Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade”; quanto à graça capital, acrescenta: “E da Sua plenitude todos nós recebemos”.
CAPÍTULO CCXV
DA GRAÇA INFINITA
DE CRISTO
1 — É peculiar a Cristo ter a graça infinita, porque, conforme o testemunho de João Batista, “Deus não Lhe dá o Espírito por medida” (Jo 3,34). Aos outros, porém, é dado com medida, como se lê na Carta aos Efésios: “A cada um de nós é dada a graça de acordo com a medida da doação feita por Cristo” (Ef 4,7).
No primeiro texto, referindo-se à graça de união, não há dúvida quanto ao seu sentido, pois aos outros santos é dado serem deuses, ou filhos de Deus, por participação, pela recepção de algum dom, dom esse que, sendo criado, necessariamente é finito, como as demais criaturas. A Cristo, porém, foi dado ser Filho de Deus segundo a natureza humana, não por participação, mas por natureza.
Ora, sendo infinita a natureza divina, pela própria união, Cristo recebeu um dom infinito, razão por que, sem dúvida alguma, a graça da união é infinita.
2 — Como, porém, a graça (“gratum faciens”, habitual) é também um dom criado, deve-se afirmar que ela tem essência finita. Contudo, essa graça pode ser dita infinita por três razões:
3 — Primeira, considerando-se quem a recebe. É evidente que a capacidade de toda natureza criada é finita, porque, mesmo sendo infinito o dom recebido pelo gozo ou pelo conhecimento, ele não é recebido infinitamente. Há, com efeito, o limite da capacidade para cada criatura, de acordo com a sua espécie e natureza, o que não impede que a potência divina faça outra criatura de maior capacidade. Mas esta já não seria da mesma natureza e espécie que a precedente. Assim também, por exemplo, se ao número três fosse acrescentada nova unidade, haveria um número de outra espécie. Quando, portanto, a um ser não lhe é dada tanta quantidade de bondade divina quanta seja a capacidade natural da sua espécie, parece que lhe é dada conforme alguma medida. Quando, porém, toda a sua capacidade natural é preenchida, parece que não lhe é dada sob medida, porque, embora haja medida da parte de quem recebe, não há, contudo, medida da parte de quem dá, que está pronto para dar-se todo. Assim, por exemplo, quando alguém vai com um vaso a um rio encontra água disponível sem medida, embora a receba com medida, devido ao tamanho limitado do vaso.
A graça habitual de Cristo é também finita quanto à essência, mas é dito que Lhe foi dada infinitamente e sem medida, porque tanto Lhe foi dada quanto pôde recebê-la, a sua natureza criada.
4 — Segunda, considerando-se o próprio dom recebido. Deve-se saber que nada impede que uma coisa seja por essência finita, mas que, devido a alguma forma, seja considerada infinita. E por essência infinito somente aquilo que possui toda a plenitude do ser, o que convém só a Deus, porque Deus é o próprio Ser.
Supondo-se uma forma especial não existindo em sujeito — por exemplo: a brancura, o calor — essa forma não teria essência infinita, porque essa essência estaria limitada ao seu gênero ou à sua espécie, mas, segundo a natureza específica, ela estaria sem termos e sem medida, tendo assim tudo o que possa pertencer àquela espécie.
Se, porém, a brancura ou o calor foram recebidos em um sujeito, essas formas sempre não possuiriam tudo aquilo que pertence necessariamente, e sempre, à natureza da forma, mas, somente quando aquilo que é perfeitamente possuído é possuído na medida em que o pode ser perfeitamente, isto é, quando o modo de possuir corresponda à capacidade da coisa possuída.
Assim também a graça habitual de Cristo foi finita quanto à essência, mas é dito ter sido ela sem termo, sem medida, porque Cristo recebeu totalmente tudo o que pode pertencer à natureza da graça. Os outros homens, entretanto, não recebem tudo o que pertence à natureza da graça, mas uns, de um modo; outros, de outro. Está escrito: “Há diversidade de dons” (I Cor 12,4; cf. 7,7).
5 — Terceira, considerando-se a causa. Sabemos que o efeito está, de certo modo, contido na causa. Quem, portanto, possua uma causa para influir com virtude infinita, possui também a capacidade de influir sem medidas, de modo quase infinito, como, por exemplo, se uma pessoa que possuísse uma fonte da qual a água pudesse jorrar infinitamente, dir-se-ia que ela também possuía a água sem medidas, e, de certo modo, infinitamente.
Assim também a alma de Cristo possui a graça infinita e sem medidas, porque Cristo tem o Verbo unido a Si, o Verbo que é o princípio indeficiente e infinito de toda a emanação das criaturas.
6 — Porque também a graça singular da alma de Cristo é infinita, conforme falamos acima, é evidente a conclusão que a graça de Cristo, enquanto cabeça da Igreja, é também infinita: do que tem, Ele transmite aos outros.
Donde, finalmente, porque recebeu os dons do Espírito sem medida, possuir Cristo a virtude de infundir a graça, sem medida, nas almas, e isso pertence à graça capital. Assim sendo, a sua graça não é apenas suficiente para a salvação de alguns homens, mas, também, de todo o mundo, como está escrito: “Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não só pelos nossos, mas pelos de todo o mundo” (I Jo 2,2). Pode-se até acrescentar: de muitos mundos, se é que existem outros.
CAPÍTULO CCXVI
A PLENITUDE DA SABEDORIA
DE CRISTO
1 — Continuando a exposição, devemos agora tratar da plenitude da sabedoria de Cristo.
Deve-se considerar, em primeiro lugar, que como em Cristo há duas naturezas: a divina e a humana, tudo aquilo que pertence a cada uma delas é necessário que seja duplicado em Cristo, como se disse acima. Ora, a sabedoria convém à natureza humana e à divina. Na Escritura lê-se que Deus é sábio: “Deus é sábio de coração, forte pelo poder” (Jó 9,4). Mas também a Escritura chama aos homens de sábios, ora referindo-se à sabedoria desta mundo, como se lê: ‘Que o sábio não se glorie de sua sabedoria” (Jer 9,23); ora, à sabedoria divina, como também se lê: “Eis que enviarei a vós profetas, sábios e escribas” (Mt 13,34). Conseqüentemente, devemos atribuir a Cristo duas sabedorias, conforme as duas naturezas, a saber, a sabedoria incriada, que Lhe convém como Deus, e a sabedoria criada, que Lhe convém como a homem.
2 — Enquanto Deus e Verbo de Deus, a sabedoria de Cristo é gerada do Pai, conforme se lê: “Cristo, a virtude e a sabedoria de Deus” (I Cor 1,24). Em qualquer ser inteligente o seu verbo interior não é senão concepção da sua sabedoria. Como (já o dissemos acima) o Verbo de Deus é perfeito e único, o Verbo de Deus é também a perfeita concepção da sabedoria do Pai, de modo que tudo o que houver como não gerado na sabedoria de Deus Pai plenamente está contido como gerado e concebido no Verbo. Por isso é dito de Cristo: “N’Ele estão escondidos os tesouros da sabedoria e da ciência” (Col 2,3).
3 — Enquanto homem, há, em Cristo, duas espécies de conhecimento. Um, deiforme, pelo qual vê a Deus por essência, e vê as outras coisas em Deus, como o próprio Deus conhecendo-se conhece em Si mesmo todas as outras coisas. Por essa visão, o próprio Deus é bem-aventurado, e o é, também, toda criatura que o frui perfeitamente.
Porque dizemos que Cristo é o autor da salvação humana, é também necessário dizer que esse conhecimento convenha à alma de Cristo, como convém ao autor da salvação. O princípio, com efeito, deve ser imóvel e elevado ao máximo acima das coisas que dele decorrem. Foi, portanto, conveniente que a visão de Deus, na qual consiste a beatitude e a salvação eterna dos homens, estivesse em Cristo de modo mais excelente que nos outros homens, e como que em princípio imóvel.
Diferenciam-se os seres móveis dos imóveis, porque aqueles não possuem, enquanto móveis, desde o princípio, a própria perfeição, mas a vão adquirindo através da sucessão do tempo; estes, porém, enquanto imóveis, possuem sempre, desde o início, as próprias perfeições. Foi, portanto, conveniente que Cristo, autor da salvação humana, possuísse desde o início da sua encarnação a plena visão de Deus, e que não o fosse adquirindo na sucessão do tempo, como acontece com os outros santos.
Foi também conveniente que aquela alma, unida que estava mais intimamente a Deus, fosse mais beatificada, pela visão divina, que as outras criaturas, pois, nesta visão, os graus são considerados enquanto uns vêem mais claramente a Deus que os outros, Deus que é a causa de todas as coisas.
Uma causa, com efeito, é tanto mais conhecida, quanto mais os seus efeitos nela podem ser conhecidos. Conhece-se mais plenamente uma causa enquanto a sua virtude é mais plenamente conhecida, e não se tem o conhecimento dessa virtude sem se conhecer os efeitos, pois a quantidade da virtude mede-se pelos efeitos. Por isso, daqueles que vêem a essência de Deus, alguns contemplam, no próprio Deus, mais efeitos ou razões das obras divinas que outros, cuja visão é menos clara. Já nos referimos acima que, por esse motivo, os Anjos que são superiores devem instruir os inferiores.
Portanto, a alma de Cristo, que obteve entre as demais criaturas a suma perfeição da visão divina, contempla plenamente em Deus todas as obras divinas e as razões de tudo que foi, é ou será, de modo a iluminar não só aos homens, bem como aos Anjos mais elevados. Por isso São Paulo escreveu: “N’Ele estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e ciência de Deus” (Col 2,3). Lê-se também na Carta aos Hebreus: “Todas as coisas estão claras e nuas aos olhos d’Ele” (Heb 14,13).
4 — Contudo, a alma de Cristo não pode ter conhecimento compreensivo da divindade. Efetivamente, foi dito acima que a coisa é conhecida pelo conhecimento compreensivo quando tanto ela é conhecida quanto é possível ser conhecida. Sabemos que uma coisa é possível de ser conhecida enquanto é ser e verdade. Ora, o ser divino e a verdade divina são infinitos. Logo, Deus é infinitamente conhecível. Nenhuma criatura pode conhecer infinitamente um objeto infinito. Logo, nenhuma criatura, ao ver a Deus, pode d’Ele ter conhecimento compreensivo. Ora, a alma de Cristo é criatura, e também tudo o que em Cristo pertence só à natureza humana é criado. Se não o fosse, não haveria distinção entre a natureza humana e a divina, que é incriada, em Cristo.
É incriada a hipóstase (ou pessoa) do Verbo, que é uma só em duas naturezas. Por isso, falando simplesmente não dizemos que Cristo é criatura, porque pelo nome Cristo é significada a hipóstase, embora a alma e o corpo de Cristo sejam criaturas.
A alma de Cristo não tem visão compreensiva de Deus, mas Cristo enquanto Deus tem-na, pela Sua sabedoria incriada, conforme o Senhor disse: “Ninguém conhece o Filho, senão o Pai e ninguém conhece o Pai, senão o Filho” (Mt 11,27). Neste texto, Cristo refere-se a seu conhecimento compreensivo.
5 — Deve-se também considerar que pela mesma razão que se compreende a essência de uma coisa compreende-se também a sua virtude, pois cada coisa só pode agir enquanto é ser em ato. Se, portanto, a alma de Cristo não pode compreender a essência da divindade, como se viu, é impossível que compreenda também a sua virtude. Compreendê-la-ia, porém, se conhecesse tudo o que Deus pode fazer, ou por quais razões pudesse produzir os efeitos. Isso, entretanto, é impossível. Não conhece, portanto, a alma de Cristo, tudo o que Deus possa operar, ou por que meios possa operar.
6 — Mas porque Cristo, também enquanto homem, foi colocado, por Deus Pai, acima de toda criatura, é conveniente que tudo o que Deus de algum modo tenha feito (Cristo) perceba, por conhecimento completo, na própria visão da essência divina. Sob essa consideração, a alma de Cristo é dita onisciente, porque tem o conhecimento de tudo o que é, foi ou será. As outras criaturas que vêem a Deus, porém, umas com mais abundância, outras com menos, percebem o conhecimento dos supracitados efeitos na mesma visão de Deus.
7 — Além desse conhecimento das coisas pelo qual elas são conhecidas pela inteligência criada na própria visão da essência divina, há outros tipos de conhecimentos, pelos quais as criaturas as conhecem.
Os Anjos, além do conhecimento matutino, pelo qual conhecem as coisas no Verbo, têm o conhecimento vespertino, pelo qual as conhecem nas suas próprias naturezas. Mas tal conhecimento compete aos homens, devido à sua natureza, diferentemente dos Anjos.
Os homens, de acordo com a ordem da natureza humana, buscam a verdade inteligível das coisas através dos sentidos, como disse Dionísio, de modo que as espécies inteligíveis das suas inteligências são abstraídas dos fantasmas pela ação do intelecto agente. Mas os Anjos recebem a ciência das coisas pelo influxo da luz divina, de modo a serem impressas, nas inteligências angélicas, as razões ou semelhanças das coisas. Em ambos, além desse conhecimento, nos homens e nos Anjos, que lhes convém por natureza, há também o conhecimento sobrenatural dos mistérios divinos. Para esse conhecimento sobrenatural, os Anjos são iluminados pelos outros Anjos, e os homens, pela revelação profética.
8 — Como todas perfeições que se vêem nas criaturas devem ser atribuídas também à alma de Cristo, que é a criatura superior a todas as demais, convenientemente Lhe devem ser atribuídos, além do conhecimento pelo qual Ele vê a essência divina, outros três conhecimentos.
O primeiro é o conhecimento experimental, que também os outros homens possuem, enquanto conhecem as coisas pelos sentidos, como convém à natureza humana.
O segundo, é o conhecimento infundido por Deus, para que Cristo conheça todas as outras coisas às quais se estende, ou que se possa estender, o conhecimento natural do homem. Ora, foi conveniente que a natureza humana, assumida pelo Verbo de Deus, em nada fosse deficiente de perfeição, porque por ela toda a natureza humana foi restaurada. Sabemos que é imperfeito tudo o que está em potência antes de ser reduzida a ato. Ora, a inteligência humana está em potência para tudo que é inteligível e possível de ser conhecido naturalmente pelo homem. Logo, a alma de Cristo recebeu a ciência de todas essas coisas pelas espécies divinamente infundidas, enquanto toda a potência da Sua inteligência humana foi reduzida a ato.
