A promulgação da Reforma Litúrgica perante a Infalibilidade da Igrejaa
Rev.Padre Alejandro Rivero
Colocamos a continuação a objeção-resposta (A candeia debaixo do alqueire) à questão da promulgação da nova liturgia que serve de base para a palestra. Convidamos o leitor a fazer um pequeno esforço de leitura para seguir a solidíssima argumentação teológica do Pe Calderón. No final de dita leitura poderá se perceber que a nova liturgia é de fato PREJUDUCIAL À FÉ em primeiro lugar, e por isso mesmo chega em muitíssimos casos a ser PECAMINOSA, ILÍCITA, NÃO CATÓLICA E HERÉTICA. São os mal chamados “abusos litúrgicos”1. Caro leitor se o senhor é daqueles que abominam da nova liturgia, eis então o fundamento teológico do que o seu “sensus fidei” lhe diz claramente. Por outro lado se o caro leitor não gosta da nova liturgia, mas teme a desobediência, eis então o necessário esclarecimento da inteligência para que a vontade possa segui-la. A respeito da posição sedevacantista (como se poderá ouvir no áudio) a explicação deixa claro como não é necessário o argumento apresentado acima (Sr Jonh Daly) toda vez que qualquer Papa pode errar se não respeita o marco necessário da sua infalibilidade. Agora, se o tamanho e gravidade do erro é ou não pecado e se esse pecado é causa suficiente para ele perder seu cargo é um assunto completamente distinto sobre o qual nos não disputamos neste artigo/palestra.
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“A Nova Missa leva ao pecado contra a fé, e é um dos pecados mais graves, mais perigosos, porque perder a fé é o afastamento da revelação, o afastamento de Nosso Senhor Jesus Cristo, o afastamento da Igreja.”
Dom Marcel Lefebvre
“Repitamos, então, nossa conclusão: a reforma litúrgica conciliar não compromete nem minimamente a infalibilidade. Sustentá-lo no terreno da teologia só pode ser feito por insensatez ou por maquiavélica conveniência”
Pe Álvaro Calderon
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OS DEFENSORES DA NOVA LITURGIA DIZEM:
PROMULGAÇÃO PONTIFÍCIA DA REFORMA LITÚRGICA
Como a liturgia ou lex orandi tem estreita relação com o dogma ou lex credendi, os Papas cuidaram especialmente de seu ordenamento, chegando a comprometer sua infalibilidade – segundo o sentir comum dos teólogos – nas leis litúrgicas universais. Por conseguinte, ninguém pode rejeitar a reforma litúrgica conciliar sem grave risco de cisma, nem impugnar a doutrina implicada sem suspeita de heresia.
- A liturgia ou culto público da Igreja foi, ao mesmo tempo, um dos principais instrumentos de transmissão do Depósito da fé e de sua impressão na alma do povo fiel. Muitas verdades de fé foram primeiro vividas na liturgia e só depois ensinadas pelo magistério; e à maioria dos fiéis diz mais uma genuflexão diante do Santíssimo que a definição da transubstanciação. Daí que o Papa São Celestino I tenha sentenciado: “Ut legem credendi lex statuat supplicandi”2, e São Pio X tenha reconhecido que “a fonte primeira e indispensável” do “verdadeiro espírito cristão” é “a participação ativa nos sacrossantos mistérios e na oração pública e solene da Igreja”.3 Por essa razão, os Concílios e os Papas vieram, ao longo dos séculos, intervindo cada vez mais para manter a liturgia isenta de qualquer erro e desvio que pusesse em perigo a salvação dos fiéis cristãos, com tanto esmero, que os teólogos estão de acordo em que também nas leis litúrgicas promulgadas sob a autoridade do Sumo Pontífice para a Igreja universal está em jogo a infalibilidade do magistério.
