sábado, 24 de setembro de 2011

A Família


Discurso ao Congresso "Fronte da Família" de 27 de novembro de 1951.
Na ordem da natureza, entre as instituições sociais não há alguma que esteja tão no coração da Igreja, como a família. Cristo elevou à dignidade de sacramento o matrimônio, que é como que a raiz da família. E por isto ela sempre encontrou e encontrará na Igreja defesa, proteção, apoio, em tudo que diz respeito aos seus invioláveis direitos, sua liberdade, e ao exercício de sua alta função.
Muitas vezes e em ocasiões diversas falamos em favor da família cristã, e na maior parte dos casos para ajudá-la ou chamar em seu auxílio outras forças para salvá-la das mais graves angústias. Antes de tudo para socorrê-la nas calamidades da guerra. Os danos causados pelo primeiro conflito mundial estavam bem longe de ser plenamente reparados, quando a segunda e também mais terrível conflagração, veio fazer esta situação chegar ao cúmulo. Será necessário ainda muito tempo e muita fadiga da parte dos homens, e também maior assistência divina, antes que comecem a cicatrizar-se convenientemente as profundas feridas, que aquelas duas guerras infligiram à família. Outro mal, devido em parte, também ele, às guerras devastadoras, mas consequência ainda da superpopulação e de algumas tendências inábeis e interessadas, é a crise das habitações; todos, legisladores, homens de Estado, membros de obras sociais, que estudam por trazer para este problema um remédio, cumprem, seja embora diretamente, um apostolado de eminente valor. O mesmo vale quanto à luta contra o flagelo da desocupação, para a regularização de um suficiente salário familiar, a fim de que a mãe não seja constrangida, como muitas vezes é, a procurar trabalho fora da casa, mas possa dedicar-se ainda mais ao marido e aos filhos. Trabalhar em favor da escola e da educação religiosa: eis uma preciosa contribuição ao bem da família, como também favorecer nela uma sã naturalidade e simplicidade de costumes, reforçar as convicções religiosas, desenvolver em torno dela uma aura de pureza cristã, apta para libertá-la dos deletérios influxos exteriores e de todas aquelas morbosas excitações que causam desordenadas paixões no ânimo do adolescente.
Há porém uma miséria ainda mais profunda, da qual ocorre preservar a família, a saber: a aviltante escravidão em que a reduz uma mentalidade tendendo a fazer dela puro organismo a serviço da comunidade social, para fornecer-lhe massa suficiente de "material humano".
Outro perigo ainda ameaça a família, não de ontem, mas desde muito tempo, e que porém no presente, crescendo à vista d'olhos, pode tornar-se funesto à família, porque a ataca desde seu germe; queremos aludir à anarquia da moral conjugal em toda sua extensão.
No curso dos últimos anos, colhemos todas as ocasiões para expor um e outro ponto essencial desta moral, e mais recentemente para indicá-la em seu todo, não somente refutamos os erros que a corrompem, mas também mostrando positivamente o sentido da mesma, o papel, a importância, o valor para a felicidade dos esposos, dos filhos e de toda a família, para a estabilidade e maior bem social do lar doméstico até do Estado e da própria Igreja.
No centro desta doutrina o matrimônio apareceu como uma instituição a serviço da vida. Em estreita ligação com este princípio, Nós, segundo o ensinamento constante da Igreja, ilustramos uma tese que é um dos fundamentos essenciais não somente da moral conjugal, mas também da moral social em geral: que o direito atentado contra a vida humana inocente, como meio ao fim, - no caso presente para o fim de salvar outra vida, - é ilícito.
A vida humana inocente, de qualquer modo que se encontre, é subtraída, desde o primeiro instante de sua existência, a qualquer direto ataque voluntário. É este um direito fundamental da pessoa humana, de valor geral no conceito cristão da vida; válido tanto para a vida ainda escondida no seio da mãe, como para a vida já desabrochada fora dela; tanto contra o aborto direto como contra a direta morte da criança antes, durante e depois do parto. Porquanto fundada possa ser a distinção entre os diversos momentos do desenvolvimento de vida nascida ou ainda não nascida para o direito profano e eclesiástico e para algumas consequências civis e penais, segundo a lei moral, trata-se em todos estes casos de um grave e ilícito atentado à inviolabilidade da vida humana.
Este princípio vale para a vida da criança, como para a da mãe. Jamais e em nenhum caso a Igreja ensinou que a vida da criança deve ser preferida à da mãe. É errôneo colocar a questão com esta alternativa: ou a vida da criança ou a da mãe. Não; nem a vida da mãe, nem a da criança, podem ser submetidas a um ato de direta supressão. Para uma outra parte, a exigência não pode ser senão uma; fazer todo esforço possível para salvar a vida de ambas, da mãe e da criança.
É uma das mais belas e nobres aspirações da medicina o procurar sempre novas vias para assegurar a vida de ambos. Que se, não obstante todos os progressos da ciência, permanecem ainda, e permanecerão no futuro, casos nos quais se deve contar com a morte da mãe, quando esta quer conduzir até o nascimento a vida que traz consigo, e não a quer destruir, violando o mandamento de Deus: "não matar", outra via não há para o homem, senão até o último momento esforçar-se por ajudar e salvar-lhe a vida, e inclinar-se depois com respeito diante das leis da natureza, e das disposições da divina Providência.