Houve também um terceiro conhecimento na alma de Cristo, pelo qual conheceu tudo o que possa pertencer aos mistérios da graça, que estão acima do conhecimento natural do homem, porque Cristo, segundo a natureza humana, não foi apenas o reparador da natureza, mas ainda o propagador da graça. Esses mistérios são conhecidos pelos homens pelo dom da sabedoria ou pelo espírito de profecia, pois, para conhecê-los, a inteligência humana está em potência, bem que deva ser elevada a ato por um agente mais elevado. Para o conhecimento das coisas naturais, a inteligência é reduzida a ato pela luz do intelecto agente; mas o conhecimento daqueles mistérios, recebe-se pela luz divina.
9 — De tudo o que se disse anteriormente, claramente se conclui que a alma de Cristo, entre as demais criaturas, obteve o sumo grau de conhecimento, quer quanto à visão da essência de Deus, quer quanto ao conhecimento das coisas nela contidas. O mesmo se diga quanto ao seu conhecimento dos mistérios da graça, bem como quanto ao conhecimento das coisas naturais que podem ser (por todos) conhecidas.
10 — Portanto, em nenhum desses três tipos de conhecimento Ele pôde progredir. Mas quanto ao conhecimento das coisas sensíveis, é claro que as conheceu experimentalmente pelos sentidos do corpo, cada vez mais, na sucessão do tempo. Assim sendo, somente quanto ao conhecimento experimental houve progresso na alma de Cristo, conforme se lê: “O menino crescia em sabedoria e idade” (Lc 2,52). Esse texto também pode ser interpretado em outro sentido, a saber, que o progresso da sabedoria de Cristo não seja atribuído a Ele próprio, de modo a tornar-se mais sábio, mas à sabedoria dos outros que progredia enquanto, pela sabedoria de Cristo, iam-se tornando cada vez mais instruídos.
Isso foi feito providencialmente, isto é, que se manifestasse semelhante aos outros homens, porque, manifestando na infância a perfeita sabedoria, o mistério da Encarnação poderia ser tido como fantástico.
CAPÍTULO CCXVII
A MATÉRIA DO CORPO
DE CRISTO
Do exposto pode-se concluir como tenha sido formado o corpo de Cristo.
1 — Poderia, efetivamente, Deus tê-Lo feito do limo da terra ou de qualquer outra matéria, como formou o corpo do primeiro homem. Mas esse processo não teria sido adequado à restauração do gênero humano, para o qual, conforme dissemos, o Filho de Deus assumiu a carne.
Não teria sido suficientemente reintegrada, na sua primitiva honra, a natureza do gênero humano, descendente do primeiro pai e a ser sanada, se não tivesse assumido o seu corpo, Aquele que foi o vencedor do diabo e triunfador da morte, sob cujos domínios o gênero humano está prisioneiro devido ao pecado de Adão, da mesma matéria que a deste, mas de qualquer outra. Ora, as obras de Deus são perfeitas, e Deus leva à perfeição aquilo que deseja restaurar, e concede o que fora subtraído em maior quantidade, conforme se lê: “A graça de Deus abundou mais por Cristo” (Rom 5,15).
Logo, foi conveniente que o Filho de Deus tivesse assumido o Seu corpo da natureza vinda de Adão.
2 — Ademais, o mistério da Encarnação torna-se, pela fé, proveitoso para os homens. Se aqueles homens não cressem que o homem que viam fosse o Filho de Deus não o seguiriam como autor da salvação, que foi morto pelos judeus, pelos que, devido à incredulidade, o mistério da Encarnação levou-os mais à condenação que à salvação.
Para que esse mistério inefável fosse acreditado mais facilmente, o Filho do Homem providenciou tudo para mostrar-se como verdadeiro homem. Não teria, porém, sido como tal considerado, se tivesse tirado o seu corpo de outra matéria que a da natureza humana. Foi, portanto, conveniente que assumisse um corpo vindo do corpo do primeiro pai.
3 — Demais, o Filho de Deus feito homem trouxe a salvação para o gênero humano, não só para ser remédio pela graça conferida, bem como para dar um exemplo que não pudesse ser rejeitado. Outro qualquer homem poderia suscitar dúvidas quanto à sua vida e à sua doutrina, devido às deficiências do conhecimento humano e do conhecimento pleno da verdade. Mas como aquilo que o Filho de Deus ensinou foi acreditado como verdadeiro, assim também o que Ele fez foi aceito como indubitavelmente bom. Por conseguinte, foi conveniente que tivéssemos n’Ele o exemplo da glória, que esperamos, e da virtude, que nos dá merecimento.
4 — Esse duplo exemplo seria menos eficaz se Cristo tivesse recebido a matéria do seu corpo de outra que daquela donde os outros humanos recebem os seus.
Se desejássemos persuadir a alguém aceitar os sofrimentos, como Cristo os sustentou, e de esperar a ressurreição, como Cristo ressuscitou, poderia tal pessoa escusar-se de nos atender, alegando a diversidade do seu corpo, do de Cristo.
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Logo, para que o exemplo de Cristo tivesse sido mais eficaz, foi conveniente que não assumisse a natureza do próprio corpo senão da natureza advinda do primeiro pai.
CAPÍTULO CCXVIII
O CORPO DE CRISTO NÃO FOI
FORMADO DE SÊMEN HUMANO[1]
Contudo, não foi conveniente que o corpo de Cristo fosse formado na natureza humana, como são formados os corpos dos outros homens.
1 — Como Cristo assumira a natureza para justificá-la do pecado, convinha também que a tivesse assumido de tal modo que não pudesse incorrer em contágio algum de pecado. Ora, os homens incorrem em pecado original enquanto são gerados pela virtude ativa humana que está no sêmen viril, sêmen que, segundo a própria natureza, preexistiu em Adão pecador. Além disso, assim como o primeiro homem transmitiria aos pósteros a justiça original juntamente com a transmissão da natureza, também transmitiu a culpa original com a transmissão da natureza realizada pelo sêmen viril. Por isso, foi conveniente que o corpo de Cristo fosse formado sem a presença do sêmen viril.
2 — Ademais, a virtude ativa do sêmen viril age conforme a natureza, e, por isso, o homem por ele gerado não é imediatamente levado ao estado de homem perfeito, mas passa por determinadas etapas. Ora, o que é natural atinge os fins a que está destinado, passando por determinadas etapas. Era conveniente, porém, que o corpo de Cristo estivesse perfeito e informado pela alma racional, já quando assumido, porque um corpo só devia ser assumido pelo Verbo de Deus se estivesse unido à alma racional, embora não tivesse alcançado a estatura normal ao homem.
Por essa razão, não devia o corpo de Cristo ter sido formado pela virtude do sêmen viril.
CAPÍTULO CCXIX
A CAUSA DA FORMAÇÃO
DO CORPO DE CRISTO
Como a formação natural do corpo humano vem do sêmen viril, qualquer outro modo, por que tenha sido formado o corpo de Cristo, é sobrenatural.
1 — Só Deus é autor da natureza, e, como foi acima dito, só Deus pode agir sobrenaturalmente nas coisas naturais criadas. Donde se concluir que Deus formou milagrosamente o corpo de Cristo, tirando-o de matéria humana natural. Como, porém, toda ação de Deus na criatura é comum às Três Pessoas, contudo, por alguma conveniência, é atribuída ao Espírito Santo a formação do corpo de Cristo. O Espírito Santo é, com efeito, o amor do Pai e do Filho, pelo qual amam-se ambos mutuamente. Ora, Deus, como escreveu São Paulo na Carta aos Efésios, devido à imensa caridade com que nos amou, determinou que Seu Filho se encarnasse. É, por conseguinte, conveniente atribuir-se ao Espírito Santo a formação da carne de Cristo.
2 — Além disso, o Espírito Santo é a fonte de todas as graças, porque é o primeiro em que são dados todos os dons gratuitos. Ora, foi dito acima, por abundância da graça ter sido a natureza humana assumida na unidade da pessoa divina. Para ficar evidente que a graça foi assim concedida, atribui-se ao Espírito Santo a formação do corpo de Cristo.
3 — A conveniência dessa atribuição manifesta-se também pela semelhança do verbo humano com o Espírito Santo. Sabemos que o verbo humano, enquanto existe no coração, é semelhante ao Verbo Eterno, enquanto existe no seio do Pai. Mas o verbo humano assume a voz para ser sensivelmente conhecido pelos homens: assim também o Verbo de Deus assumiu a carne para apresentar-se visível aos homens. Ora, a voz humana é formada pelo espírito do homem. Conseqüentemente, também convinha que a carne do Verbo de Deus fosse formada pelo Espírito do Verbo de Deus.
CAPÍTULO CCXX
EXPOSIÇÃO DO ARTIGO DO SÍMBOLO
SOBRE A CONCEPÇÃO E O
NASCIMENTO DE CRISTO
Portanto, para que fosse excluído o erro de Ebião e de Cerinto, que afirmaram ter sido o corpo de Cristo originado de sêmen viril, diz o Símbolo dos Apóstolos: “Foi concebido do Espírito Santo”. Lê-se, porém, em substituição a esse texto, no Símbolo dos Padres: “E se encarnou do Espírito Santo”, substituição que foi feita para que se acredite que Cristo assumiu verdadeira carne, e não, conforme pensavam os maniqueus, que Ele assumira um corpo fantástico.
Foi também acrescentado no Símbolo dos Padres: “por nós homens”, para excluir o erro de Orígenes, que afirmara também poderem os demônios ser libertados pela virtude da paixão de Cristo.
Acrescentou-se ainda: “por nossa salvação”, para demonstrar que o mistério da Encarnação de Cristo foi suficiente para nossa salvação, contra a heresia dos Hazareus, que pensavam que a fé de Cristo sem as obras da lei não fosse suficiente para a salvação humana.
Acrescentou-se ainda: “Desceu dos céus”, para excluir o erro de Fotino, que afirmara ter sido Cristo simples homem e tido o Seu início em Maria, de modo que mais subiu ao céu pelo mérito de uma vida boa iniciada na terra, do que, tendo origem celeste, desceu para a terra, assumindo a carne.
Finalmente, foi acrescentado: “E fez-se homem”, para excluir o erro de Nestório, cuja doutrina dizia que o Filho de Deus, de quem fala o Símbolo, era mais um habitante em um homem do que um verdadeiro homem.
CAPÍTULO CCXXI
FOI CONVENIENTE QUE CRISTO
NASCESSE DE UMA VIRGEM
1 — Foi demonstrada anteriormente a conveniência de ter o Filho de Deus assumido a Sua carne de matéria pertencente à natureza humana. Ora, como é a mulher quem fornece a matéria na geração, foi também conveniente que Ele assumisse a sua carne de uma mulher. Lê-se, a respeito, em São Paulo: “Enviou Deus o Seu Filho, feito de mulher” (Gal 4,4).
2 — Para poder fornecer a matéria para a formação do corpo humano, deve a mulher unir-se ao homem. Vimos acima, contudo, que a formação do corpo de Cristo não devia ter seu princípio no sêmen viril. Por isso, a mulher da qual o Filho de Deus assumiu a Sua carne concebeu sem recebimento do sêmen viril.
3 — Sabemos que quanto mais um ser está repleto de dons espirituais, tanto mais está separado das coisas carnais: pelas coisas espirituais o homem é atraído para o alto; pelas carnais o é para baixo. Como a formação do corpo de Cristo devia ser realizada pelo Espírito Santo, convinha também que a mulher, da qual Cristo tirou o Seu corpo, fosse ao máximo repleta de bens espirituais, de modo que não só a alma fosse favorecida pelas virtudes, mas também o ventre, pela prole divina. Convinha também que não só a alma fosse livre de pecado, mas que o corpo igualmente fosse imune de toda corrupção carnal. Por esse motivo, a Mãe de Deus não teve experiência de união carnal, não só na concepção do seu Filho, bem como nem antes nem depois.
4 — A virgindade de Maria convinha não só para ela, mas também para Aquele que dela devia nascer. Ora, o Filho de Deus vinha ao mundo assumindo a carne para nos elevar, para nos preparar para o estado da ressurreição no qual para os homens “não haverá noivado, nem matrimônio, mas onde todos serão como os Anjos do céu” (Mt 22,30). Por isso Cristo propôs uma doutrina que ensinava a continência e a integridade: para que na terra, de certo modo, já resplandeça na vida dos fiéis a imagem da glória futura. Convinha, portanto, que também pela própria origem da Sua vida recomendasse a integridade, nascendo de uma Virgem.
5 — É dito, porém, no Símbolo dos Padres: “que se encarnou da Virgem Maria”, para que fosse afastado o erro de Valentino e daqueles que afirmaram ter sido fantástico o corpo de Cristo, ou de outra natureza, que a humana, e, como tal, não assumido nem formado no corpo da Virgem.
CAPÍTULO CCXXII
A SANTA VIRGEM É A MÃE
DE CRISTO
Pelo que foi dito, fica também refutado o erro de Nestório, que não queria confessar ter sido a Santíssima Maria Mãe de Deus.
1 — Nos dois Símbolos é dito, respectivamente, que o Filho de Deus nasceu e se encarnou da Virgem Maria. A mulher da qual um homem nasce lhe é chamada de mãe, porque ela forneceu a matéria para a sua concepção. Logo, a Santa Virgem Maria, que forneceu a matéria para a concepção do Filho de Deus, deve ser dita verdadeira Mãe de Deus. Pouco importa à natureza da maternidade qualquer que seja a virtude que informe a matéria fornecida pela mãe. Assim sendo, a Virgem Maria não é menos mãe do que qualquer mulher que fornece a matéria para conceber um filho pela virtude do sêmen viril.
2 — Se alguém, entretanto, quiser dizer que a Santíssima Virgem não deve ser chamada de Mãe de Deus porque dela não foi assumida a divindade, mas só a carne, como afirmava Nestório, revela simplesmente que não sabe o que diz. Com efeito, uma mulher não é chamada mãe de um homem porque tudo que nele existe tenha se originado dela. Sabemos que o homem é constituído de alma e corpo, e nele é mais próprio do homem aquilo que se refere à alma, do que aquilo que se refere ao corpo. Ora, a alma de homem algum é assumida da mãe, mas, ou é imediatamente criada por Deus, conforme a verdade; ou por tradução, como alguns opinaram. Nessa última hipótese, a alma não seria assumida da mãe, mas mais do pai, porque na geração dos outros animais, conforme a doutrina do Filósofo, o macho fornece a alma, e a fêmea, o corpo.
Portanto, como a mulher é chamada de mãe de qualquer homem porque o corpo deste foi dela assumido, assim também a Santa Virgem Maria deve ser chamada de Mãe de Deus se dela foi assumido o corpo de Deus.