- Pois bem, ainda que a reforma litúrgica conciliar possa ser considerada o triunfo de Cannas do novo Aníbal com seu pequeno exército de neoliturgistas sobre a Cúria romana,4 nem por isso a nova ordem litúrgica pertence a Bugnini, senão que, como este bem o demonstra em sua obra póstuma, La Riforma Liturgica, tudo se fez sob a firme autoridade de Paulo VI, o único capaz de vencer as reservas da Sagrada Congregação dos Ritos (até acabar finalmente com sua existência). E, pelo mesmo motivo, tampouco importa se a reforma foi além, ou não, do que quis o Vaticano II ao aprovar a constituição Sacrosanctum Concilium sobre a liturgia, porque a autoridade do Papa – com a qual certamente contou a reforma litúrgica – só não é menor que a do Papa em concílio.
- Portanto, a doutrina substancialmente envolvida na reforma litúrgica conciliar não pode deixar de ser plenamente ortodoxa. Naturalmente, dizemos isso dos livros litúrgicos tal como foram promulgados por Roma para a Igreja universal, e não de cada uma das adaptações que as conferências episcopais daqui ou dali tenham podido fazer. Pode ser, então, que as pessoas que intervieram materialmente na execução da reforma litúrgica tenham tido um pensamento menos ortodoxo e até heterodoxo; mas não é católico atribuir este pensamento ao que a Igreja formalmente aprovou, como fizeram alguns livrinhos;5 o verdadeiro teólogo deve considerar o rito em si mesmo, à luz da tradição, e encontrar a explicação ortodoxa que certa e necessariamente existe, como outros não deixaram de fazer e melhor.6
RESPOSTA À OBJEÇÃO APRESENTADA
PRINCÍPIOS BÁSICOS SOBRE O MAGISTÉRIO DA IGREJA
As leis e ritos litúrgicos comprometem a infalibilidade quanto à doutrina implicada e na medida em que esta cumpre a seu modo as quatro condições do magistério ex cathedra. Pois bem, a reforma litúrgica conciliar é animada por uma doutrina não definida; além do mais, não foi promulgada como uma lei obrigatória, mas como um marco sugerido; e o que é pior, rejeita qualquer compromisso com a verdade, pois se oferece como matéria disposta para ser informada por um pluralismo teológico-cultural. Portanto, não compromete nem minimamente a infalibilidade e deve ser rejeitada como atentatória contra a fé.
Não se pode pôr em dúvida que a Igreja compromete sua infalibilidade nas leis litúrgicas, seja de modo ordinário em tradições litúrgicas imemoriais ou em costumes universais, seja de modo extraordinário em leis promulgadas pelos Papas e Concílios. Ela o faz especialmente quanto à substância dos sacramentos, que são, como se disse, de instituição divina irreformável, mas também em leis e ritos de instituição eclesiástica. O motivo reside na enorme importância que têm os sacramentos para a vida da Igreja e pela estreitíssima relação que o culto tem com o dogma e a educação cristã.
Mas daí não se deve concluir apressadamente que qualquer rubrica e em todos os seus aspectos seja isenta de erro. Em primeiro lugar, é preciso distinguir o aspecto doutrinal dos ritos litúrgicos dos demais aspectos de ordem mais prática, como a aptidão para levar à piedade.7 Quando falamos de infalibilidade, referimo-nos propriamente à doutrina implicada nos ritos, a qual, como estes não são ordenados à instrução, se torna muitas vezes difícil de explicitar.
Além do mais, assim como acontece com os atos mesmos de magistério, assim também a autoridade comprometida nos diversos ritos e leis litúrgicas tem graus, e só alcança a infalibilidade quando se cumprem equivalentemente as quatro condições das definições dogmáticas:8
- [Sujeito] As leis litúrgicas podem gozar de infalibilidade quando são aprovadas, ao menos de maneira tácita, pelo Papa. Por isso a liturgia romana goza de uma autoridade superior a qualquer outra, ainda que as liturgias não romanas de grande antiguidade também contem com a aprovação papal, pois a Santa Sé não teria deixado de advertir se tivesse encontrado nelas erros doutrinais. O mesmo se deve dizer dos usos litúrgicos universais.
- [Objeto] A autoridade da Igreja se compromete somente naquelas matérias de fé e costumes que possam ter vinculação necessária com a Revelação. Não garante, por exemplo, que todos os fatos históricos das vidas dos santos referidos no Martirológio ou nas lições do Breviário sejam exatos.
