quarta-feira, 27 de outubro de 1999


II) Refutação da segunda idéia básica da tese adversária

Como se disse, a premissa menor da tese de Pacheco Salles em A Figura deste Mundo constitui propriamente a “reconstrução ideal da história” que nos ocupa neste artigo. Segundo esta, lembremo-nos, desde o fim da civilização cristã (século XIII) a fé teologal se foi deslocando nas almas católicas de sua posição central, para ser pouco a pouco substituída por um culto do dever de corte kantiano e por uma obediência cega à autoridade papal. Deixando-se de lado, sempre segundo a tese adversária, a luz infusa que Deus acende na alma dos cristãos para guiá-los pela senda da verdade que salva, acabou-se por erigir, de modo tácito, o falso dogma da obediência incondicional ao Papa como obrigação primeira dos católicos. Já sem poderem suportar o governo absoluto do Deus invisível da pura fé, quiseram um soberano evidente e acessível aos sentidos, mudando-se o Papa de vigário de Cristo em substituto de Nosso Senhor.
Para refutar esta idéia, deve-se dizer que ela inverte o que de fato se deu historicamente. Sim, porque o que em essência acabou por desembocar no Concílio Vaticano II e na apostasia quase geral da Cristandade não foi uma progressiva substituição da fé e da vida da graça por uma obediência cega, incondicional, de corte kantiano, ao Papa, por já não se suportar o governo invisível de Deus; foi antes, pela perda progressiva da fé, uma paulatina insubmissão dos estados e dos homens ao Vigário de Cristo. Ao contrário, pois, do que diz a tese de Pacheco Salles, o que progressivamente se tornou insuportável para os homens foi a devida obediência ao representante visível de Deus; e tal progressiva insubmissão, resultante da revolta da carne e do amor-próprio contra o espiritual, é conseqüência direta da perda da fé, porque, como vimos na refutação à primeira idéia central deste tipo de sedevacantismo, o próprio magistério do Papa é que é aregra próxima da fé. Vejamos, porém, o desenrolar histórico desse processo, para que assim se patenteie inequivocamente a fragilidade do argumento adversário.
Como diz o Padre Calderón em El Reino de Dios en el Concilio Vaticano II, Jesus Cristo, “ao estabelecer sua Igreja na terra, não arrebata os cetros temporais, senão que, se se submetem a Ela, lhes comunica verdadeira eficácia”. Pois é exatamente no terreno das relações entre os poderes temporais e o poder espiritual que, a partir de Cristo — cuja Vida, Paixão, Morte na Cruz e Ressurreição constituíram a consumação dos tempos —, se traçam os desígnios de Deus para o percurso histórico da Igreja militante. E este percurso começa com efusão de sangue: por três séculos consecutivos, o martírio dos cristãos obra pela purificação e conversão do Império Romano.
Não por nada São Pedro, auxiliado por São Paulo, vai enraizar a Igreja no solo da Cidade “Eterna”. Já lhes viera o Espírito Santo em Pentecostes, e já lhes tinha falado o próprio Cristo ressurrecto; e eles por certo estavam divinamente orientados para colocar a Pedra no centro daquela civilização que a mesma Providência Divina preparara para ser batizada e dar à luz a Cristandade. E, com efeito, no começo do século IV Constantino se rende ao Vigário de Cristo. Sucede, todavia, que o Império Romano já agonizava, por seus mesmos defeitos originais e sua caducidade, razão por que o Papado herdaria a própria jurisdição temporal imperial: como diz ainda o Padre Calderón, “suprindo os ofícios civis ante o povo romano”, os Papas acabaram por “dobrar sua coroa de Imperador espiritual do Orbe com a de Imperador temporal da Urbe” (ibid.). É este o primeiro momentoda Cristandade.
Com a queda do Império pelas mãos dos bárbaros do Norte, e após o reconhecimento por Carlos Magno, no século XVIII, do poder temporal do Papa, inicia-se o segundo momento da Cristandade, o medieval, que mais propriamente se estende da Espanha visigótica de São Isidoro de Sevilha [século VIII] à afronta de Filipe, o Belo, a Bonifácio VIII [século XIII], mas alcança, na Península Ibérica e na América, os séculos XVI/XVII — é a Christianitas minor dos reis católicos Isabel e Fernando, Carlos V e Filipe II. Pois é sobretudo a este segundo momento que se refere o Papa Leão XIII ao dizer, na Encíclica Immortale Dei, que “tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os estados. Naquela época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil”. É o momento em que se traduz plenamente na realidade a doutrina da subordinação essencial do poder político ao poder eclesiástico, longamente desenvolvida por Santo Hilário, São Gregório Nazianzeno, São João Crisóstomo, Santo Ambrósio e, especialmente, Santo Agostinho e São Gregório Magno, e consolidada pelo próprio Magistério romano e por teólogos como Hugo de São Vítor, São Bernardo e Santo Tomás de Aquino.