3 — O corpo assumido na unidade da pessoa do Filho de Deus, que é verdadeiro Deus, deve, evidentemente, ser chamado também de corpo de Deus. Por conseguinte, os que confessam que a natureza humana foi assumida pelo Filho de Deus, na unidade de Pessoa, devem também necessariamente afirmar que a Santíssima Virgem Maria é Mãe de Deus.
Como, porém, Nestório negava que houvesse uma só pessoa em Cristo Deus e Homem, conseqüentemente também negava que a Virgem Maria fosse a Mãe de Deus.
CAPÍTULO CCXXIII
O ESPÍRITO SANTO NÃO
É PAI DE CRISTO
Embora diga-se que o Filho de Deus se encarnou e foi concebido da Virgem Maria por obra do Espírito Santo, não se deve, contudo, dizer que o Espírito Santo é Pai de Cristo, embora se deva dizer que a Santa Virgem é Sua mãe.
1 — Primeiro, porque na Santíssima Virgem Maria realizou-se tudo o que é exigido pela natureza da maternidade: ela forneceu a matéria para, desta matéria, ser formado o corpo de Cristo concebido pelo Espírito Santo, conforme exige a natureza da maternidade.
Mas, quanto ao Espírito Santo, n’Ele não se encontra tudo o que é exigido pela natureza paterna.
É próprio da natureza do pai gerar, da sua natureza, um filho que lhe seja também conatural. Portanto, existindo um agente que produza um dado efeito não de sua substância, nem em semelhança de natureza, esse agente não pode ser chamado de “pai” de tal efeito. Por essa razão não dizemos que o homem é pai das obras realizadas pela sua arte, e, quando o dizemos, é somente em sentido metafórico. Ora, o Espírito Santo é conatural a Cristo conforme a natureza divina, mas não enquanto seja pai de Cristo, pois, sob essa consideração, Ele apresenta mais como procedente de Cristo do que como Seu princípio.
Nem conforme a natureza humana o Espírito Santo é conatural a Cristo. Com efeito, foi dito acima que, em Cristo, a natureza humana e a natureza divina são distintas. Foi também dito que não há na natureza humana um verbo de natureza divina. Resta, pois, que o Espírito Santo não deva ser dito pai de Cristo enquanto homem.
2 — Segundo, porque em cada filho o que há de mais principal provém do pai; da mãe, porém, origina-se o que há de secundário. Nos demais animais a alma provém do pai; o corpo, da mãe. No homem, embora a alma racional não provenha do pai, porque é diretamente criada por Deus, é a virtude do sêmen que age dispositivamente para a recepção da forma. Em Cristo, o que há de mais principal é a Pessoa do Verbo, a qual de modo algum procede do Espírito Santo. Daí concluir-se que o Espírito Santo não possa ser dito o Pai de Cristo.
CAPÍTULO CCXXIV
A SANTIFICAÇÃO DA
VIRGEM MARIA[2]
Como verificou-se anteriormente, a Santíssima Virgem Maria tornou-se Mãe de Deus concebendo do Espírito Santo. Para corresponder à dignidade de um Filho tão excelso, convinha que Ela também fosse purificada de modo extremo.
1 — Por isso, deve-se crer que Ela foi imune de toda nódoa de pecado atual, não somente de pecado mortal, bem como de venial, graça jamais concedida a nenhum outro santo abaixo de Cristo, como se lê na Carta de São João: “Se dissermos que não temos pecado, seduzimo-nos a nós mesmos, mentimos” (I Jo 1,8). Pode também ser entendido como aplicado à Virgem Mãe de Deus o seguinte texto dos Cânticos: “És toda formosa, ó minha amiga, e em ti não há mancha alguma” (Cant 4,7).
2 — Ela não foi imune apenas de pecado atual, como também, por privilégio especial, foi purificada do pecado original Convinha, contudo, ser Ela concebida com pecado original, porque foi concebida de união de dois sexos. Só a Ela, com efeito, foi reservado o privilégio de, sendo Virgem, conceber o Filho de Deus. A união dos sexos, que após o pecado do primeiro pai, não se pode realizar sem libidinagem, transmite à prole o pecado original. Além disso, se ela não tivesse sido concebida com pecado original, não teria necessidade de ser remida por Cristo, e, assim, Cristo não seria o Redentor universal de todos os homens, o que também degradaria a dignidade de Cristo. Deve-se, pois, ter que Ela foi concebida com pecado original, mas dele purificada de algum modo especial. Efetivamente, alguns são purificados do pecado original após terem saído do útero materno, como os que são santificados pelo batismo; alguns, porém, são santificados, por certo privilégio da graça, quando ainda estão no útero materno, como se lê a respeito do Profeta Jeremias: “Antes que Eu te formasse no útero, Eu te conheci; e antes que saísses do seio materno, Eu te santifiquei” (Jer 1,5).
Sabemos também que foi dito de João Batista pelo Anjo: “Será repleto do Espírito Santo ainda no útero de sua mãe” (Lc 1,15). Ora, não se pode pensar que Deus tenha denegado à sua própria Mãe o que foi concedido ao Profeta e ao Precursor de Cristo. Por isso, crê-se que Ela foi santificada quando ainda estava no útero, antes de libertar-se dele.
3 — A santificação da Virgem não precedeu a infusão da alma ao seu corpo. Se tivesse precedido, Ela jamais estaria sujeita ao pecado original, e, assim, não necessitaria da Redenção.
Devemos, além disso, considerar que o sujeito de pecado original não pode ser senão a criatura racional. A graça da santificação radica-se primeiramente na alma, e não pode atingir o corpo, senão pela alma. Por conseguinte, deve-se crer que a Virgem Maria foi santificada após a infusão da alma.
4 — Todavia, a santificação da Virgem foi maior que a dos outros santificados no útero materno. Os outros, desse modo santificados, verdadeiramente, também foram purificados do pecado original. Não lhes foi, porém, concedida a graça de, após, não mais poderem pecar, pelo menos venialmente. Mas a Santíssima Virgem Maria foi santificada com abundância de graça tão considerável que, daí para o futuro, foi conservada imune de todo pecado, quer mortal, quer venial. O pecado venial muitas vezes introduz-se na alma de maneira sub-reptícia, porque se origina de um movimento desordenado da concupiscência, ou de alguma paixão que antecede ao raciocínio, e, por esse motivo, esses primeiros movimentos são chamados também de pecados. Como a Santíssima Virgem Maria jamais sentiu os movimentos desordenados das paixões, conclui-se que também nunca pecou venialmente. Esses movimentos desordenados surgem quando o apetite sensitivo, que é o sujeito das paixões, não se subordina à razão, de modo que, por vezes, não se deixe dirigir pela ordenação da razão, indo até, muitas vezes, contra a razão, e nisto consiste o movimento de pecado. Na Virgem Santa, porém, o apetite sensitivo estava subordinado à sua razão, devido à graça que a santificou, de tal modo que jamais teve um movimento contra a razão, mas, pelo contrário, sempre seguiu o império desta.
5 — Poderia, contudo, ter aparecido, n’Ela, movimentos repentinos não ordenados pela razão. No Senhor Jesus Cristo houve algo de mais perfeito. N’Ele, o apetite inferior subordinava-se à razão de modo a não se mover para nada a não ser conforme a ordem da razão, enquanto esta imperava ou permitia que ele se pusesse em ato.
Isso parece ter pertencido à integridade do primeiro estado, isto é, que as forças inferiores totalmente se sujeitassem à razão. Pelo pecado do primeiro pai, tal sujeição foi destruída não só nele, bem como nos outros que dele contraíram o pecado original. Nestes, mesmo após a purificação na graça do Batismo, permanece a revolta, ou a desobediência das forças inferiores à razão. Essa revolta, que é chamada de inclinação para o pecado (“fomes peccati”), conforme o que foi dito acima, absolutamente não existia em Cristo. Mas na Santíssima Virgem Maria, as forças inferiores não estavam assim totalmente subordinadas, de modo que não aparecesse nela nenhum movimento não predeterminado pela razão. Todavia, esses movimentos eram-lhe coibidos pela virtude da graça, e, assim, jamais se moviam contra a razão.
Por esse motivo, diz-se que, na Santíssima Virgem, permaneceu substancialmente, após a sua santificação, a inclinação para o pecado, porém tal inclinação estava ligada.
CAPÍTULO CCXXV
A PERPÉTUA VIRGINDADE
DA MÃE DE CRISTO
1 — Se na primeira santificação a Virgem Maria foi fortificada contra todo movimento de pecado, como anteriormente foi relatado, quando o Espírito, conforme a palavra do Anjo, a ela desceu para formar o corpo de Cristo, então a graça Lhe foi muito mais aumentada e a inclinação ao pecado foi-Lhe também enfraquecida, e, mesmo, totalmente afastada.
Por esse motivo, após ter sido ela feita o sacrário do Espírito Santo e o habitáculo de Deus, não só deve acreditar-se não haver n’Ela mais movimento para pecado, bem como que não tivesse experimentado deleite de concupiscência carnal.
2 — Deve, por isso, ser abominado o erro de Helvídio, que, embora tenha afirmado ter Cristo sido concebido e nascido de uma Virgem, contudo, ensinava que, após o parto, ela gerara outros filhos, tendo José como pai deles.
Tal erro não pode ser fundamentado no Evangelho de São Mateus, onde há um texto em que se lê que José “Não a conheceu (isto é, à Virgem Maria) até que ela desse à luz o seu filho primogênito” (Mt 1,25), como se, após ter Ela dado à luz Cristo, José a tivesse conhecido. Não pode, porque até (“donec”), neste texto, não significa um tempo finito, mas, indeterminado. Sabemos que é costume, na Escritura, afirmar-se que tenha algo sido especialmente realizado, ou que não se tenha realizado, até que se venha a duvidar dessa afirmação.
Assim é que é dito no Salmo 109 “Senta-te à minha direita até que eu ponha os teus inimigos por escabelo dos teus pés” (Sl 109,1). Ora, poderia haver dúvida se Cristo estava sentado à direita de Deus enquanto não estivessem submetidos a Ele os Seus inimigos, mas depois se viu que foram, e a dúvida não mais poderia permanecer.
Assim também poderia haver dúvida se antes do parto do Filho de Deus, José tivesse conhecido Maria. Por isso o Evangelista teve o cuidado de afastar essa dúvida, estabelecendo como indubitável que José não A conheceu, porque após o parto, de fato, não A conheceu.
3 — Tal erro também não pode ser fundamentado no fato de Cristo ter sido, no texto citado, chamado de primogênito, como que, devido a essa denominação, Maria tivesse tido outros filhos, depois de ter Cristo nascido. A Escritura, com efeito, chama de primogênito o filho antes de quem nenhum outro é gerado, conservando, mesmo que após também nenhum seja gerado, essa denominação, como se lê, a respeito dos primogênitos, que eram, conforme a Lei, santificados pelo Senhor e oferecidos aos sacerdotes (Cf. Ex. 12,29; 34,19).
4 — Nem pode esse erro ser fundamentado no texto evangélico no qual alguns são chamados irmãos de Cristo, como se, devido a essa expressão, Sua Mãe tivesse outros filhos (cf. Mt. 12,47). É sabido que a Escritura costuma chamar de irmão todos aqueles que pertencem à mesma linhagem, como se lê que Abraão chamou Lot, que era seu sobrinho, de irmão (cf. Gen. 13,8). É conforme essa denominação que são chamados de irmãos de Cristo os sobrinhos e outros consangüíneos de Maria, bem como os consangüíneos de José, que era tido como pai de Cristo.
5 — Por isso, é declarado no Símbolo: “Que nasceu da Virgem Maria”, onde Maria é denominada Virgem no sentido pleno da palavra, porque ela permaneceu virgem antes do parto, no parto e depois do parto.
6 — Até aqui já falamos suficientemente a respeito da intangibilidade da Sua virgindade antes e depois do parto. Convém agora esclarecer que nem mesmo no parto a virgindade de Maria foi violada. O corpo de Cristo, que entrou no recinto em que os discípulos encontravam-se estando as portas fechadas, pôde também, pelo mesmo poder, sair do útero fechado da Virgem. Realmente, não era conveniente que, ao nascer, destruísse alguma integridade, Aquele que devia justamente nascer para restaurar a integridade da natureza humana corrompida.
CAPÍTULO CCXXVI
DOS DEFEITOS ASSUMIDOS
POR CRISTO
1 — Se foi conveniente que o Filho de Deus, assumindo a natureza humana para a salvação dos homens, manifestasse, na natureza assumida, pela graça e pela perfeição da sabedoria, a finalidade daquela salvação, foi também conveniente que na natureza humana, assumida pelo Verbo de Deus, houvesse algo que se harmonizasse com o modo que fosse ao máximo conveniente à libertação do gênero humano. Ora, nada seria mais conveniente que aquele homem, o qual se perdera pela injustiça, fosse recuperado pela justiça.
Exige a ordem da justiça que aquele que, pelo pecado, tornou-se devedor de alguma penalidade, receba a libertação pelo cumprimento da mesma. Como aquilo que fazemos ou suportamos pelos amigos, de certo modo consideramos que estamos fazendo ou suportando por nós mesmos, porque o amor é uma virtude mútua de dois que se amam e que, de algum modo, faz de ambos um só, também não é contra a ordem da justiça que alguém seja libertado da sua penalidade pelo amigo, que por ele a satisfez.
2 — Sabemos que pelo pecado do primeiro pai a perdição estendeu-se a todo o gênero humano, e que a pena de um só homem não seria suficiente para libertar todo o gênero humano. Não haveria satisfação condigna e equivalente ao pecado se, por um simples homem que satisfizesse a pena, fossem libertados todos os homens.
3 — Não seria também suficiente à justiça que um Anjo, por amor do gênero humano, satisfizesse a pena por ele. O Anjo, com efeito, não possui dignidade infinita para que a sua satisfação fosse suficiente pelos pecados de natureza infinita, de seres em número também infinito.
4 — Como acima dissemos, somente Deus, que possui dignidade infinita, poderia, assumindo a carne, suficientemente satisfazer pelo homem. Convinha, portanto, que assumisse uma natureza tal que pudesse sofrer pelo homem aquilo que este homem mereceu pelo pecado, e, suportando o sofrimento, satisfizesse pelo homem.
5 — Mas toda a pena em que o homem incorreu pelo pecado não é apta para a satisfação. O pecado, no homem, consiste em que este se afaste de Deus e dirija para os bens passageiros sua vontade. Em ambos esses movimentos o homem é punido pelo pecado: é privado da graça e dos outros dons pelos quais une a si mesmo Deus, e merece também sofrer incômodo e defeito naquilo mesmo que o levou a voltar-se contra Deus. Ora, a ordem da satisfação exige que o pecador seja reconduzido a Deus pelas penas que sofre nos bens passageiros. Mas as penas referentes à separação de Deus são contrárias a essa recondução. Com efeito, ninguém satisfaz a Deus porque seja privado da graça, ou porque ignore Deus, ou porque tenha a alma desordenada, embora tudo isso sejam penas do pecado. Satisfaz, porém, enquanto sente em si a dor, e, nos bens externos, sofre danos.