- [Súditos] A autoridade pontifícia é exercida em sua amplitude máxima quando se dirige à Igreja universal. Em uma Missa ou festa litúrgica aprovada por Roma para uma diocese ou congregação, não se pode considerar comprometida a infalibilidade. Mas sim, em contrapartida, quando a festa se estende à Igreja universal.9 Ainda que nenhum rito litúrgico se estenda de fato a toda a Igreja, o rito romano especialmente e os principais ritos orientais são equivalentemente universais, pois a Igreja sempre os considerou aptos para ser celebrados por todos em todo e qualquer lugar.
- [Intenção] O fator decisivo e, ao mesmo tempo, mais difícil de precisar é o grau e maneira como a hierarquia entende comprometer sua autoridade ao estabelecer um rito litúrgico. Quando Roma estende a toda a Igreja a festa da Imaculada Conceição, já se pode considerar comprometida a infalibilidade, pela importância que se vinha dando à definição deste dogma; mas, quando se inclui a festa da Apresentação no calendário universal, conquanto não seja matéria indiferente, é claro que é proposta somente como piedosa opinião. Em um mesmo rito, nem todas as suas partes são igualmente garantidas pela autoridade. Para qualificar o grau de autoridade que assiste a cada rubrica e rito, é preciso fazer uma análise de suas características internas e externas que permitam discernir a intenção.
É um grave erro pensar que a infalibilidade das leis litúrgicas se produz de maneira automática, pelo simples fato de serem promulgadas. A maior ou menor certeza dos atos hierárquicos depende do modo como foram dados. Se os teólogos afirmaram que na liturgia se compromete a infalibilidade, é porque os Papas manifestaram compreender a necessidade da pureza doutrinal do culto. Mas não deixou de haver períodos de negligência, em que proliferaram abusos nos ritos litúrgicos. Dito isso, passemos a considerar mais detidamente o que está acontecendo hoje.
APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS AO CASO CONCRETO
Se observamos a reforma litúrgica conciliar no que diz respeito à autoridade de suas prescrições, descobrimos três diferenças com relação a qualquer outra reforma feita por Roma, que correspondem a certos princípios que podemos chamar de indefinição, descentralização e inculturação.
Indefinição. Uma característica original da reforma litúrgica conciliar consiste no que podemos chamar de “indefinição”, tomando esta palavra em seus dois sentidos: não corresponde a uma doutrina claramente explicada, nem autorizadamente estabelecida.
As inovações litúrgicas introduzidas por Roma sempre se tinham seguido aos esclarecimentos doutrinais do magistério: “Como as coisas relacionadas com o culto”, dizia Pio IX em Ineffabilis Deus, “estão íntima e totalmente ligadas a seu objeto, e não podem permanecer ratificadas e fixas se este fica envolto na vagueza e ambigüidade, nossos predecessores, os Romanos Pontífices, que se dedicaram com todo o esmero ao esplendor do culto da Imaculada Conceição, dedicaram também todo o seu empenho em esclarecer e inculcar seu objeto e doutrina”. O Vaticano II, em contrapartida, vai promover uma refundição total da liturgia de acordo com uma misteriosa doutrina, não só absolutamente ausente dos ensinamentos do magistério hierárquico, mas também esboçada por um grupelho de teólogos suspeitos de heterodoxia: a doutrina do “mistério pascal”.10
“Os princípios diretivos da Constituição”, dirá João Paulo II ao se cumprirem os 25 anos da Sacrosanctum Concilium, “que serviram de base para a reforma são fundamentais para conduzir os fiéis a uma celebração ativa dos mistérios […]. O primeiro princípio é a atualização do mistério pascal de Cristo na liturgia da Igreja”.11 Mas, se buscamos no magistério anterior ao Concílio, não aparece nem o nome “mistério pascal”. Tampouco nos tratados clássicos de teologia. Nos próprios documentos conciliares, é mencionado como doutrina fundamental, mas não é explicado. É preciso recorrer às obras da “nova teologia” para vê-lo aparecer como total novidade, de que cada neoteólogo dá uma versão pessoal. Só então se pode vislumbrar o porquê de mudanças tão profundas nos ritos litúrgicos. Não faltava razão a João Paulo II quando, poucos meses antes da Carta citada, reconhecia que uma das causas da resistência tradicionalista residia “nos pontos doutrinais que, talvez por sua novidade, ainda não foram bem compreendidos por alguns setores da Igreja”.12
Essa maneira de agir corresponde certamente à nova relação entre magistério e teólogos estabelecida pelo Concílio, segundo a qual àquele já não cabe ensinar uma doutrina perene, mas unificar e autenticar o que estes percebem hoje no Povo de Deus.13 Mas, ainda que nada entenda de tudo isso, o simples fiel tem o direito de rejeitar uma reforma litúrgica substancial cujo fundamento doutrinal é incerto.