Muito mais que serem uma espécie de “apoio” ou “respaldo” para a Igreja, os reinos medievais eram instituídos por Ela. Explicita-o a tese teológica dos “dois gládios”. “Há dois poderes”, escrevia já o Papa Gelásio I (492-496) em carta ao Imperador, “pelos quais é regido o mundo: a sagrada autoridade pontifícia e o poder régio. Deles, o primeiro é muito mais importante, pois os homens, incluindo os reis, prestarão contas perante o Tribunal Divino. Pois saiba, clemente filho nosso, que embora ocupes o lugar da mais alta dignidade entre os homens, em tudo deves submeter-te fielmente àqueles que têm a seu cargo as coisas divinas e defendê-los, tendo em vista a tua salvação.”[1]
 “As palavras do Evangelho”, escreverá o Papa Bonifácio VIII na Bula Unam Sanctam, de 18/11/1302, “nos ensinam: esta potência comporta duas espadas, ambas em poder da Igreja: a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta última deve ser usada para a Igreja, enquanto a primeira deve ser usada pela Igreja. O espiritual deve ser manuseado pela mão do sacerdote; o temporal, pela mão dos reis e cavaleiros, com o consenso e segundo a vontade do sacerdote. Uma espada deve estar subordinada à outra espada; a autoridade temporal deve ser submissa [essencialmente, como se acaba de ver] à autoridade espiritual.”
É neste segundo momento da trajetória da Igreja militante que, sob a tutela de sua Hierarquia, os antigos povos bárbaros, agora cristãos, erguem as ordens políticas mais sãs e mais florescentes que já houve na terra. A subordinação dos poderes civis ao poder eclesiástico foi-se “plasmando em ritos e costumes, muito especialmente a coroação eclesiástica de imperadores e reis” (Padre Calderón,ibid.), o que permitiu, por exemplo, que um Papa como São Gregório VII (1073-1085) pudesse depor, além de excomungar, o tão poderoso imperador HenriqueIV: “Bem-aventurado Pedro, príncipe dos apóstolos, creio que por ti me veio de Deus o poder ligar e desligar no céu e na terra. Assim, confiando nesta fé, da parte de Deus todo-poderoso e em virtude de teu poder e de tua autoridade, tiro ao Rei Henrique o governo de todo o reino da Alemanha e da Itália; desligo todos os cristãos dos vínculos do juramento que lhe fizeram ou que lhe farão, e proíbo que qualquer o reconheça por rei”.[2] É neste segundo momento que aparecem ordenações como as Siete Partidas (circa 1270) do Rei Afonso X, segundo as quais “todas as coisas pertencem à Igreja Católica”;[3] ou como as Ordenações Del-Rei Dom Duarte (circa 1436), pelas quais se “manda que as leis e constituições de Portugal não sejam contrárias aos cânones e direitos da Santa Igreja”.[4]
E, mais ainda que serem instituídos pela Igreja, os reinos cristãos faziam parteda Igreja. “Assim como Deus, criador de todas as cosas”, explica-o Inocêncio III, “pôs dois grandes astros no céu, o astro maior para presidir o dia, e o astro menor para presidir a noite, assim também, no firmamento da Igreja universal, que é chamada pelo nome de céu, constituiu duas grandes dignidades: a maior, para que, como durante os dias, presida as almas, e a menor, para que, como durante as noites, presida os corpos, e estas são a autoridade pontifícia e a autoridade real. Ademais, assim como a lua recebe sua luz do sol e em verdade é menor que ele tanto em quantidade como em qualidade, e também quanto à sua situação e ao seu efeito, assim também o poder real recebe da autoridade pontifícia o esplendor de sua dignidade; quanto mais se detém a olhá-la, mais se embeleza com a luz maior, e, quanto mais se afasta de seu olhar, mais perde seu esplendor”.[5]
E efetivamente, à medida que “os reis enfraqueçam o domínio do poder eclesiástico sobre a ordem política, vão enfraquecer seu próprio poder e autoridade: se Cristo não reina sobre eles, eles não reinam sobre os povos” (Padre Calderón, ibid.), processo que culminará em revoluções como a francesa.