6 — Conseqüentemente, Cristo não devia assumir aqueles defeitos que afastam o homem de Deus, como a privação da graça, a ignorância e outros semelhantes, embora eles sejam pena dos pecados.
Se os tivesse assumido, tornar-se-ia menos idôneo para satisfazer, tanto mais que, por ser autor da salvação humana, deveria Ele possuir a plenitude da graça e da sabedoria, como foi acima dito. Como, porém, o homem, por causa do pecado, foi posto em estado mortal e passível no corpo e na alma, Cristo quis assumir também esses defeitos, de modo que, sofrendo a morte pelo gênero humano, salvasse todos os homens.
7 — Deve-se, contudo, atender que esses defeitos comuns a Cristo e a nós encontram-se em Cristo e em nós por razões diferentes. Foi acima dito que esses defeitos são castigo do primeiro pecado. Porque nós contraímos, pela origem viciada, a culpa original, conseqüentemente dizemos que contraímos aqueles defeitos. Mas Cristo originalmente não contraiu nenhuma mancha de pecado: aceitou os defeitos voluntariamente. Por isso não se deve dizer que os contraiu, senão que os assumiu. Ora, é contraído aquilo que necessariamente é trazido com outra coisa. Cristo, com efeito, pôde assumir a natureza humana sem aqueles defeitos, como também a assumiu sem a mancha da culpa.
Parecia, pois, ser exigência da ordem da razão que Aquele que foi isento de culpa, o fosse também de pena. Fica, assim, esclarecido porque aqueles defeitos existiram em Cristo não por necessidade de uma origem viciada, nem por exigência de justiça. Resta, pois, afirmar que eles não existiram em Cristo como contraídos, mas como assumidos voluntariamente.
8 — Porque o nosso corpo está sujeito aos supracitados defeitos, devido à pena do pecado, pois antes do pecado éramos isentos dos mesmos, convenientemente se diz que Cristo, enquanto os assumiu em sua carne, revestiu-se da semelhança do pecado, conforme se lê: “Deus enviou Seu Filho ao mundo na semelhança da carne do pecado” (Rom 8,3).
Por isso, a própria passibilidade de Cristo, ou a Paixão, é, pelo Apóstolo, denominadapecado, quando acrescenta em seqüência ao texto citado: “visando o pecado, condenou o pecado na carne”. Na mesma Carta, escreveu: “Porque quem morre para o pecado morre uma só vez” (Rom 6,10). É ainda mais notável o que escreveu em linguagem semelhante, na Carta aos Gálatas: “Fez-se Ele mesmo maldição por nós” (Gal 3,13).
9 — Diz-se também que, por esse motivo, Cristo assumiu em Si uma só necessidade nossa — a necessidade da pena, para destruir dupla necessidade nossa: a necessidade da pena e da culpa.
10 — Deve-se também considerar, em seqüência ao assunto precedente, que no corpo encontram-se duas espécies de pena: algumas são comuns a todos, como a fome, a sede, o cansaço no trabalho, a dor, a morte, etc.; outras, porém, não são comuns a todos, mas só a alguns homens, como a cegueira, a lepra, a febre, as deformações dos membros, etc. Entre essas duas espécies de defeitos há a seguinte diferença:
Os defeitos comuns nos são transmitidos vindos de outrem, isto é, do primeiro pai que neles incorreu devido ao pecado.
Os defeitos próprios aparecem em cada homem por causas particulares. Ora, sabemos que Cristo não podia ter como proveniente de Si mesmo causa alguma de defeito; nem da parte da alma, pois esta era repleta de graça e de sabedoria, unida ao Verbo de Deus; nem da parte do corpo, que estava organizado perfeitamente e disposto otimamente, formado que fora pela virtude onipotente do Espírito Santo.
Todavia, voluntariamente recebeu alguns defeitos, visando a nossa salvação.
Foi, por isso, necessário que recebesse aqueles defeitos que de um se estendem para os outros — a saber, os comuns; não porém, os defeitos próprios, que nascem de causas particulares.
Do mesmo modo, porque Cristo viera principalmente para restaurar a natureza humana, devia também receber os defeitos que se encontravam em toda essa natureza.
Pelas palavras precedentes, fica esclarecido o que afirmou São João Damasceno: “Cristo assumiu os nossos defeitos inseparáveis, isto é, dos quais não nos podemos subtrair”.
Se Cristo tivesse algum defeito de ciência ou de graça, ou mesmo a lepra, a cegueira, ou defeitos semelhantes, isso teria sido motivo de diminuição de sua dignidade, e seria também motivo para que os homens O depreciassem. Mas esse motivo jamais seria dado pelos defeitos de toda a natureza assumidos por Ele.
CAPÍTULO CCXXVII
POR QUE CRISTO
QUIS MORRER
Pelo que foi dito acima, fica esclarecido porque Cristo sujeitou-se a ter alguns defeitos nossos, não por necessidade, mas para uma finalidade: a nossa salvação.
1 — Toda potência e hábito, ou habilidade, ordenam-se para o ato como para o fim. Portanto, só a capacidade de sofrer não é suficiente, sem a paixão em ato, para satisfazer ou para merecer. Não se diz, efetivamente, que alguém é bom ou mau só porque pode agir bem ou mal, senão porque age de tal modo. Nem tampouco o louvor e o vitupério são devidos à potência, mas ao ato. Por isso, para nos salvar, Cristo não só recebeu a passibilidade, mas também quis sofrer, para satisfazer pelos nossos pecados. Por nós, Ele suportou aqueles sofrimentos que merecíamos por causa do pecado do primeiro pai, dos quais o principal é a morte, para a qual todos os outros padecimentos humanos estão ordenados como para um fim. Assim é que o Apóstolo escreve: “O estipêndio do pecado é a morte” (Rom 6,23). Devido a isso, Cristo quis também sofrer, por nossos pecados, a morte, para que, ao receber sem culpa a pena que nos era devida, libertasse-nos do reato da morte, como alguém que liberta outro do reato da pena, cumprindo por ele essa pena.
2 — Cristo quis, além disso, morrer, não só para que Sua morte nos fosse um remédio de satisfação, mas também o sacramento da salvação, para que, em semelhança com a sua morte, morrêssemos à vida carnal, para sermos transportados para a vida espiritual, conforme escreveu São Pedro: “Cristo morreu, por nossos pecados, uma só vez; o Justo, pelos injustos; para, mortos na carne, nos oferecer a Deus, mas vivificados no espírito” (I Ped 3,18).
3 — Quis Cristo morrer também para que Sua morte nos pudesse ser o exemplo da perfeita virtude.
Exemplo de caridade, porque “ninguém tem maior caridade senão aquele que dá a sua vida pelos seus amigos” (Jo 15,3). Tanto mais alguém se mostra amigo, quanto mais não se exime de sofrer muitas e pesadas adversidades pelo amigo. Ora, a morte, de todos os males humanos, é o mais grave, porque por ela é tirada a vida humana. Por conseguinte, não pode haver sinal algum maior de amor, que o de um homem expor-se à morte pelo amigo.
Exemplo, em seguida, de fortaleza, virtude que não permite ao homem afastar-se da justiça nas adversidades, porque parece pertencer ao máximo de fortaleza que alguém, nem mesmo pelo medo da morte, se afaste da virtude. Por isso, escreveu o Apóstolo sobre a Paixão de Cristo: “Para destruir pela morte aquele que tinha o domínio sobre a morte, isto é, o diabo, e libertasse aqueles que estavam por toda a vida escravos por causa do medo da morte” (Heb 2,14). Deus, com efeito, não se recusou de morrer pela verdade, e afastou o temor da morte, porque os homens muitas vezes submetem-se à servidão do pecado (pelo temor à morte).
Exemplo também de paciência, virtude que não permite à tristeza dominar o homem nas adversidades. Quanto maiores são, com efeito, as adversidades, tanto mais nelas resplandece a virtude da paciência. Por isso, é dado o exemplo da perfeita paciência, se a morte, que é o máximo dos males, é suportada sem qualquer perturbação da alma. Justamente que tal seria a morte de Cristo predisse o Profeta: “Silenciou como um cordeiro diante do tosquiador, e nem sequer abriu a boca” (Ts 63,7).
Exemplo, por fim, de obediência, porque a obediência é tanto mais louvável, quanto mais alguém obedece às coisas mais difíceis. Ora, a mais difícil de todas as coisas a serem suportadas é a morte. Eis porque, ao enaltecer a perfeita obediência de Cristo, escreveu o Apóstolo: “Fez-se obediente até a morte” (Fil 2,8).
CAPÍTULO CCXXVIII
A MORTE DE CRUZ
Das premissas, conclui-se que Cristo quis sofrer a morte de cruz.
1 — Primeiro, porque ela foi conveniente como remédio de satisfação. Ora, o homem é punido convenientemente naquilo em que pecou, como se lê no Livro da Sabedoria: “Naquilo em que alguém pecou, por meio disso deve ser também atormentado” (Sab 11,17). Ora, o pecado do primeiro homem consistiu em comer, contra o preceito do Senhor, o fruto da árvore do bem e do mal. Cristo entregou-se em lugar dele, para ser afligido pelo madeiro, pagando desse modo, como a Cristo referiu-se o Salmista, a dívida que não contraíra (Sl 68,5).
2 — Segundo, porque ela foi conveniente como Sacramento da salvação. Quis Cristo mostrar pela Sua morte que, assim como Ele morria para a vida corpórea, o nosso espírito devia também elevar-se para as coisas do alto, como se lê no Evangelho: “Quando eu for elevado da terra, atrairei tudo a Mim” (Jo 12,32).
3 — Terceiro, porque ela também foi conveniente como exemplo de virtude perfeita. Os homens, muitas vezes, não menos rejeitam a injúria do gênero da morte que sofrem do que a crueza dela. Por isso parece pertencer à perfeição da virtude que, para o próprio bem da virtude, também não se recuse alguém de sofrer morte injuriosa. Por isso é que o Apóstolo, para enaltecer a perfeita obediência de Cristo, ao dizer que Ele fez-se obediente até a morte, logo acrescentou: “morte de cruz” (Fil 2,8). Esta parece ter sido a morte mais vergonhosa de todas, pois o Livro da Sabedoria assim a ela se refere: “Condenemo-lo à mais vergonhosa das mortes” (Sab 2,20).
CAPÍTULO CCXXIX
A MORTE DE CRISTO
1 — Como convenham em Cristo, em uma só pessoa, três substâncias, a saber, o corpo, a alma e o Verbo, das quais duas — a alma e o corpo — estão unidas em uma só natureza, na morte de Cristo foi desfeita a união da alma e do corpo. Se assim não fosse, o corpo não teria morrido, já que a morte do corpo nada mais é que a separação entre a alma e o corpo.
2 — Todavia, nem a alma nem o corpo foram separados do Verbo de Deus quanto à união pessoal.
3 — Sabemos que a humanidade resulta da união da alma com o corpo. Por isso, estando a alma de Cristo separada do Seu corpo, no tríduo em que esteve morto, Ele não pode ser chamado de homem.
4 — Foi, contudo, dito acima que, devido à união pessoal da natureza humana com o Verbo de Deus, tudo o que é dito de Cristo enquanto homem, pode também com conveniência ser atribuído ao Filho de Deus. Por conseguinte, como na morte de Cristo permaneceu a união pessoal do Filho de Deus com a Sua alma e com o Seu corpo, tudo aquilo que deste ou daquela é dito, pode também ser atribuído ao Filho de Deus. Donde o Símbolo dizer que o Filho de Deus “foi sepultado”, porque o corpo a Si unido esteve no sepulcro, e que “desceu aos infernos”, quando a alma ali desceu.
5 — Deve-se, outrossim, levar em consideração que o gênero masculino designa a pessoa, e que o gênero neutro designa a natureza. Por essa razão dizemos que, na Trindade, o Filho é outro (“alius”) que o Pai, e não, outra coisa (“aliud”).
Assim sendo, no tríduo da morte, Cristo esteve todo (“totus”) no sepulcro, todo(“totus”) no inferno, e todo (“totus”) no céu, devido à Pessoa que estava unida à carne posta no sepulcro, à alma, que espoliava o inferno e que também reinava no céu, subsistindo na natureza divina.
Não se pode, porém, dizer que Cristo estivera totalmente (“totum”) no sepulcro ou no inferno, porque nem toda a natureza humana estivera no sepulcro ou no inferno, mas somente uma parte dela.
CAPÍTULO CCXXX
A MORTE DE CRISTO
FOI VOLUNTÁRIA
1 — A morte de Cristo foi conforme à nossa quanto ao que é próprio da natureza da morte, isto é, quanto à separação da alma e do corpo, mas, quanto aos outros aspectos, ela foi diferente da nossa: nós morremos por assujeitados à morte como necessidade da natureza ou por alguma violência que nos é infligida. Cristo, porém, morreu, não por necessidade, mas por poder próprio e por própria vontade. Donde ler-se no Evangelho: “Eu tenho o poder de deixar a minha alma, e de novamente a assumir” (Jo 14,17).
2 — A razão disso é que as coisas da natureza não estão sujeitas à nossa vontade. Ora, sabemos que é natural a união da alma com o corpo. Logo, não está sujeita à nossa vontade a permanência da união da alma com o corpo, nem a separação de ambos, e isso só pode ser feito por um outro agente. Em Cristo, porém, tudo o que, segundo a natureza humana, era natural, estava totalmente submetido à sua vontade, devido à virtude da divindade, que tinha toda a natureza humana submissa a Si. Estava, portanto, no poder de Cristo ter a alma unida ao corpo até quando quisesse, e, também, quando quisesse, separá-la dele.
3 — O centurião que assistiu à crucificação de Cristo notou o indício dessa virtude divina quando O viu clamar no momento da expiração, fato que claramente demonstrava que Ele morria, não por defeito da natureza, como acontece com os outros homens. Ora, os homens não podem entregar o espírito com clamor, pois enquanto se agitam no momento da morte, mal podem mover a língua. Por isso, ao ter Cristo expirado dando um clamor, n’Ele manifestou-se a virtude divina, razão por que o centurião falou: “Verdadeiramente Ele era o Filho de Deus” (Mt 27,54).