Descentralização. Embora a reforma litúrgica careça de garantias quanto à autoridade doutrinal do magistério conciliar, será sustentada ao menos por um forte compromisso da autoridade disciplinar? Consideremos este outro aspecto.
Nos primeiros séculos, os Papas intervieram somente para resolver algumas questões litúrgicas, como São Vítor I na controvérsia sobre a data da Páscoa. Depois, do século V ao VII, para que se assegurasse a ortodoxia e promovesse a unidade, as reformas litúrgicas foram levadas a efeito por concílios regionais, como os de Cartago e Toledo. Na Espanha se alcançou certa unidade litúrgica graças à primazia da sede toledana, mas a grave diversidade que padeciam as igrejas galicanas tornou necessário que, no final do século VIII, Carlos Magno apoiasse a introdução da liturgia romana. Com São Gregorio VII impõe-se a liturgia romana também na Península Ibérica, ficando unificada toda a Igreja latina. Mas, como os bispos seguiam exercendo o poder de modificar os ritos, não deixavam de introduzir-se variações. Os abusos chegaram a ser graves entre o século XIV e o XV, constituindo um dos fatores importantes na revolução protestante, donde também ser um dos fins da reforma empreendida pelo Concílio de Trento. Só então os Papas assumiram de fato a autoridade litúrgica que de direito lhes pertencia. Reformaram os livros litúrgicos romanos, recuperando a pureza do que era antigo e conservando o ótimo do que era novo, e instituíram a Sagrada Congregação dos Ritos (1588), proibindo dali em diante que os bispos modificassem os ritos litúrgicos. Toda a história da liturgia católica até o século XX se resume num processo de unificação e centralização sob a autoridade do Papa e do rito romano.
Nos primeiros séculos, os Papas intervieram somente para resolver algumas questões litúrgicas, como São Vítor I na controvérsia sobre a data da Páscoa. Depois, do século V ao VII, para que se assegurasse a ortodoxia e promovesse a unidade, as reformas litúrgicas foram levadas a efeito por concílios regionais, como os de Cartago e Toledo. Na Espanha se alcançou certa unidade litúrgica graças à primazia da sede toledana, mas a grave diversidade que padeciam as igrejas galicanas tornou necessário que, no final do século VIII, Carlos Magno apoiasse a introdução da liturgia romana. Com São Gregorio VII impõe-se a liturgia romana também na Península Ibérica, ficando unificada toda a Igreja latina. Mas, como os bispos seguiam exercendo o poder de modificar os ritos, não deixavam de introduzir-se variações. Os abusos chegaram a ser graves entre o século XIV e o XV, constituindo um dos fatores importantes na revolução protestante, donde também ser um dos fins da reforma empreendida pelo Concílio de Trento. Só então os Papas assumiram de fato a autoridade litúrgica que de direito lhes pertencia. Reformaram os livros litúrgicos romanos, recuperando a pureza do que era antigo e conservando o ótimo do que era novo, e instituíram a Sagrada Congregação dos Ritos (1588), proibindo dali em diante que os bispos modificassem os ritos litúrgicos. Toda a história da liturgia católica até o século XX se resume num processo de unificação e centralização sob a autoridade do Papa e do rito romano.