E o fato é que, logo após o ápice do século XIII, logo após a consolidação das Universidades regidas pela Sagrada Teologia, logo após a construção das esguias igrejas góticas, logo após o erguimento dessa catedral que é a obra de Santo Tomás de Aquino, a Cristandade começa a acabar, com o fim da perfeita ordenação da jurisdição temporal à espiritual. A querela entre o Papa Bonifácio VIII e Felipe, o Belo, e a já referida afronta deste àquele prenunciam a decadência da Cidade cristã. Os reis e demais governantes progressivamente já não quererão estar sob o cetro de Jesus Cristo, deixando de aceitar o que a Verdade atesta, a saber, que a potestade espiritual tem não só de instituir a temporal, mas, por isso mesmo, deve “julgá-la se não for boa […]. Logo, se a potestade terrena se desviar, será julgada pela potestade espiritual [...]. Pois bem, submeter-se ao Romano Pontífice, Nós o declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos como de toda a necessidade para a salvação de qualquer humana criatura” (Bula Unam Sanctam). Começa, assim, com a negação desta necessidade, “o ocaso da fé no Ocidente” (Padre Calderón, ibid.), e o mundo que era composto de reinos vassalos de Cristo Rei sob a paz de seu Vigário se transformará, entre o século XIV e o XVIII, no mundo das monarquias absolutas e dos “sóis que nunca se põem”. É a ante-sala das revoluções e suas guilhotinas, fuzilamentos e massacres, das quais brotará o mundo francamente anticatólico que chafurda no pecado à espera do Anticristo.
Múltiplos e complexos são, sim, os fatores que determinaram aquela rebelião dos reis, rebelião que, como já dito, se pode reduzir à da carne e do amor-próprio contra a primazia do espírito e da glória devida a Deus. Entre tais fatores, certamente está a influência de homens como o franciscano Duns Scott (1270-1308) e sua hipertrofia da vontade; Dante (1265-1321) e seus dois fins últimos do homem, um espiritual e outro temporal; o também franciscano Guilherme de Ockham (1300-1349) e sua navalha, que em verdade também corta não só os universais, mas o próprio império espiritual da Igreja sobre os poderes políticos; o dominicano Francisco de Vitória (1483-1512) e seu direito natural independente do direito positivo divino; Maquiavel (1469-1527) especialmente, com sua transformação da ética em assunto de foro íntimo e da política em mera questão de manutenção do poder a qualquer custo; o jesuíta Francisco de Suárez (1548-1617)e sua redução do político a uma pretensa soberania popular; etc., etc., etc. Mas sem sombra de dúvida, como também já dito, o principal dos fatores que determinaram aquele processo foi a diminuição da fé. “O poder político”, como escreve o Padre Calderón (ibid.), “necessita subordinar-se essencialmente ao eclesiástico para poder cumprir sua missão; mas a potestade da Igreja sobre a ordem temporal é de natureza espiritual, e, portanto, a eficácia de seu poder depende da viveza da fé. A Igreja não tem exército e polícia para obrigar os recalcitrantes.” Tal relação de subordinação se pode comparar, analogicamente, à relação entre a alma e o corpo: com efeito, na mesma medida em que diminui a fé, perde o poder eclesiástico — a alma — domínio sobre o corpo social, “e são cada vez mais fracos os remédios que pode aplicar e cada vez mais violentos os ataques que há de sofrer” (idem). Em razão desse processo, os Papas já não terão efetivas condições de instituir e destituir os governantes, porque os reinos e seus reis já não serão suficientemente cristãos para que o possam fazer; os Papas só têm efetivo poder para firmar bons governos temporais e impedir os perversos ou tirânicos enquanto se mantém viva a fé do povo e dos reis. Com efeito, lê-se no Livro de Jó (XXXIV, 30) que Deus “faz reinar o homem hipócrita por causa dos pecados do povo”; e completa-o Santo Tomás:[6] “É preciso, portanto, eliminar o pecado, para que cesse a ferida da tirania.” Mas, como se disse, a potestade espiritual não o podia fazer senão enquanto seguisse vigente na sociedade a fé. Não seguiu; e o povo deixou de ver