4 — Todavia, não se pode dizer que os judeus não mataram Cristo, ou que Cristo matou-Se a Si mesmo. Ora, quando alguém propicia a causa da morte para outrem, diz-se daquele que matou a este. A morte, contudo, não se perfaz sem que esta causa de morte vença a natureza que conserva a vida. Estava, com efeito, no poder de Cristo, enquanto quisesse, fazer que a natureza cedesse à causa que a devia corromper, ou que resistisse a ela. Assim sendo, conclui-se que o próprio Cristo morreu voluntariamente, e que também os judeus mataram-nO.
CAPÍTULO CCXXXI
A PAIXÃO DE CRISTO
COM RELAÇÃO AO CORPO
1 — Não quis Cristo apenas sofrer a morte, mas também outras conseqüências do pecado do primeiro pai, que as transmitiu aos descendentes, e, assim, suportando integralmente a pena do pecado, fôssemos deste libertados pela Sua satisfação.
2 — Dessas conseqüências, algumas precedem a morte, outras seguem-na. Precedem, com efeito, a morte do corpo, paixões, tanto as naturais, como a fome, a sede, o cansaço, e outras semelhantes, quanto as violentas, como os ferimentos, a flagelação, e outras. Tudo isso quis Cristo sofrer como conseqüência do pecado, pois, se o homem não tivesse pecado não sentiria as aflições da fome, da sede, do cansaço, do frio, nem teria sido assujeitado a violentas paixões provocadas por causas exteriores.
3 — Todavia, essas paixões Cristo as sofreu por motivo diverso daquele que os outros homens sofrem. Com efeito, nos outros homens não há algo que possa afastar essas paixões. Em Cristo, porém, havia donde resistir-lhes, pois Ele possuía não somente a virtude divina incriada, como também a beatitude da alma, cuja virtude era tão forte que, como diz Santo Agostinho, tal beatitude devia, a seu modo, estender-se também ao corpo.
Por isso, depois da Ressurreição, o mesmo motivo que fará aquela alma glorificada pela visão de Deus, e pela franca e plena fruição de Deus, fará também impassível e imortal o corpo glorificado unido àquela alma glorificada. Como a alma de Cristo gozasse da perfeita visão de Deus, enquanto dependesse da virtude dessa visão, seria conseqüente que o Seu corpo fosse tornado impassível e imortal, devido à redundância da glória da alma no corpo. Mas, providencialmente, aconteceu que, não obstante a alma gozasse da visão de Deus, o corpo sofresse, e não houvesse, por isso, redundância alguma da glória da alma no corpo.
4 — Como dissemos acima, o que era a Cristo natural conforme a natureza humana, estava submetido à sua vontade. Podia, por conseguinte, impedir, pela vontade, a redundância natural das partes superiores nas inferiores, permitindo que cada parte sofresse ou agisse de acordo com as respectivas propriedades, sem que as outras partes o impedissem. Mas isso é, efetivamente, impossível aos outros homens.
5 — Segue-se daí também que Cristo suportou, na Paixão, a máxima dor corpórea, porque essa dor em nada lhe fora mitigada pelo gozo superior da razão, como também, por sua vez, a dor corpórea não lhe impedia o gozo da razão.
6 — Donde também concluir-se que somente Cristo era, ao mesmo tempo, viador e compreensor. Fruía Ele da visão divina, o que pertence aos que têm a visão compreensiva de Deus, mas estava, não obstante, o seu corpo sujeito às paixões, o que é próprio do viador.
7 — Como, além disso, é próprio também do viador que pelos bens que opera pela caridade mereça para si, ou para os outros, conclui-se outrossim que Cristo, embora fosse compreensor, mereceu pelas suas obras e pela sua Paixão, para Si e para nós.
Para Si, não a glorificação da alma, o que já possuía desde o princípio, mas a glorificação do corpo, alcançada pela Paixão. Para nossa salvação, cada um dos seus sofrimentos e ações foram também profícuos, não apenas como motivo de exemplo, bem como causa de merecimento, enquanto, devido à abundância de caridade e de graça, pôde, antecipadamente, merecer por nós, e assim, recebessem os membros da plenitude da cabeça. Qualquer sofrimento Seu, por mínimo que fosse, se considerarmos a dignidade do paciente, seria suficiente para a redenção do gênero humano.
Quanto mais elevada é a dignidade da pessoa injuriada, tanto maior se torna a injuria a ela feita, como, por exemplo, é mais grave a agressão feita a uma autoridade do que a um popular qualquer. Ora, sendo infinita a dignidade de Cristo, qualquer sofrimento Seu teve valor infinito, e, sendo assim, seria suficiente para a abolição das penas de pecados infinitos. Todavia, a redenção do gênero humano não foi consumada por qualquer sofrimento, mas pela paixão da morte, a qual Cristo quis suportar, conforme as razões acima relatadas, para redimir o gênero humano do pecado. Em qualquer compra, com efeito, não só é exigida a quantidade da mercadoria, mas também a especificação do preço[3].
CAPÍTULO CCXXXII
A PASSIVIDADE DA
ALMA DE CRISTO
1 — Porque a alma é a forma do corpo, é conseqüente que, quando o corpo sofre, sofra também, de certo modo, a alma. Por isso, no estado em que Cristo tinha o corpo passível, também o era Sua alma.
2 — Deve-se, porém, considerar que há dupla paixão da alma: uma, que vem da parte do corpo; outra, que lhe vem da parte do objeto. Pode isso ser observado em qualquer das potências, pois a alma relaciona-se com o corpo como se cada parte da alma se relacionasse com cada parte do corpo. Sendo assim, a potência visual sofre a atuação da parte do objeto, como quando a vista fica deslumbrada por um grande clarão; sofre a atuação da parte do corpo, de um órgão corpóreo, como quando a visão fica diminuída devido a uma lesão na pupila dos olhos.
3 — Portanto, se a paixão da alma de Cristo for considerada como vinda da parte do corpo, então a alma sofre, quando sofre o corpo. A alma, com efeito, é a forma do corpo, segundo a sua essência, e todas as potências têm a sua raiz na essência da alma. Por esse motivo, quando o corpo sofre, sofrem também, de certo modo, todas as potências da alma.
4 — Considerando-se, porém, a paixão da alma enquanto vinda da parte do objeto, não sofreriam todas as potências da alma, se a paixão é propriamente vista como danosa, porque, da parte do objeto próprio de cada potência, nada pode vir de danoso.
5 — Já foi dito acima que a alma de Cristo gozava da perfeita fruição de Deus. Por conseguinte, a razão superior da alma de Cristo, que se entregava à contemplação e à atenção das coisas eternas, nada podia ter de contrário ou de repugnante que lhe causasse alguma paixão danosa. As potências sensitivas, cujos objetos são coisas corpóreas, podiam sofrer algum dano vindo da paixão corpórea, razão por que em Cristo houve dor sensível quando o Seu corpo sofreu.
E porque uma lesão corpórea é sentida como danosa pelos sentidos externos, também a imaginação interior apreende-a como nociva, dando causa à tristeza interior, mesmo quando a dor não é sentida no corpo. Essa paixão de tristeza é que dizemos ter havido na alma de Cristo. Não somente a imaginação, mas também a razão inferior apreende as coisas nocivas ao corpo. Por isso, podia ter também havido em Cristo paixão de tristeza vinda de apreensão da razão inferior, razão que se refere às coisas temporais, enquanto esta apreendia a morte como nociva, ou outra lesão corpórea, contrárias que são ao apetite natural.
6 — Acontece, além disso, que, por causa do amor, que faz dois seres humanos um só, alguém se entristeça, tristeza provocada não somente por aquilo que a imaginação ou a razão inferior apreendem como a si nocivo, mas também por aquilo que apreendem como danoso ao que ama. Conclui-se daí que também Cristo teve tristeza provocada por tal motivo, enquanto, com efeito, conhecia que aqueles aos quais amava com caridade estavam em perigo iminente de um ato culposo ou punível.
7 — Embora o amor do próximo pertença, de certo modo, à razão superior, enquanto se ama o próximo por causa de Deus, contudo a razão inferior, em Cristo, não podia entristecer-se pelos defeitos do próximo, como sói acontecer conosco. Porque a razão superior de Cristo gozava de plena visão de Deus, ela apreendia tudo o que pertencesse aos defeitos alheios conforme estava contido na sabedoria divina, segundo a qual está convenientemente ordenado porque é permitido a alguém pecar, e porque o pecador deva ser punido. Por essa razão, nem a alma de Cristo nem a dos beatificados que vêem a Deus podem entristecer-se pelos defeitos do próximo.
Acontece o contrário com os viadores, que não chega a conhecer as razões da sabedoria divina. Estes, efetivamente, também se entristecem, segundo a razão superior, pelos defeitos dos outros, enquanto consideram que pertence à honra de Deus e à exaltação da fé que, dos que se condenam, alguns podiam salvar-se. Cristo pelas mesmas coisas se entristecia segundo os sentidos, a imaginação e a razão inferior; regozijava-se, segundo a razão superior, enquanto esta referia tais coisas à orientação da sabedoria divina.
8 — Como também relacionar uma coisa com outra é operação própria da razão, costuma-se dizer que a razão de Cristo repelia a morte, se a considerava como ordenada pela natureza, porque, de fato, a morte é naturalmente odiosa, embora Cristo quisesse sofrê-la, ao considerá-la como justificada pela razão.
9 — Como existia a tristeza na alma de Cristo, existiam também as outras paixões decorrentes da tristeza, como o temor, a ira, etc. O temor é causado, em nós, por aquilo que presentemente nos entristece, enquanto prevemos os males futuros; enquanto nos entristecemos pela ofensa de alguém a nós ficamos irados.
10 — Essas paixões, porém, manifestaram-se em Cristo de modo diferente que em nós. Em nós, quase sempre, elas precedem o juízo da razão, e algumas vezes ultrapassam a moderação exigida pela razão. Em Cristo, porém, elas jamais precederiam o uso da razão, nem jamais excederiam a medida fixada pela razão. N’Ele, o apetite inferior, que é o sujeito das paixões, era movido somente dentro da medida em que a razão estabelecia para que se movesse.
Podia, portanto, acontecer que a alma de Cristo, segundo a parte inferior, recusasse algo desejado pela parte superior, embora n’Ele não houvesse a contrariedade dos apetites, nem a revolta da carne contra o espírito. Acontece isso em nós, porque o apetite inferior excede o juízo e a medida da razão; em Cristo, o apetite inferior era movido pelo juízo da razão, enquanto esse juízo permitia que cada uma das forças inferiores se movimentasse de acordo com o movimento que lhe era próprio e conveniente.
11 — Após essas considerações, fica evidenciado que a razão superior de Cristo, toda ela, fruía o seu objeto e nele alegrava-se. Eis porque da parte do objeto, nada lhe podia afetar que fosse causa de tristeza; mas também, como dito acima, por outro lado, toda ela podia sofrer por parte do sujeito. Aquele fruir também não diminuía a paixão, nem tampouco a paixão o impedia, porque há redundância de uma potência na outra, mas a cada potência era-lhe permitido agir conforme a própria natureza, como já foi dito acima.
CAPÍTULO CCXXXIII
A ORAÇÃO DE CRISTO
1 — Porque a oração é manifestação de desejo, a diversidade de desejos dá-nos a conhecer a razão da oração que Cristo fez, quando lhe estava iminente a Paixão. Lê-se no Evangelho de São Mateus: “Meu Pai, se é possível, que se afaste este cá-
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lice de Mim. Todavia, não seja como Eu quero, mas como Tu queres” (Mt 26,39). Pronunciando as palavras “que este afaste-se de Mim”, Cristo designa o movimento do apetite natural e inferior, pelo qual todos fogem da morte e desejam a vida. Mas ao pronunciar as palavras: “Todavia, não seja como eu quero, mas como Tu queres”, exprime o movimento da razão superior, que considera todas as coisas enquanto estão subordinadas à determinação da sabedoria divina.
2 — A esse pensamento pertencem também as palavras: “Se este cálice não pode ser afastado” (Mt 26,42), demonstrando que somente se realiza o que procede da ordenação da vontade divina.
Embora o cálice da Paixão não fosse afastado sem que Cristo o tivesse bebido, contudo não se deve dizer que a Sua oração não tenha sido atendida. Lê-se, para confirmá-lo, na Carta aos Hebreus: “Em tudo foi atendido pela Sua piedade” (Heb 5,7).
3 — Sendo a oração, como acima dissemos, a manifestação de algum desejo, na oração simplesmente pedimos aquilo que simplesmente queremos. Por isso, também o simples desejo dos justos tem força de oração junto a Deus, conforme se lê: “O Senhor ouviu o desejo dos pobres” (Sl 9,17). Com efeito, simplesmente queremos aquilo que desejamos conforme a razão superior, pois só a esta cabe determinar a ação. Assim sendo, Cristo pediu simplesmente que se fizesse a vontade do Pai, porque o quis simplesmente. Mas não pediu que o cálice se lhe fosse afastado, porque não quis isso simplesmente, mas o quis segundo a razão inferior, no sentido explicado acima.
CAPÍTULO CCXXXIV
A SEPULTURA DE CRISTO
1 — Por causa do pecado, outros defeitos vêm ao homem, além do defeito da morte, uns relacionados com o corpo, outros, com a alma.
Com relação ao corpo, enquanto o corpo volta para a terra da qual foi tirado; tal defeito relativo ao corpo pode ser em nós considerado sob dois aspectos: conforme a colocação e conforme a dissolução. Conforme a colocação, com efeito, enquanto o corpo dos mortos é sepultado dentro da terra; conforme a dissolução, enquanto ele desagrega-se em seus elementos que, antes, o constituíam uno.
2 — O primeiro desses defeitos Cristo quis assumi-lo, a saber, que o Seu corpo fosse posto na terra. Mas o outro, o da dissolução do Seu corpo na terra, Cristo não assumiu, conforme se lê nos Salmos: “Não permitirás que o Teu Santo veja a corrupção” (Sl 15,10). A razão disso é que o corpo de Cristo recebeu da natureza humana a sua matéria, mas a sua formação não foi realizada por virtude humana, mas pela virtude do Espírito Santo.
Assim sendo, quis ser colocado debaixo da terra, onde, conforme o costume, os cadáveres são depositados, devido à natureza da matéria do seu corpo, pois é devido aos corpos o lugar conforme a natureza do elemento que nele predomina.
Mas Cristo não quis sofrer a dissolução do Seu corpo formado pelo Espírito Santo, porque, quanto a isso, diferenciava-se dos outros homens.
CAPÍTULO CCXXXV
A DESCIDA DE CRISTO
AOS INFERNOS
1 — Com relação à alma, devido ao pecado, após a morte, acontece que as almas desçam ao inferno, não enquanto este é somente um lugar, mas também enquanto é lugar da punição.