O Concílio Vaticano II vai provocar, consciente e deliberadamente, um processo inverso. A mudança mais radical introduzida pela Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a liturgia é, certamente, transferir o poder de legislar em matéria litúrgica já não para os bispos, mas para uma nova autoridade, as conferências episcopais: “Em virtude do poder concedido pelo direito, a regulamentação das questões litúrgicas cabe também, dentro dos limites estabelecidos, às competentes assembléias territoriais de Bispos de diferentes classes, legitimamente constituídas” (S.C., 22 § 2).14
Essa mudança corresponde ao princípio mais geral da colegialidade, mas em particular corresponde ao que a Constituição conciliar chama ainda de “adaptação” e logo se chamará de “inculturação” da liturgia: “A Igreja não pretende impor uma rígida uniformidade naquilo que não diz respeito à fé ou ao bem de toda a comunidade, nem sequer na liturgia; ao contrário, respeita e promove o gênio e as qualidades peculiares das diferentes raças e povos […]. Caberá à competente autoridade eclesiástica territorial, da qual se fala no artigo 22 § 2, determinar estas adaptações dentro dos limites estabelecidos nas edições típicas dos livros litúrgicos” (S.C., 37-39).
Na hora, então, de julgar acerca do estatuto teológico-canônico da reforma, não se deve esquecer a novíssima natureza jurídica das leis litúrgicas conciliares. As novas normas litúrgicas promulgadas pela Santa Sé não são mais que um marco, de limites totalmente imprecisos, de acordo com o qual as conferências episcopais devem determinar os novos ritos adaptados. Roma declara-se oficialmente incompetente para a determinação última das leis litúrgicas, porque o Papa não está in loco para julgar as adaptações ao gênio de tal ou qual povo. Hoje, por exemplo, a Congregação do Culto pode pedir uma melhor tradução do “pro multis”, mas não o pode exigir, porque está previamente estabelecido que o julgamento sobre a conveniência local das versões vernáculas cabe às conferências episcopais.15
Inculturação. O princípio de “indefinição” é destacado por nós, o de “descentralização” é festejado pelos neoteólogos, mas o de “inculturação” é reconhecido pela própria hierarquia como a medula da reforma litúrgica conciliar. Vinte e cinco anos após o inicio da reforma litúrgica, depois de declarar cismática parte de seus fiéis por defender a tradição, João Paulo II publica um documento sobre a liturgia onde, contra a esperança de muitos, em lugar de frear os abusos, pede que se acelere o processo de inculturação: “Outra tarefa importante para o futuro [além da mais urgente da formação bíblica e litúrgica do povo de Deus] é a adaptação da liturgia às diferentes culturas”.16 E à palavra somou o exemplo, oferecendo à Igreja os enormes escândalos de suas liturgias inculturadas.
Segundo essa concepção, a matéria legislada pelos livros litúrgicos romanos fica aberta a formas muito diversas, segundo a índole das pessoas que os recebam; em suma: a nova liturgia romana é de plástico. É verdade que se foram dando normas para regulamentar essa adaptação, e que se costuma distinguir entre os povos de tradição cristã, onde não seriam necessárias tantas mudanças, e os de missão. Mas mesma essa distinção dá em nada quando se leva em conta que as nações cristãs já não existem, pois foram invadidas pelo que querem chamar de “cultura moderna”.17
Se se levam em conta todas essas originalidades das disposições litúrgicas conciliares, é ridículo pretender julgá-las com os critérios discernidos pelos teólogos na legislação romana anterior.18 Como dissemos no final do artigo anterior,19 os vícios do magistério conciliar se transferem para seu governo, e em particular para a legislação litúrgica, por duas vias:
– pela necessária dependência da disciplina com respeito à doutrina. Como explicamos mais detidamente no presente artigo, uma autoridade que não discerne com certeza não pode imperar com firmeza. Ninguém – nem o Papa, nem um anjo do céu – pode obrigar os fiéis cristãos a aceitar sem prevenções uma refundição total da liturgia que, manifesta e declaradamente, corresponde a uma doutrina não só sem garantias por parte do magistério atual, mas explicitamente condenada em seus pontos principais pelo magistério anterior;20
– pela natureza mesma da disciplina litúrgica conciliar. Como não podia ser de outro modo, pois a assistência divina o impediria, a reforma litúrgica conciliar foi imposta por um exercício oblíquo da autoridade eclesiástica, que usou o prestígio de sua aparência sem a realidade de sua substância. Isso se vê claramente se relembramos as quatro condições, assinaladas mais acima, que permitem discernir o grau de autoridade das leis litúrgicas:
– pela natureza mesma da disciplina litúrgica conciliar. Como não podia ser de outro modo, pois a assistência divina o impediria, a reforma litúrgica conciliar foi imposta por um exercício oblíquo da autoridade eclesiástica, que usou o prestígio de sua aparência sem a realidade de sua substância. Isso se vê claramente se relembramos as quatro condições, assinaladas mais acima, que permitem discernir o grau de autoridade das leis litúrgicas:
1. Em razão da colegialidade, os Papas puseram sua autoridade em pé de igualdade com as conferências episcopais, as quais, por sua vez, se sentem obrigadas a subordinar-se ao “sensus fidei” de seus peritos em liturgia.