no Magistério da Igreja a autoridade delegada por Cristo para impor infalivelmente doutrina e costumes, e para instituir reinos segundo o que se lê em Jerônimo I, 10: “Eis que ponho em tua boca minhas palavras; veja que te constituo hoje sobre as nações e reinos para arrancar e destruir, para arruinar e assolar, para edificar e plantar”, brandindo sempre, como se diz em Efésios VI, 17, “a espada do espírito, que é a palavra de Deus”. Daí que, como escreve o Padre Calderón (ibid.), “ao quererem sacudir o suave jugo de Nosso Senhor, necessariamente a primeira medida dos reis será voltar a espada que tinham recebido de Deus para a vindita do mal – ‘não em vão tem a espada, porque é ministro de Deus, vingador para castigo daquele que age mal’ (Rom., XIII, 4) – contra a espada espiritual que a sujeita e domina”. A harmonia (tão perfeita quanto possível no estado de natureza ferida) que se alcançou na Idade Média entre os dois poderes, com a devida subordinação essencial do temporal ao espiritual, muda-se então em dura guerra, e a partir de então “os Papas deverão pagar a preço de sangue a audácia de recordar às potestades temporais a doutrina daUnam sanctam” (Padre Calderón, ibid.).
Sangue, mas também omissão da íntegra doutrina da ordenação do poder político ao eclesiástico. Com efeito, desde a Bula de Bonifácio VIII até parte do magistério de Leão XIII — ou seja, durante cerca de sete séculos —, o tom do Papado quanto a esta matéria capital é antes apologético. A Igreja é uma cidade sitiada. Será preciso esperar São Pio X e especialmente Pio XI para que o tema volte aos documentos papais com todos os seus contornos e vigor, e caberá a este último Papa fazê-lo ganhar corpo doutrinal definitivo com a Encíclica Quas primas, a Constituição do Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo. Infelizmente, porém, a Cidade espiritual já não está apenas sitiada; já está minada por um longo trabalho de sapa, que a carcome do interior; o resultado será a desolação operada pelo Concílio Vaticano II e a consolidação, na maior parte da Hierarquia e dos fiéis, da Religião do Homem que se quer Deus.
Dessa desolação e dessa conseqüente consolidação da Religião do Homem decorre, sim, uma obediência cega por parte dos fiéis ao Papa. Mas não se trata da devida obediência aos Papas em seu ofício de impor e imperar doutrina sob a assistência do Espírito Santo, com o que seu magistério se torna regra próxima da fé; trata-se de obediência cega a uma potestade carente de verdadeira autoridade doutrinal, e exercida, por isso mesmo, de modo maquiavélico.
Ao contrário, portanto, do que diz a tese de Pacheco Salles, aquela obediência cega é resultado, sim, de uma perda da fé, mas de uma perda da fé no magistério eclesiástico como autoridade e regra para a crença do conjunto da Igreja; e, ao contrário ainda do que pode fazer crer a tese adversária, é resultado também da renúncia da mesma Hierarquia, a partir do Concílio Vaticano II, à sua própria autoridade doutrinal, sendo em função dessa renúncia que ela passa a governar a Igreja ao modo de qualquer governo democrático liberal. A tese adversária, todavia, para justificar seu sedevacantismo pré-concluído, tem de encontrar para ele premissas mais sólidas, e encontra a premissa menor numa “reconstrução ideal da história” que inverte os dados da realidade tal como mostrado aqui.
Refuta-se assim, suficientemente, a segunda idéia básica da tese de A Figura deste Mundo.

(Continua, com as respostas particulares aos diversos itens numerados na exposição da tese adversária.)

 
[1] Patrologia Latina Migne, t. LIV, col. 42.
[2] Citado por Glez, Pouvoir du Pape dans l’ordre temporel, en DTC, col. 2714, apud Padre Calderón, op. cit.
[3] Las Siete Partidas — BOE, 1999 (edição fac-similar da edição de 1555, com glosas de Gregorio López).
[4] Cód. 9614 dos Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988.
[5] Carta Sicut universitatis, 30-10-1198, Denzinger-Hünermann 767; negrito nosso.
[6] De regno, lib. 1, cap. 7.

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