Assim como o corpo de Cristo esteve colocado debaixo da terra quanto à localização, não, porém, quanto ao defeito da dissolução comum a todos os homens, assim também a Sua alma desceu aos infernos enquanto lugar, não para aí sofrer punição, mas muito mais para livrar da pena os outros que, devido ao pecado do primeiro pai, aí estavam retidos, pelo qual Ele já satisfizera plenamente sofrendo a morte. Por isso, nada lhe restava de sofrimento após a morte. Desceu, contudo, aos infernos, sem nenhuma sujeição à pena, para se manifestar como libertador dos vivos e dos mortos.
2 — Donde também dizer-se que Cristo foi o único livre entre os mortos, porque a Sua alma não esteve sujeita à pena no inferno, nem, no sepulcro, o Seu corpo, à corrupção. Embora Cristo, ao descer aos infernos, tivesse livrado os que estavam detidos devido ao pecado do primeiro pai, deixou, contudo, ali, os que para lá foram levados pelos próprios pecados.
Diz-se, então, que Ele mordeu[4] o inferno, não que o absorveu, porque libertou apenas uma parte dos detidos, e lá deixou os restantes.
3 — A esses defeitos de Cristo, o Símbolo da Fé Católica se refere, quando afirma: “Sofreu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado e desceu aos infernos”.
CAPÍTULO CCXXXVI
A RESSURREIÇÃO DE CRISTO
E O TEMPO DA RESSURREIÇÃO
1 — Porque o gênero humano foi, por Cristo, livrado dos males os quais derivavam do pecado do primeiro pai, foi conveniente que, assim como Ele aceitou os males para deles nos livrar; também o foi que as primícias da reparação humana, que Ele realizou, n’Ele aparecessem, para que Cristo de ambos os modos nos fosse apresentado como sinal da Salvação. Sinal da salvação, enquanto pela Sua Paixão consideramos em que incorremos, pelo pecado, e o que Ele por nós sofreu, para nos libertar desse pecado; e enquanto pela sua exaltação consideramos o que nos é apresentado, por Ele, como objeto da nossa esperança.
2 — Vencida a morte originada do pecado do primeiro pai, Cristo foi o primeiro a ressurgir para a vida imortal, para que, como a vida mortal apareceu por primeiro devido ao pecado de Adão, assim também a vida imortal aparecesse por primeiro em Cristo, devido à satisfação dada por Ele pelo pecado.
3 — É certo que outros antes de Cristo retornaram à vida, ressuscitados que foram por Ele ou por algum profeta; mas estes deviam de novo morrer. Cristo, entretanto, tendo ressurgido dos mortos, não morre mais. Assim, porque foi o primeiro a livrar-se da necessidade da morte, Ele é denominado o Príncipe dos mortos” e “Primícia dos que dormem” (cf. I Cor 15,20), isto é, foi o primeiro que despertou do sono da morte, libertando-se do seu jugo.
4 — A Ressurreição de Cristo não devia ser muito retardada, nem efetuar-se logo após a morte.
Se voltasse à vida imediatamente após a morte, a veracidade desta não seria comprovada. Se a Ressurreição fosse retardada por muito tempo, não apareceria, em Cristo, o sinal da vitória sobre a morte, nem aos homens seria dada a esperança de que, por Ele, seriam libertados da morte. Donde ter adiado a Ressurreição para o terceiro dia, porque Lhe pareceu ter sido este o tempo suficiente para comprovação da veracidade da morte, tempo que também não era muito longo para apagar a esperança da libertação. Esta, com efeito, se fora ainda mais protelada, então a esperança poderia tornar-se motivo de dúvidas, até porque alguns, já no terceiro dia, diziam, sem esperança: “Nós esperávamos que Ele fosse o Redentor de Israel” (Lc 24,21).
5 — Todavia, Cristo não permaneceu morto três dias inteiros. É dito que Ele tenha ficado três dias e três noites no coração da terra, como maneira de falar, tomando-se a parte pelo todo. Como o dia natural seja constituído de dia e noite, qualquer parte do dia ou da noite, durante a qual Cristo esteve morto, é tomada como sendo o dia inteiro.
Conforme a Sagrada Escritura, na sua linguagem, a noite é computada juntamente com o dia seguinte, porque os Hebreus seguem o tempo do curso lunar, que começa a aparecer pela tarde. Ora, Cristo esteve no sepulcro durante a última parte da sexta-feira, a qual, se for computada com a noite precedente, formaria quase um dia natural. Esteve ainda no sepulcro durante a noite que seguiu à sexta-feira, e durante todo o dia do sábado, perfazendo-se assim, dois dias.
Permaneceu também na noite seguinte que precedeu ao Domingo, no qual ressuscitou, ou à meia-noite, conforme São Gregório, ou ao amanhecer, segundo outros. Donde, computando-se toda, ou uma só parte, da noite, com o Domingo que se lhe seguiu, teremos o terceiro dia natural.
6 — Não está também fora de mistério que Cristo tenha desejado ressuscitar ao terceiro dia.
Primeiro, para manifestar por este número que ressuscitou pela virtude da Trindade, e daí dizer-se, por vezes, que o Pai o ressuscitou; por vezes, que Ele ressuscitou por virtude própria. Não há, com efeito, contradição nessas duas expressões, porque só há uma única e mesma virtude do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Segundo, para também demonstrar que a reparação da vida não foi feita no primeiro dia dos séculos, isto é, sob a lei natural; nem no segundo dia, isto é, sob a Lei mosaica; mas no terceiro dia, que é no tempo da graça.
Apresenta-se, finalmente, uma outra razão para explicar porque Cristo permaneceu no sepulcro um dia inteiro e duas noites inteiras; porque Ele, por meio de uma só coisa velha que assumiu, a saber, a pena do velho homem, destruiu duas coisas velhas nossas: a culpa e a pena, significadas pelas duas noites.
CAPÍTULO CCXXXVII
A QUALIDADE DO CRISTO
RESSUSCITADO
1 — Cristo não apenas recuperou para o gênero humano o que Adão havia perdido, mas também aquilo que Adão, merecendo, poderia ter alcançado. Além disso, foi muito maior a eficácia de Cristo para merecer, que a do homem, antes do pecado.
Adão, efetivamente, por ter pecado, foi levado a morrer necessariamente, tendo perdido a faculdade de não morrer se não pecasse. Cristo, porém, não só afastou a necessidade da morte, mas também adquiriu a necessidade de não morrer. Por essa razão, o corpo de Cristo tornou-se impassível e imortal depois da ressurreição, não como o primeiro que podia não morrer, mas absolutamente não podendo morrer, o que esperamos que também aconteça conosco no futuro.
2 — E porque a alma de Cristo, antes da Paixão, era passível conforme as paixões do corpo, conclui-se que, tendo-se o corpo tornado impassível, também a alma tenha-se tornado impassível.
3 — E porque já se tinha completado o mistério da Redenção humana, devido à qual o gozo da glória estava providencialmente contido na parte superior da alma, para que não se estendesse às partes inferiores, e ao próprio corpo, mas permitisse a cada parte ser ativa ou passiva concordemente com as respectivas exigências, seguiu-se a isso que o corpo fosse totalmente glorificado, bem como as forças inferiores, pela redundância da glória na parte superior da alma. Por isso, antes da Paixão Cristo foi compreensor, devido à fruição existente na alma, e, viador, devido à passibilidade do corpo. Depois da Ressurreição, porém, não mais foi viador, mas somente compreensor.
CAPÍTULO CCXXXVIII
COMO SE DEMONSTRA A RESSURREIÇÃO
DE CRISTO POR MEIO DE RAZÕES
DE CONVENIÊNCIA
1 — Porque Cristo antecipou a Sua Ressurreição para que ela fosse para nós também motivo de esperança da nossa, como acima foi dito, convinha, para nos convencer dessa esperança, tanto a Ressurreição quanto a natureza daquele que ressurgiu serem manifestadas por indícios adequados.
2 — Todavia, Cristo não manifestou indiferentemente a todos a Sua Ressurreição, como fez com a Sua humanidade e com a Sua Paixão, mas apenas a testemunhas escolhidas por Deus — aos discípulos que elegera para cuidarem da salvação do gênero humano. Com efeito, o estado de ressurreição, como foi dito, pertence à glória dos que vêem a Deus, visão que não é devida a todos, mas somente aos que dela se fizeram dignos.
3 — Cristo manifestou-lhes a veracidade da Ressurreição e a glória do corpo ressurgido.
Manifestou-lhes a veracidade da Ressurreição, mostrando-lhes que Ele mesmo, o qual estivera morto, ressurgiu, e isso quanto à natureza e quanto ao suposto.
Quanto à natureza, porque demonstrou possuir verdadeiro corpo humano, ao apresentá-lo aos discípulos para que O palpassem e vissem, conforme se lê: “Palpai e vede; porque um espírito não tem carne e ossos, como vedes que Eu tenho” (Lc 24,39). Demonstrou-o também ao exercer atos da natureza humana, ao comer e beber com os discípulos, e com eles muitas vezes falando e andando, atividades próprias do homem que vive, embora a alimentação não Lhe sendo necessária. Com efeito, os corpos incorruptíveis dos ressurgidos não mais necessitam de alimento, pois não há neles desperdício algum que deva ser restaurado pelos alimentos. Donde não ter sido para Cristo, aquela alimentação, nutrição para o corpo, mas aqueles alimentos dissolveram-se na matéria que havia. Não obstante, o fato de ter comido e bebido, demonstrou que ele era verdadeiro homem.
4 — Quando ao suposto, Cristo mostrou-se como sendo Aquele mesmo que estivera morto, porque apresentou-lhes os sinais da sua morte no próprio corpo, quais sejam as feridas e as cicatrizes.
Assim é que disse a Tome: “Põe o teu dedo aqui e vê as minhas mãos, dá-me as tuas para que toquem no meu lado (Jo 20,27). Disse também aos discípulos: “Vede minhas mãos e meus pés, pois sou Eu mesmo” (Lc 24,39). Cristo quis conservar em Seu corpo as cicatrizes das chagas para que, por meio delas, fosse comprovada a veracidade da Ressurreição. Sem dúvida, é devida toda integridade ao corpo que ressurge incorruptível. Mas também se pode dizer que alguns sinais das feridas recebidas no martírio aparecem com certa beleza para testemunhar a virtude dos mártires.
Mostrou-se também Cristo ter o mesmo suposto pelo modo de falar e por outras ações pelas quais os homens fazem-se reconhecidos. Donde O terem os discípulos reconhecido na fração do pão, e Ele mesmo ter-Se abertamente apresentado, quando com eles costumava conversar na Galiléia (cf. Lc 24,35).
5 — Mostrou-lhes a glória do corpo ressurgido quando aproximou-SE dos discípulos atravessando as portas fechadas (cf. Jo 20,26), e quando desapareceu aos olhos deles (cf. Lc 24,51).
Pertence à glória da pessoa ressurgida aparecer ou desaparecer, em forma gloriosa, quando quiser.
6 — Como porém a fé na Ressurreição traria dificuldade, devido a isso, Cristo demonstrou a veracidade da mesma e a glória, por muitos sinais. Contudo, se tivesse apresentado totalmente a extraordinária condição dos corpos glorificados, haveria prejuízo para fé na Ressurreição, porque a imensidade da glória poderia excluir o pensamento de que se tratasse de uma natureza humana.
7 — A Sua Ressurreição, Cristo manifestou, não só por sinais visíveis, mas também por provas inteligíveis, enquanto abriu a inteligência dos discípulos para compreenderem as Escrituras, e, desse modo, confirmou o que os Profetas predisseram sobre Sua Ressurreição.
CAPÍTULO CCXXXIX
A DUPLA VIDA REPARADA
POR CRISTO NO HOMEM
1 — Como Cristo, pela Sua, destruiu a nossa morte, assim também, pela Sua Ressurreição, reparou a nossa vida. Há, no homem, duas vidas e duas mortes. A primeira morte é a do corpo, que se efetua na separação da alma; a segunda morte é a da alma, e consiste na separação de Deus.
Em Cristo, esta segunda morte não houve. Mas a primeira morte por Ele suportada, a do corpo, destruiu tanto a morte do corpo, quanto a da alma.
2 — Em oposição a essas duas mortes, há, no homem, duas vidas: a primeira, corpórea, decorrente da atuação da alma, é também chamada de vida natural; a segunda, infundida por Deus, também chamada de vida da justiça, ou da graça, realiza-se pela fé, por meio da qual Deus habita na alma, conforme se lê: “O meu justo vive da fé” (Heb 2,4). 3 — Assim sendo, há também duas ressurreições: a primeira, corpórea, pela qual a alma volta a unir-se ao corpo; a segunda, espiritual, pela qual a alma volta a unir-se a Deus. Esta segunda ressurreição não houve em Cristo, porque a Sua alma jamais se separou de Deus, pelo pecado.
4 — Efetivamente, pela Sua Ressurreição corpórea, Cristo foi causa, para nós, tanto da ressurreição corpórea quanto da espiritual.
Deve-se considerar, contudo, que, conforme diz Santo Agostinho no seu Comentário ao Evangelho de São João, o Verbo de Deus ressuscita as almas, mas o Verbo feito carne ressuscita os corpos. Ora, é sabido que só Deus pode vivificar as almas. Como, porém, a carne de Cristo foi instrumento da divindade, e como o instrumento age em virtude da causa principal, tanto a nossa ressurreição corpórea, quanto a espiritual, é referida à Ressurreição corpórea de Cristo, como à causa. Todas as ações realizadas pelo corpo de Cristo foram-nos salutares, porque o Seu corpo estava unido a divindade. Essa a razão por que o Apóstolo escreveu ter sido a Ressurreição de Cristo a causa da nossa ressurreição espiritual: “foi entregue devido aos nossos pecados, e ressuscitou, para nossa justificação” (Rom 4,25). Escreveu, também, que Cristo foi a causa da nossa ressurreição corpórea: “se é ensinado que Cristo ressuscitou, como alguns dentre vós afirmam que não há ressurreição dos mortos?” (I Cor 15,12).
5 — De um modo muito belo o Apóstolo atribui a remissão dos pecados à morte de Cristo, e a nossa justificação, à Sua Ressurreição, para designar a conformidade e a semelhança do efeito com a causa. Pois como o pecado é destruído ao ser perdoado, assim também Cristo destruiu a vida passível na qual havia semelhança de pecado. Como, além disso, aquele que é justificado adquire nova vida, assim também Cristo ressurgido adquiriu para nós uma nova glória.
6 — A morte de Cristo é, pois, causa da remissão de nossos pecados, agindo como causa instrumental, exemplar, sacramental e meritória.