2. O subjetivismo do princípio de inculturação faz com que a matéria legislada fique aberta a incorporar elementos até das falsas religiões, totalmente alheios à Revelação cristã.21
3. Os livros litúrgicos editados pela Santa Sé não são determinadamente obrigatórios para ninguém, nem para a própria Cúria Romana, pois devem sempre encarnar-se segundo as circunstâncias de tempo e lugar. São leis de uma universalidade desencarnada, à maneira das idéias platônicas.
4. Os novos ritos nunca têm, nem sequer nas versões adaptadas de cada região, intenção de obrigar, porque o celebrante não deveria deixar nunca de prestar atenção ao sopro do Espírito na particular assembléia de fiéis que lhe cabe presidir.
De fato, essa concepção modernista da liturgia implica uma renúncia ao exercício da autoridade. A nova Roma já não diz como se deve rezar; tenta apenas atenuar a diversidade na anarquia geral. Mas o faz com os prestigiosos modos da Roma antiga. Os documentos de Paulo VI que apresentam os ritos novos usam as mesmas expressões de outrora, e, de quando em quando, a Congregação para o Culto se queixa dos excessos.22 Mas não deixam de ser as celebrações carismáticas as que melhor correspondem à nova anomia litúrgica.23
Repitamos, então, nossa conclusão: a reforma litúrgica conciliar não compromete nem minimamente a infalibilidade. Sustentá-lo no terreno da teologia só pode ser feito por insensatez ou por maquiavélica conveniência.
Notas do texto:
1 Ver definição de “abuso litúrgico na ultima nota do trabalho.
2 “Que a lei da oração estabeleça a lei da fé”. Cf. Indiculus, c. 8, promulgado sob São Celestino I, DS 246.
3 Motu Proprio Tra le sollecitudine sobre a Música Sacra.
4 Assim como o antigo Aníbal, após cruzar os Alpes com seus elefantes, venceu o exército romano, muito maior em número, assim também o novo Anibal Bugnini, introduzindo em Roma os paquidérmicos peritos do movimento litúrgico transalpino, teve uma vitória esmagadora sobre os velhos dinossauros da Sagrada Congregação dos Ritos.
5 Cf. Fraternidade Sacerdotal San Pio X, El problema de la reforma litúrgica, Ediciones Fundación San Pio X, 2001: “Em cada um destes estudos, sintetizaremos as teses da nova teologia, servindo-nos tanto dos teólogos que estão na origem da reforma litúrgica como dos textos oficiais pós-conciliares” (n. 50).
6 Cf. Dom Guy Oury, La Messe, de S. Pie V à Paul VI, Solesmes 1975, p. 44: “É claro que a liturgia da Igreja Romana se encontra em situação privilegiada pelo fato de ter sido aprovada, promulgada por uma autoridade que goza do carisma da infalibilidade pelo fato de dar um ensinamento constante. Querer descobrir ali um erro é absurdo. O procedimento que se impõe é o inverso”.
7 O Concílio de Trento declara o cânon da Missa isento de erro, não só quanto à doutrina, mas também quanto à piedade: “A Igreja Católica instituiu muitos séculos antes o sagrado cânon, de tal modo puro de todo erro [cânon 6], que não se contém nele nada que não saiba sobremaneira a certa santidade e piedade e não eleve a Deus a mente dos que oferecem”.