Mas - objeta-se - a vida da mãe, principalmente de uma mãe de numerosa prole, é de um valor incomparavelmente superior à de uma criança que ainda não nasceu. A aplicação da teoria da balança dos valores no caso que agora nos ocupa já encontrou acolhimento nas discussões jurídicas. A resposta a esta tormentosa objeção não é difícil. A inviolabilidade da vida de um inocente não depende de seu maior ou menor valor. Desde mais de dez anos a Igreja formalmente condenou a morte de um inocente, da vida chamada "sem valor";e quem conhece os tristes antecedentes que provocaram tal condenação, quem sabe ponderar as funestas consequências a que se chegaria, se se quisesse medir a intangibilidade da vida inocente segundo o seu valor, bem sabe apreciar os motivos que conduziram a tal disposição.
De resto, quem pode julgar com certeza qual das duas vidas em realidade é mais preciosa? Quem pode saber qual caminho seguirá aquele menino e a que altura de obras e de perfeição poderá ele chegar? Avaliam-se aqui duas grandezas, uma das quais é completamente desconhecida.
Queremos a este propósito citar um exemplo, que talvez já é conhecido, mas que não perde ainda por isto seu sugestivo valor. É de 1905. Vivia então uma jovem, de nobre família e de ainda mais nobres sentimentos, mas frágil e delicada saúde. Adolescente, fora vítima de uma pleurite apical, que parecia finalmente curada; eis que, depois de ter contraído um feliz matrimônio, ela sentiu uma nova vida desabrochar em seu seio, percebeu logo um especial mal-estar físico, que consternou os dois últimos médicos, que velavam com amorosa solicitude sobre ela. A antiga moléstia, aquele foco já cicatrizado havia-se reavivado; segundo seus juízos, não havia tempo a perder; se se queria salvar a jovem senhora, era preciso provocar, sem a menor indulgência o aborto terapêutico. O esposo também compreendeu a gravidade do caso e declarou consentir no doloroso ato. Mas quando o obstétrico anunciou-lhe, com toda a cautela a deliberação dos médicos exortando-a a ceder aos seus pareceres, ela, com um acento firme, respondeu: "Agradeço seus piedosos conselhos; mas não posso truncar a vida desta minha criatura! Não posso, não posso! Sinto já que ela palpita em meu seio, tem direito de viver. Ela vem de Deus e deve "conhecer a Deus para amá-lo e gozá-lo". Também o marido pediu, suplicou, implorou; ela permaneceu inflexível e esperou serenamente o acontecimento. Uma menina nasceu regularmente; mas logo depois a saúde da mãe foi piorando. O foco pulmonar se estendeu; o enfraquecimento tornou-se progressivo. Dois meses depois ela estava nas últimas, reviu a pequenita, que crescia sã, junto de uma robusta nutriz; seus lábios tentaram  um doce sorriso e rapidamente expirou. Transcorreram vários anos. Em um instituto religioso podia-se notar particularmente uma jovem irmã, toda dedicada ao cuidado e à educação da infância abandonada, que com olhos inspirando amor materno se inclinava sobre pequenos enfermos, quase para dar-lhes a vida. Era ela a filha do sacrifício que agora, com coração generoso, difundia o bem entre as crianças abandonadas. O heroísmo da intrépida mãe não tinha sido em vão. Mas nós perguntamos: é talvez o sentido cristão, até puramente humano, que se entorpeceu tanto que não pode mais saber compreender o sublime holocausto da mãe e a visível ação da Providência divina, que do holocausto fez nascer tão esplêndido fruto?
A propósito usamos sempre a expressão "atentado direto contra a vida inocente", "assassínio direto". Pois que, por exemplo, se a salvação da vida da futura mãe, independentemente de seu estado de gravidez, requer urgentemente um ato cirúrgico, ou outra aplicação terapêutica, que teria como consequência acessória, de modo algum em si entendida, mas inevitável, a morte do feto, tal ato não poderia dizer-se direto atentado à vida do inocente. Nestas condições a operação pode ser lícita, como outras semelhantes intervenções médicas, sempre que se trata de um bem de alto valor, qual é a vida, e não seja possível adiá-la para até depois do nascimento da criança, nem recorrer a outro remédio eficaz, uma vez que a função primária do matrimônio é a de estar em função da vida. Nossa principal satisfação e Nossa paterna gratidão vai aos esposos generosos, que por amor de Deus, e confiando nele, formam corajosamente uma família numerosa.
De outra parte, a Igreja sabe considerar com simpatia e com compreensão as reais dificuldades da vida matrimonial em nossos dias. Por isto afirmamos a legitimidade e ao mesmo tempo os limites - em verdade bem largos - de uma regularização da prole, a qual, contrariamente ao assim chamado "controle dos nascimentos" é compatível com a lei de Deus. Pode-se ainda esperar (mas em tal matéria a Igreja deixa naturalmente o juízo à ciência médica) que esta chegue a dar a tal método lícito uma base suficientemente segura, e as mais recentes informações parecem confirmar tal esperança.
De resto, para vencer as múltiplas provas da vida conjugal valem sobretudo a fé viva e a frequência dos sacramentos, donde brotam torrentes de força, de cuja eficácia os que vivem fora da Igreja, dificilmente podem formar uma ideia clara. E com este apelo aos superiores auxílios, desejamos concluir Nosso discurso.

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