A Ressurreição de Cristo foi causa da nossa ressurreição, operando somente como causa instrumental, exemplar e sacramental, não, porém, como causa meritória. Não como causa meritória, porque Cristo já não era viador, para que pudesse merecer para Si, e porque a glória da Ressurreição foi prêmio da Paixão, conforme se lê em São Paulo (Fil 2,89).
7 — Fica, assim, esclarecido porque Cristo possa ser chamado de primogênito dos que ressurgiram dos mortos, não apenas conforme a ordem de tempo, já que foi o primeiro que ressurgiu, conforme vimos acima, mas também conforme a ordem de causalidade, porque a Sua Ressurreição é a causa da ressurreição dos outros, e conforme a ordem de dignidade, porque ressuscitou mais glorioso que todos os demais.
Tal fé na Ressurreição de Cristo está contida no Símbolo da Fé, quando declara: “Ao terceiro dia ressuscitou dos mortos”.
CAPÍTULO CCXL
OS DOIS PRÊMIOS DA HUMILHAÇÃO
DE CRISTO: A RESSURREIÇÃO
E A ASCENÇÃO
1 — Porque, segundo o Apóstolo, a exaltação de Cristo foi o prêmio de sua humilhação, deveria, à sua dupla humilhação, corresponder dupla exaltação.
Humilhara-se Cristo, primeiramente, com relação ao sofrimento da morte na carne passível que assumira; depois, com relação ao lugar, posto que foi o corpo no sepulcro, e a alma tendo descido aos infernos.
2 — À primeira humilhação corresponde a exaltação da Ressurreição, segundo a qual voltou, imortal, da morte para a vida; à segunda humilhação corresponde a exaltação da Ascensão, conforme se lê: “Aquele que desceu, foi Ele mesmo que subiu acima de todos os céus” (Ef 4,9).
Assim como é dito do Filho de Deus que nasceu, sofreu, que foi sepultado e que ressuscitou, não segundo a natureza divina, mas segundo a natureza humana, também é dito que o Filho de Deus subiu ao céu, não segundo a natureza divina, mas segundo a humana. Com efeito, segundo a natureza divina, nunca havia descido do céu, existindo, como existe, em toda parte. Lê-se, a esse respeito: “Ninguém subiu ao céu, senão aquele que desceu do céu, o Filho do Homem, que está no céu” (Jo 3,13). O sentido deste texto é que, descendo do céu, assumiu a natureza humana, mas sempre permanecendo no céu.
3 — Deduz-se também daí que somente Cristo subiu aos céus por virtude própria. O lugar celeste era devido Àquele que descera do céu por motivo de origem. Os outros, porém, por si mesmos, lá não podem subir, mas, pela virtude de Cristo, do qual foram feitos membros.
4 — Como subir ao céu convém ao Filho de Deus segundo a natureza humana, a Ele é acrescentado uma outra qualidade que Lhe convém segundo a natureza divina: sentar-se à direita do Pai. Não se deve, porém, cogitar-se aqui de direita do corpo, ou de assento material. Como, porém, a direita é a parte mais importante do animal, tal expressão quer aqui significar que o Filho senta-se junto ao Pai, não inferiorizado ao Pai conforme a natureza divina, mas permanecendo absolutamente igual a Ele.
Essa expressão — “Sentar-se à direita do Pai”, pode também ser atribuída ao Filho de Deus segundo a natureza humana, no seguinte sentido: segundo a natureza divina, o Filho está no próprio Pai, por unidade de essência, tendo, por isso, o mesmo trono, isto é, o mesmo poder. Mas como é costume que alguns sentem-se junto dos reis, aos quais estes comunicam parte do poder régio, aquele a quem o rei coloca à sua direita é considerado o mais importante, no reino. É, pois, com razão que, também segundo a natureza humana, o Filho de Deus é dito sentar-se à direita do Pai, como se estivesse exaltado acima de toda criatura na dignidade do Reino celeste.
Por isso, é próprio do Cristo sentar-se à direita, tomando-se essa expressão nos dois sentidos nos quais a consideramos. Lê-se, pois, na Escritura: “A qual dos Anjos foi alguma vez dito: senta-te à minha direita?” (Heb 1,13).
A Ascensão de Cristo nós confessamos no Símbolo, dizendo: “Subiu ao céu, está sentado à direita de Deus Pai”.
CAPÍTULO CCXLI
CRISTO SERÁ JUIZ SEGUNDO
A NATUREZA HUMANA
1 — Do que foi dito, claramente se conclui que pela paixão e morte de Cristo, pela glória da Ressurreição e Ascensão, fomos libertados do pecado e da morte, e realmente recebemos a justiça e a esperança da glória da imortalidade. Tudo de que acima falamos — a Paixão, a Morte, a Ressurreição e a Ascensão — realizou-se em Cristo conforme a natureza humana. Por conseguinte, deve ser dito que, devido àquilo que Cristo sofreu e operou conforme a natureza humana, libertando-nos dos males corporais e espirituais, nós fomos conduzidos para os bens eternos e espirituais, pois é conseqüente que quem adquiriu os bens para os outros, deva também distribuí-los a estes.
2 — A distribuição dos bens para muitos exige um juízo, para que cada um os receba proporcionalmente. É, portanto, conveniente que Cristo, na Sua natureza humana, na mesma em que consumou os mistérios da Salvação dos homens, seja por Deus constituído juiz sobre os homens que salvou. Lê-se, por isso, no Evangelho de São João: “Deu-lhe o poder de fazer o julgamento (isto é, o Pai deu ao Filho), porque é o Filho do Homem (embora haja para isto outra razão)” (Jo 5,27).
3 — É também conveniente que vejam ao Juiz os que devem ser julgados. Mas Deus, que definiu a autoridade judicial, ser visto em Sua natureza é um prêmio que é dado pelo Juiz. Convinha, portanto, que Deus, enquanto Juiz, fosse visto por aqueles que deveriam ser julgados: quer bons, quer maus; mas na natureza assumida, até porque, se os maus vissem a Deus em Sua natureza divina, estariam recebendo um prêmio, para o qual não fizeram jus.
4 — Foi também conveniente que o prêmio da exaltação correspondesse à humilhação de Cristo, que tanto quis ser humilhado, a ponto de ser julgado injustamente por um juiz humano. Para expressar essa humilhação de modo significativo, confessamos no Símbolo que “padeceu sob Pôncio Pilatos”.
Esse prêmio da exaltação, era-Lhe devido para que Ele fosse constituído, por Deus, segundo a Sua natureza humana, juiz de todos os homens, os vivos e os mortos, conforme se vê: “A tua causa foi julgada como a de um ímpio: receberás a justiça que mereces” (Jó 36,17). E porque tal poder judicial pertence à exaltação de Cristo, como também a glória da Ressurreição, Cristo aparecerá, no juízo, não em forma humilde, pertencente ao estado de merecimento, mas em forma gloriosa, pertencente ao estado de recompensa. Lê-se, a respeito disso, no Evangelho: “Verão o Filho do Homem vir nas nuvens com grande poder e majestade”. (Mt 24,30).
5 — A visão da Sua claridade será, para os eleitos que o amaram, motivo de alegria, aos quais foi prometido que “verão o Rei no Seu esplendor” (Is 37,17). Para os ímpios, será motivo de confusão e tristeza, porque a glória e o poder do juiz leva aos temerosos da condenação a tristeza e o medo, conforme se lê: “vejam e sejam confundidos os que desgostam o povo, e o fogo devore os teus inimigos” (Is 26,11).
6 — Embora Cristo apresente-se em forma gloriosa, aparecerão contudo, n’Ele, os sinais da Paixão, não como defeitos, mas com beleza e glória, para que à vista deles, os eleitos encham-se de alegria, enquanto se reconhecem como libertados pela Paixão de Cristo; e os pecadores entristeçam-se, eles que desprezaram um tão grande benefício.
Lê-se, por isso, no Apocalipse: “Todos os olhos O verão, até mesmo os que O trespassaram; todas as tribos da terra lamentar-se-ão por causa d’Ele”. (Apoc 1,7).
CAPÍTULO CCXLII
AQUELE QUE CONHECE A HORA DO
JUÍZO DEU AO FILHO TODO
PODER JUDICIAL
1 — E porque o Pai deu ao Filho todo o poder de julgar, como se lê no Evangelho de São João (Jo 5,22), agora que a vida humana é dirigida pelo justo juízo de Deus, pois, conforme disse Abraão (Gen 18,25), é Deus que julga toda carne, não se deve duvidar que também esse juízo, segundo o qual os homens são ordenados no mundo, pertença ao poder judicial de Cristo. Referem-se também a Cristo, as palavras do Pai, encontradas nos Salmos: “Senta-te à minha direita, até que Eu ponha os Teus inimigos como escabelo de Teus pés” (Sl 109,1). Sentou-se, com efeito, à direita de Deus, segundo a natureza humana, enquanto de Deus recebeu o poder judicial, que Ele desde agora o exerce, antes mesmo de apresentar-Se visivelmente, porque todos os seus inimigos estão debaixo dos Seus pés. Razão também porque Cristo imediatamente após a Ressurreição disse: “Foi-Me dado todo poder no céu e na terra” (Mt 28,18).
2 — Há um outro juízo de Deus, pelo qual é retribuído a cada um, no momento da morte, segundo a alma, de acordo com o merecido: os justos, dissolvidos pela morte, permanecem com Cristo, conforme desejou São Paulo. Os pecadores, porém, são sepultados no inferno. Não se deve pensar que essa discriminação seja feita sem o juízo de Deus, ou que esse juízo não pertença ao poder judicial de Cristo, principalmente porque Ele mesmo disse aos discípulos: “Se Eu for e vos preparar o lugar, voltarei e vos tomarei comigo para que onde Eu estiver, estejais também” (Jo 14,3). Ora, ser tomado não é nada mais além de sermos dissolvidos, para que possamos permanecer com Cristo, porque, “enquanto estamos neste corpo, estamos também em peregrinação, longe do Senhor” (II Cor 5,6).
3 — Mas como a retribuição do homem não consiste somente em bens da alma, mas também, em bens do corpo reconstituído pela ressurreição para ser reassumido pela alma, e porque toda retribuição exige um prévio juízo, convém que haja também um outro juízo pelo qual haverá retribuição para os homens daquilo que fizeram não só na alma, como no corpo. Esse juízo é também devido a Cristo, para que Ele que, morto por nós, ressuscitou na glória e subiu aos céus, faça pela Sua virtude também ressurgirem nossos corpos, da humilhação, configurados ao corpo da Sua claridade, e para que os transfira para o céu, no qual Ele nos precedeu pela Ascensão e, assim, abriu-nos o caminho, como já o predissera Miquéias (Mic 4,2).
A ressurreição universal de todos os homens far-se-á no fim dos séculos, como dissemos acima. Por isso, esse juízo será o juízo comum e final, e, para realizá-lo, cremos que Cristo virá uma segunda vez, com glória.
4 — Porque está escrito que “os juízos do Senhor são abismos imensos” (Sl 35,7), e “quão incompreensíveis são os seus juízos” (Rom 11,33), em cada um dos juízos preditos há algo de profundo e incompreensível à razão humana.
No primeiro Juízo de Deus, pelo qual a vida presente é ordenada, o tempo do juízo é conhecido dos homens, mas a razão da retribuição é-lhes ocultada, principalmente porque muitas vezes, neste mundo, males atingem os bons, e bens recebem os maus.
Nos outros dois Juízos de Deus, a razão da retribuição será evidente, mas o tempo permanecerá oculto, porque o homem ignora o tempo da sua morte, conforme se lê: “Desconhece o homem o seu fim, e o fim deste século ninguém o pode conhecer” (Ecle 9,12).
Com efeito, não podemos prever algo do futuro, a não ser daquilo que compreendemos as causas. Ora, a causa do fim do mundo é a vontade de Deus, que, para nós, é desconhecida. Por isso, nenhuma criatura pode, antecipadamente, conhecer o fim do mundo, mas só Deus o pode, conforme se lê: “A respeito do dia e da hora, ninguém, nem mesmo os Anjos do céu, sabe nada, a não ser unicamente o Pai” (Mt 24,36).
5 — Mas como a essa passagem é acrescentada no Evangelho de São Marcos: “nem o Filho” (Mc 13,32), isso foi motivo de falsa interpretação, para alguns dizerem ser o Filho menor que o Pai, já que ignorava o que o Pai sabia. Tal erro será evitado, se dissermos que o Filho ignora essas coisas segundo a Sua natureza humana assumida, não segundo a Sua natureza divina, pois nesta tem uma só sabedoria com o Pai, ou, para ser mais claro, é a própria sabedoria concebida no coração do Pai.
6 — Não parece, porém, conveniente que o Filho ignorasse, mesmo segundo a natureza humana assumida, o juízo divino, porque a Sua alma, conforme o testemunho do Evangelista, estava “cheia de graça e de verdade” (Jo 1,14). Também não parece haver motivo para aquela ignorância, porque Cristo recebeu o poder de julgar, devido a ser Filho do Homem, de modo que não soubesse segundo a Sua natureza humana o tempo em que devia Ele próprio fazer o julgamento.
Ora, o Pai não Lhe teria dado todo poder judicial se Lhe tivesse subtraído desse poder a possibilidade de determinar o tempo da sua vinda para o julgamento.
Deve-se, por conseguinte, entender aquela expressão segundo o modo de falar das Escrituras, enquanto nelas se diz que Deus sabe alguma coisa, quando a faz conhecida. Por exemplo, foi dito por Deus a Abraão: “Agora conheci que temes o Senhor” (Gen 22,12). Neste texto não se quer dizer que “só agora” o começasse Deus a conhecer, porque Deus conhece tudo desde a eternidade; quer-se dizer que, por aquele ato, Abraão exteriorizou e tornou conhecida a sua devoção.
Assim também foi dito que o Filho ignorava o dia do juízo porque não o fizera conhecido aos discípulos, ao lhes responder: “Não compete a vós conhecer o tempo ou o momento que o Pai pôs em Seu poder” (At 1,7). O Pai, portanto, não ignora aquele momento, porque pelo menos deu ao Filho conhecimento dele pela geração eterna.
Outros há que se apressam a interpretar mais brevemente aquele texto, dizendo que ele refere-se ao filho adotivo.
7 — O motivo que levou a Deus conservar oculto o tempo do juízo futuro é para que os homens permanecessem solícitos na vigilância, de modo a não serem encontrados, naquele tempo, desprevenidos. Pelo mesmo motivo quis também Deus que o dia da própria morte fosse desconhecido de cada um de nós. Cada um comparecerá no juízo tal qual saiu do mundo no momento da morte. Por isso, o Senhor disse: “Vigiai, porque não sabeis em que hora virá o vosso Senhor” (Mt 24,42).