8 Arnaldo Xavier da Silveira trata este assunto de maneira correta e completa num apêndice à sua obra L’Ordo Missae de Paul VI: Qu’en penser?, Chiré-en-Montreuil, 1975, pp. 161-211. Ali podem ver-se muitas citações do magistério e de teólogos que sustentam estas afirmações.
9 “Se não se dá agora uma definição formal”, dizia São Roberto Bellarmino diante do Papa, “dever-se-ia então pelo menos prescrever a todos os eclesiásticos seculares e regulares que recitem o ofício da Imaculada Conceição, como o faz a Igreja: assim, sem nenhuma definição, obteríamos o que queremos” (citado por Da Silveira, p. 170).
10 Cf. Fraternidad Sacerdotal San Pío X, El problema de la reforma litúrgica, op. cit.
11 João Paulo II, Carta Apostólica Vicesimus quintus annus, 4 de dezembro de 1988, n. 5-6.
12 João Paulo II, Motu Proprio Ecclesia Dei, 2 de julho de 1988, n. 5 b.
13 Cf. especialmente o Artigo Segundo.
14 J. A. Jungmann, o “neoliturgista” de maior prestígio no momento do Concílio, sublinha este fato em “Um grande dom de Deus à Igreja”, primeiro artigo da difundida obra La Sagrada Liturgía renovada por el Concilio, dirigida por G. Barauna, versão espanhola de Studium, Madri, 1965. Diz ali, num parágrafo subintitulado “Descentralização”, p. 110: “Outro traço característico da reforma consiste no abandono de uma severa uniformidade da liturgia para todos os países […]. Na verdade, antes do Concílio de Trento, o princípio de uma rigorosa uniformidade era desconhecido [mas buscado com afinco], quando se atinham, sim, à liturgia romana, mas reservando cada diocese para si o direito de concretizar por si mesma os detalhes. É este o princípio que revive agora. Se até agora, conforme o cânon 1257, o direito de ordenar a liturgia era exclusivamente reservado à Sede Apostólica, torna-se a reconhecer o direito de intervenção dos bispos e atribuem-se grandes faculdades às Conferências Episcopais”.
15 Congregação para o Culto Divino, Instrução A Liturgia Romana e a Inculturação, 25 de janeiro de 1994: “Às Conferências Episcopais cabe julgar se a introdução na Liturgia, segundo o procedimento que se indicará mais adiante, de elementos tomados dos costumes sociais ou religiosos ainda vivos na cultura dos povos pode enriquecer a compreensão das ações litúrgicas sem provocar repercussões desfavoráveis para a fé e a piedade dos fiéis” (n. 32). “Quando a Conferência Episcopal preparar a edição própria dos livros litúrgicos, pronunciar-se-á sobre a tradução e as adaptações previstas, segundo o Direito” (n. 62). “A Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos declara-se disposta a acolher as proposições das Conferências Episcopais […] com um espírito de colaboração confiante e de responsabilidade compartilhada” (n. 64).
16 João Paulo II, Carta Apostólica Vicesimus quintus annus, 4 de dezembro de 1988, n. 16.
17 Cf. Artigo Terceiro, onde tocamos o tema da inculturação.
18 Dom Fernando Arêas Rifan, Orientação Pastoral O Magistério Vivo da Igreja, 6 de janeiro de 2007, p. 42: “Uma vez que a nova Liturgia da Missa foi promulgada oficial e solenemente pela Sede de Pedro como uma lei litúrgica universal da Igreja e adotada pelo Episcopado mundial em comunhão com o Papa por quase quatro décadas, e isso em matéria ligada à Fé, é impossível que essa liturgia, em si mesma, seja herética, não católica, ilícita, pecaminosa ou ainda prejudicial à Fé. Pode sê-lo por circunstâncias anexas, que infelizmente muitas vezes ocorrem, mas não em si mesma, tal como foi promulgada. Afirmar o contrário é incorrer na reprovação já promulgada pelo Magistério da Igreja, porque é proposição por ele censurada dizer que a Igreja, regida pelo Espírito de Deus, possa promulgar uma disciplina perigosa ou prejudicial às almas. Ao contrário, as leis universais da Igreja são santíssimas. A unanimidade dos teólogos nos ensina a infalibilidade ou inerrância da Igreja em suas leis universais, entre as quais se acham as leis litúrgicas universais” (omitimos as citações em nota). A Sede de Pedro não promulgou nenhuma lei litúrgica universal, mas, ao contrário, renunciou a fazê-lo, oficializando a anarquia.
19 Artigo Terceiro, solução da terceira objeção.
20 Quanto a isto, cf. Fraternidade Sacerdotal São Pio X, El problema de la reforma litúrgica, op. cit., terceira parte.
21 Congregação para o Culto Divino, Instrução A Liturgia Romana e a Inculturação, 25 de janeiro de 1994: “A Conferência Episcopal examinará o que deve ser modificado nas celebrações litúrgicas em razão das tradições e da mentalidade do povo. Confiará o estudo à Comissão nacional ou regional de Liturgia, a qual cuidará de pedir a colaboração de pessoas especialistas para examinar os diversos aspectos dos elementos da cultura local e de sua eventual inserção nas celebrações litúrgicas. Às vezes será oportuno pedir também conselho a expoentes das religiões não cristãs sobre o valor cultual ou civil de tal ou qual elemento” (n. 65).
22 Ao apresentar os novos ritos de Ordenações pela Constituição Apostólica Pontificalis Romanum, 18 de junho 1968, diz Paulo VI: “Já que na revisão do rito se teve de acrescentar, tirar ou mudar alguma coisa, tanto para acomodar os textos à fidelidade dos mais antigos documentos como para que as expressões fossem mais claras, ou para expressar melhor o efeito dos sacramentos, pareceu-nos necessário, para evitar toda e qualquer controvérsia ou motivo de perturbação de consciência, declarar que partes do rito reformado devem ser consideradas essenciais. Por isso, com nossa suprema autoridade apostólica, decidimos e dispomos tudo quanto se segue sobre a matéria e a forma de cada Ordem”. Impressiona, porque reproduz quase à letra as expressões usadas por Pio XII na Constituição Apostólica Sacramentum Ordinis, de 30 de novembro de 1947: “Depois de invocar o lume divino, com nossa suprema autoridade apostólica e com toda a segurança, decidimos e dispomos […]. Daí se segue que declaremos, para evitar toda e qualquer controvérsia e motivo de perturbação de consciência, com nossa autoridade apostólica realmente declaramos” (pelo menos Paulo VI teve a honradez de não dizer que invocou o lume divino e agiu com toda a segurança). Se dissemos mais acima que este documento de Pio XII supõe uma definição ex cathedra, por que não o dizemos também para o de Paulo VI, se usa as mesmas palavras? Porque, como mostramos, as palavras são as mesmas, mas não significam o mesmo: Paulo VI esclareceu que sua suprema autoridade apostólica dialoga. Além do mais, Pio XII definia, sem tocar nada do rito, uma controvérsia cujos termos eram perfeitamente conhecidos pelos teólogos, enquanto Paulo VI tem a ousadia inaudita de mudar totalmente a própria forma essencial da consagração episcopal (tomando-a modificada do rito copta), por obscuríssimos motivos de maior clareza que ninguém consegue explicar. Além disso, garante também com infalibilidade as futuras versões inculturadas? Um indício do que afirmamos está em que o documento de Pio XII continua a aparecer nas novas edições do Denzinger, e não assim o de Paulo VI.
23 Congregação para o Culto Divino, Instrução A Liturgia Romana e a Inculturação, 25 de janeiro de 1994: “Em alguns povos o canto é acompanhado espontaneamente de bater de mãos, balanceios rítmicos ou movimentos de dança dos participantes. Tais formas de expressão corporal podem ter lugar nas ações litúrgicas desses povos com a condição de que sejam sempre a expressão verdadeira e oração comum de adoração, de louvor, de oferenda ou de súplica e não um simples espetáculo” (n. 42). Por acaso não são essas coisas expressões autênticas da atual “cultura rock” das sociedades modernas? Se os fiéis se queixam de que na Missa dançam moças malvestidas, declara-se “abuso”; se ninguém se queixa, é “liturgia do corpo”. A diferença não é de princípios, mas de prudência: há abuso quando o celebrante foi além do “sensus” da assembléia.
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