CAPÍTULO CCXLIII
SE TODOS SERÃO
JULGADOS OU NÃO
1 — Do que se disse anteriormente evidencia-se que Cristo tem poder judicial sobre os vivos e sobre os mortos. Ele exerce esse poder sobre os que vivem, no presente século; e sobre os que dele já se foram, pela morte. No juízo final julgará simultaneamente os vivos e os mortos, quer se entenda por vivos os justos que vivem na graça; quer se entenda por vivos os que forem encontrados com vida na chegada do Senhor; e, por mortos, os que morreram antes dela.
Não se deve, porém, entender isso como se alguns fossem julgados vivos porque nunca morrerão, como já se pensou.
Claramente o Apóstolo escreve na Primeira Carta aos Coríntios: “Todos ressurgiremos” (I Cor 15,51). Mas outra redação deste texto é a seguinte: “Todos dormiremos”, isto é, morreremos. Há ainda uma terceira redação: “Nem todos dormiremos”. Conforme escreve São Jerônimo, em sua carta a Minésio, na qual trata da ressurreição da carne, esta última redação enfraquece a sentença predita, porque tendo antes o Apóstolo escrito: “Como todos morreram em Adão, todos serão vivificados em Cristo”, a redação “nem todos dormiremos” não pode referir-se à morte corpórea que passou para todos pelo pecado do primeiro pai, como é dito na Carta aos Romanos (Rom 5,12). Ela deve ser ensinada como se referindo ao sono do pecado, do qual trata a Carta aos Efésios: “Levanta-te, ó tu que dormes, ressurge dos mortos, e Cristo te iluminará” (Ef 5,14). Por conseguinte, devem os que forem encontrados vivos no advento do Senhor serem distinguidos dos anteriormente mortos, não porque jamais morrerão, mas porque no próprio rapto em que forem arrebatados aos ares diante de Cristo, como diz Santo Agostinho, “eles morrerão e imediatamente ressurgirão”.
2 — Deve-se também considerar concorrerem, para o juízo, três condições: primeira, que haja alguém a ser apresentado ao juiz; segunda, que seja discutido o que deve merecer; terceira, que receba a sentença.
3 — Quanto à primeira condição, sabemos que todos os homens, bons ou maus, desde o primeiro ao último, serão submetidos ao juízo final de Cristo, porque se lê: “Todos nós devemos estar presentes diante do Tribunal do Senhor” (II Cor 5,10). A glosa a este texto afirma não serem excluídos dessa exigência universal nem as crianças, quer as batizadas, quer as que morreram sem batismo.
4 — Quanto à segunda condição, a que se refere à discussão do que devem merecer os convocados para o juízo, nem todos os bons e maus serão julgados, porque não há necessidade de se discutir em juízo senão quando há ponderação sobre os atos bons e os atos maus. Quando não há tal ponderação de bem e mal, ou vice-versa, não há lugar para discussão.
5 — Há, com efeito, alguns dos bons que totalmente desprezaram os bens temporais e se entregaram só a Deus e às coisas de Deus. Porque o pecado se comete quando se despreza o bem insubstituível para se aderir a bens substituíveis, nenhuma confusão se encontra de bem com mal nestes, não que vivam sem pecado, pois a respeito deles se lê que “se dissermos não termos pecado, seduzimos a nós mesmos “ (I Jo 1,8); mas porque há neles alguns pecados leves, os quais são de certo modo destruídos pelo fervor da caridade, de modo a serem considerados como inexistentes. Por isso, eles não serão julgados com a discussão do que devem merecer.
Os que, porém, tiverem uma vida terrena cuidando das coisas seculares, não as usando contra Deus, mas a elas aderindo além do devido, eles têm algo de mal misturado com o bem da fé e da caridade, em tal proporção que não apareça o que nesses prevalece. Esses serão julgados também do que merecem conforme a discussão havida no juízo.
6 — Deve-se igualmente notar, com relação aos maus, que o princípio da aproximação de Deus é a fé, conforme se lê: “Ao que se aproxima de Deus é necessário que creia” (Heb 11,6).
Quem, portanto, não tem fé, nada de bom encontra-se nele, não havendo, portanto, dúvida quanto à sua condenação devido à firmeza no mal, e por isso será condenado sem discussão do que deve merecer.
Quem, porém, tenha fé, mas não tenha caridade, possui algo por meio de que se una a Deus. É necessária, portanto, a discussão do que mereceu, para que claramente apareça o que lhe prevaleceu em Cristo: se o bem, se o mal. Por conseguinte, este será condenado após a discussão do seu merecimento, como acontece com um rei da terra que condena o cidadão culpado, ouvindo-o; mas o tendo ouvido, logo pune o inimigo.
7 — Quanto à terceira condição, a saber, o pronunciamento da sentença, todos serão julgados, porque todos, conforme a sentença dada, serão levados ou para a glorificação ou para a fruição, como se lê, a respeito, em São Paulo: “Para que cada um receba o que mereceu, conforme o bem ou o mal que tivesse feito enquanto estava no corpo” (II Cor 5(10).
CAPÍTULO CCXLIV
HAVERÁ EXAME NO JUÍZO NÃO POR
QUE SE IGNORE O MODO E O LUGAR
1 — Não se pense que a discussão seja necessária no juízo para que o Juiz seja informado, como acontece no juízo humano. Não será necessária, porque “tudo estará nu e descoberto a seus olhos” (Heb 4,13).
Mas a supracitada discussão será necessária para que a cada um seja evidenciado, a respeito de si e dos outros, o merecimento da glória ou de castigo, e, assim, alegrem-se os bons de a justiça divina ser aplicada a todos, e, os maus, irritem-se contra si mesmos.
2 — Nem se deve pensar que essa discussão dos merecimentos seja realizada só por palavras, porque, se o fosse, o tempo despendido para a citação dos pensamentos, das palavras e das boas ou más ações seria imenso. Donde se ter enganado Lactâncio, quando afirmou ser a duração do Juízo de mil anos, até porque, nem tal período de tempo parece ser suficiente, pois para se realizar plenamente o juízo de um só homem, pela maneira citada, seriam necessários muitos dias.
3 — Acontecerá que, devido ao auxílio divino, imediatamente venham à mente de cada um todas as obras boas ou más que praticaram, conforme as quais cada um receberá o prêmio ou fruição; e não apenas as obras próprias ser-lhe-ão desvendadas, mas também as alheias. Quando as boas ações forem vistas exceder às más, de modo que estas se mostrem sem importância, ou vice-versa, parece não ser necessária a comparação entre as obras boas e as más, como, aliás, faz-se entre os homens, e, por isso, os prêmios e os castigos são distribuídos sem discussão.
4 — Naquele juízo todos estarão diante de Cristo, mas diferentemente; os bons e os maus aí estarão de maneiras diversas, não só porque os diferenciarão a causa dos méritos, mas também os lugares em que ficarão separados. Os maus, que, devido ao amor às coisas terrenas, separaram-se de Cristo, permanecerão na terra; os bons, que se uniram a Cristo, elevados nos ares, voarão para Cristo para que a Ele se conformem, a Ele assemelhando-se não só no esplendor da glória, mas também a Ele consorciados, conforme se lê: “Onde quer que esteja o corpo, aí as águias reunir-se-ão” (Mt 14,28), o que quer significar reunir-se aos santos, porque neste texto a palavra águia significa santo. No texto hebraico do Evangelho de São Mateus, conforme escreve São Jerônimo, em lugar do termo corpo, encontra-se o termo joatham, que significa cadáver. Isso é muito significativo, porque lembra a Paixão de Cristo, paixão que Lhe mereceu receber poder judicial, e que aos homens com ela identificados, assume-os para participarem da Sua glória, conforme se lê: “se com Ele sofremos, com Ele seremos também glorificados” (II Tim 2,12).
5 — Daí também crer-se que Cristo descerá, para o juízo, no próprio local da Sua Paixão, conforme se lê no Profeta Joel: “Reunirei todos os povos, levá-los-ei ao Vale de Josafá, e aí com eles estarei em juízo” (Jl 4,2), vale que está abaixo do Monte das Oliveiras, onde se deu a Ascensão de Cristo. Este também é o motivo por que, quando o Senhor vier para o juízo, aparecerá o sinal da Cruz, bem como outros sinais da Paixão, conforme se lê: “Então aparecerá o sinal do Filho do Homem no céu” (Mt 24,20). Isso, para que os ímpios sofram ao ver a Quem crucificaram, chorem de dor e como que também se crucifiquem; e para que os remidos pela cruz alegrem-se, ao verem a glória do Senhor.
6 — E como foi dito que Cristo sentar-se-á à direita de Deus, segundo a natureza humana, enquanto é elevado ao mais sublime Deus do Céu, também se diz que os justos, no juízo, sentar-se-ão à sua direita, como que ocupando, junto a Ele, o lugar mais honroso.
CAPÍTULO CCXLV
OS SANTOS TAMBÉM
JULGARÃO
1 — Naquele juízo, não somente Cristo julgará, mas também outros julgarão. Desses, haverá os que julgarão somente por comparação, os bons, aos menos bons; e os maus, aos piores. Lê-se a respeito disso: “Os habitantes de Nínive surgirão com esta geração no dia do juízo e a condenarão” (Mt 12,41). Haverá também os que julgarão só aprovando a sentença, e desse modo todos os justos serão juízes, conforme se lê: “Os Santos julgarão as nações” (Sab 3,8). Haverá, por fim, os que julgarão com poder quase judicial, conforme se lê: “Nas suas mãos estarão espadas de dois gumes” (Sl 149,6).
Este último poder judicial, Cristo prometeu-o aos Apóstolos, quando disse: “Vós que me seguistes, na regeneração, quando o Filho do Homem sentar-se no Trono de Sua Majestade, sentar-vos-eis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel” (Mt 19,28).
2 — Não se deve, porém, pensar que somente os judeus que pertenceram às doze tribos de Israel serão julgados pelos Apóstolos, porque essa expressão doze tribos de Israelsignifica todos os fiéis que foram chamados para a fé dos Patriarcas, até porque os infiéis não serão julgados, pois já estão julgados.
3 — Igualmente não se deve pensar que somente doze Apóstolos, que estiveram com Cristo, julgarão, pois Judas não julgará; e Paulo, que mais entre todos trabalhou no apostolado, não ficará privado do poder judicial, até mesmo porque ele escreveu: “Não sabeis que julgaremos os Anjos?” (I Cor 6,3). Tal dignidade judicial pertence a todos os que, tendo abandonado tudo, seguiram a Cristo. Ela foi prometida, quando Pedro perguntou a Cristo: “E a nós, que tudo abandonamos, que nos caberá?” (Mt 19,27).
4 — Com relação a esses que tudo abandonaram, lê-se também no Livro de Jó: “Concederá o poder de julgar aos pobres” (Jó 36,6). Essa concessão, com efeito, é razoável, porque, como foi dito, no exame do juízo serão considerados os atos dos homens que usaram bem ou mal das coisas terrenas. Ora, para que o juízo seja reto, requer-se que o espírito do juiz esteja desapegado daquelas coisas sobre as quais verterá o julgamento, razão porque os que têm o espírito desligado totalmente das coisas terrenas merecem receber o poder judicial. O fato de terem pregado os preceitos divinos é também motivo de concessão dessa dignidade judicial. Por isso, o texto do Evangelho de São Mateus, que fala da vinda de Cristo para o Juízo, intepreta-o Santo Agostinho, no seu livro De Poenitentia, dizendo que o termoanjos significa apóstolos (Mt 24,31).
5 — Convém, certamente, que aqueles que ensinaram os preceitos da vida examinem os atos dos homens referentes à observância dos preceitos divinos. Eles julgarão, com efeito, enquanto cooperarão para que a cada um se torne clara a causa da salvação ou da condenação próprias e alheias, pelo modo que se diz dos Anjos superiores iluminarem aos inferiores ou também aos homens.
Esse poder judicial confessamos que pertence a Cristo, quando recitamos no Símbolo dos Apóstolos: “Donde virá julgar os vivos e os mortos.”
CAPÍTULO CCXLVI
COMO OS ARTIGOS DO SÍMBOLO
ESTÃO DISCRIMINADOS DE ACORDO
COM O QUE FOI AQUI EXPOSTO
1 — Após a consideração daquilo que pertence à verdade da fé cristã, deve-se saber que tudo o que até aqui foi dito pode ser reduzido a alguns artigos, para uns a doze; para outros, a quatorze.
Como a fé se refere às coisas que são incompreensíveis para a razão, quando algo novo e incompreensível apresenta-se a esta, deve-se também formular um novo artigo. Vejamos, agora, como se dividem os artigos.
2 — Um artigo refere-se à unidade de Deus. Embora a razão prove que há um só Deus, contudo, pertence à fé, como tal, afirmar que Ele dirige imediatamente todas as coisas e que deve cada um prestar-Lhe culto.
Seguem-se três artigos referentes às Três Pessoas.
Em seguida, vêm três outros artigos que se referem aos três efeitos da ação divina: a saber, a Criação, que pertence à natureza; a Justificação, que pertence à graça; a Remuneração, que pertence à glória.
Assim, com relação à divindade, são formulados sete artigos.
Referentes à humanidade de Cristo são os sete outros artigos: o primeiro, sobre a Encarnação e a Concepção; o segundo, sobre o Nascimento, que apresenta certa dificuldade devido à saída de Cristo do útero fechado da Virgem; o terceiro, sobre a Morte, a Paixão e o Sepultamento; o quarto, sobre a Descida aos infernos; o quinto, sobre a Ressurreição; o sexto, sobre a Ascensão; e o sétimo, sobre a vinda para o Juízo.
Perfazem-se, assim, ao todo, quatorze artigos.
3 — Outros, porém, com muita razão, reúnem, em um só artigo, as verdades da fé referentes às Três Pessoas, porque não se pode crer no Pai sem crer no Filho e no Amor que a ambos reúne, e que é o Espírito Santo.
Separam eles, também, o artigo referente à Ressurreição do que se refere à Remuneração, e, assim, dois artigos referem-se a Deus (um à Unidade, outro à Trindade) e quatro referentes aos efeitos de Deus — primeiro, a Criação; segundo a Justificação; terceiro, a Ressurreição universal, e o quarto, à Remuneração.
Quanto à fé na humanidade de Cristo, igualmente reúnem em um só artigo a Concepção e o Nascimento, bem como a Paixão e a Morte. Assim, conforme essa computação, perfazem-se ao todo doze artigos.
O que até aqui foi tratado sobre a fé é suficiente.
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